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4. Representações da figura e ação política de Salazar (1928-1936) e críticas ao

4.3. A ética republicana face aos valores do regime ditatorial

4.3.1. Catolicismo e laicidade

As relações entre o Estado e a Igreja tiveram particular importância durante o salazarismo. Segundo Manuel Braga da Cruz, o “regime autoritário instaurado em 1926 assumiu desde o início uma orientação ideológica dominantemente católica”, tendo sido classificado como “um nacional-catolicismo”. Para esta situação, teria contribuído o facto “de serem católicos muitos dos principais quadros dirigentes do regime” e “de ser Salazar um dos principais dirigentes do partido católico durante a I República e amigo íntimo” de Gonçalves Cerejeira, “Cardeal Patriarca de Lisboa desde 1929 até aos últimos anos do regime”. Apesar das estreitas relações entre as duas entidades, Braga da Cruz considera que, ao invés de um nacional-catolicismo, o salazarismo – do ponto de vista das relações

183 “O movimento proletário espanhol”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 1. 184 “O caso do Chile”. O Democrático, nº 917, 23/06/1932, p. 1.

entre o Estado e a Igreja – pode ser caracterizado como um catolaicismo “em que à laicidade do Estado se associou uma orientação católica dominante, à separação jurídica se juntou uma estreita colaboração moral, com a independência dos poderes”, verificando-se “um entendimento na prossecução dos interesses de ambos que, em muitos aspetos, foram coincidentes”185.

Em 1928, o periódico publicou uma carta de Lisboa com relatos acerca da peregrinação a Fátima realizada a 13 de maio do mesmo ano, realçando a sua “grandiosidade espantosa”, tendo contado com cerca de duzentos mil peregrinos186. Estas

descrições não eram isentas de relevância dado que, em 1926, a peregrinação havia sido proibida pelo regime anterior, facto que não desmotivou O Democrático a trazer o assunto à colação. O autor da carta teceu duras críticas à República, na sequência dessa interdição:

Com mágoa o dizemos, há uns 3 anos, foi esta perseguição proibida. Por que razões, não o sabemos […]. Podemos afirmá-lo afoitamente [que] com tal proibição nenhum prestígio veio para a República. Antes pelo contrário. Cedeu- se à pressão de uma ínfima minoria que agitou como espantalho a ofensa ao

espírito liberal. Foi um erro que se cometeu e votos fazemos para que não se

reincida nele187.

O redator deste artigo aproveitou a oportunidade para expor o seu ponto de vista: a verdadeira liberdade, defendida também sob o ideário republicano, residiria na possibilidade de todos os cidadãos serem livres de manifestar publicamente, “dentro do maior respeito e compostura, as suas crenças religiosas”188.

Noutro passo, em clara reprovação à conduta da Igreja Católica, o periódico via com “certa estranheza” uma nota semioficiosa que vinha a público na maioria dos jornais diários, “com a chancela «Centro Católico Português»”, pedindo aos diretores desses periódicos para solicitarem do público contribuinte o pagamento integral, no corrente mês

185 CRUZ, Manuel Braga da – O Estado Novo e a Igreja Católica. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1998, p. 11-

16.

186 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 722, 01/06/1928, p. 4. 187 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 722, 01/06/1928, p. 4. 188 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 722, 01/06/1928, p. 4.

de julho, de todas as contribuições em que está coletado”, de forma a “facilitar a obra de saneamento financeiro e económico” em que estava empenhado o Ministro das Finanças.

O Democrático opôs-se, de forma sarcástica, a esta situação, acusando o Centro Católico

Português e o seu presidente de oportunismo:

Muito nos apraz registar uma tão grande, desinteressada e louvável solicitude pelas coisas públicas por parte do CCP [Centro Católico Português] e não será de admirar que lá para o fim do mês, no caso de não terem sido ouvidas as súplicas daquela pia, utilíssima e patriótica instituição, tão intimamente ligada à corte celestial, sejam ordenadas preces benditas e procissões de pertinência para que o Altíssimo possa inspirar o espírito dos cidadãos portugueses ao cumprimento dos seus deveres de contribuintes, porque, caso contrário, lá os espera … o relaxe, as excomunhões do papa Lino Neto189 e o inferno de novos aumentos de décimas190.

Já em 1936, o semanário publicou um artigo a propósito da colocação de crucifixos nas escolas primárias191. O autor do texto mostrava-se claramente a favor desta medida, embora reconhecesse que ela havia sido recebida com estranheza pela generalidade da população, tanto por “diplomados” como por “instruídos sem diploma”. Justificava a sua posição recorrendo a exemplos da Bíblia e da vida de Jesus Cristo, que considerava um exemplo de tolerância, bondade e superação. Assim, a seu ver, seria uma boa inspiração e modelo a seguir pelas crianças que iniciavam o seu percurso escolar de preparação para a vida adulta. Nas suas palavras, se fosse professor primário, o autor do artigo diria aos seus alunos que Jesus se encontrava simbolicamente na sala de aula não para que rezassem como rezariam na igreja, mas sim para que seguissem os bons ensinamentos que este revelou: amor e ajuda ao próximo; amor e respeito pelos pais; bons hábitos de trabalho que, neste caso, seriam de estudo para um dia mais tarde os aplicarem ao emprego e ganharem o pão de cada dia e respeito ao “Estado e aos Poderes legalmente

189 Presidente do CCP entre 1919 e 1934.

190 “Contribuintes! Cuidado”. O Democrático, nº 728, 13/07/1928, p. 1

191 Tratou-se da lei n.º 1941, de 11 de abril de 1936, promulgada pela Assembleia Nacional, que remodelava o conjunto do sistema educativo e estabelecia os propósitos do regime expressando-os num conjunto de catorze “Bases”.

constituídos”192. Posto isto, note-se, em primeiro lugar, o itálico aplicado nesta frase, visto que pode ser considerado uma crítica subtil à legitimidade legal do aparelho do Estado Novo. Em segundo lugar, não deixa de ser discutível se este último ensinamento poderá ser incluído nos ensinamentos deixados por Jesus Cristo, como o autor sustenta. Esta presença simbólica que visava ensinar as crianças a respeitarem a lei e o Estado podia, obviamente, ser vista como uma manobra política de utilização da religião em benefício do poder estatal. Contra este possível argumento e outros que se pudessem levantar, o autor defendia-se, replicando que as suas declarações apenas traduziam uma “sincera opinião”193. Certo é que O Democrático publicou este texto, o que pode ser visto como

manifestação de tolerância mas também se deve atentar que os tempos eram já outros, com o regime ditatorial a apertar o cerco e a jugular opiniões contrárias, muito concretamente órgãos de imprensa que lhe eram tradicionalmente desafetos, como aconteceu a este periódico e tantos outros, neste mesmo ano de 1936.

Através da análise destes exemplos de referências à Igreja Católica no Estado Novo, pode-se verificar que este semanário – embora absolutamente defensor da República – não embarcou numa perseguição feroz e aleatória à religião. Os comentários mais veementes que foi produzindo não se relacionavam com a legitimidade da prática das crenças católicas, mas sim com a hipocrisia e/ou oportunismo das suas instituições, muitas vezes de mãos dadas com o poder, face a uma população maioritariamente católica.

4.3.2. “Educar, eis o problema!”194

Segundo Ribeiro de Meneses, “Salazar via a educação como uma poderosa ferramenta capaz de transformar os seus concidadãos”. Contudo, ainda que “ a educação fosse um importante foco de ação para o Estado Novo, permaneceu, tal como todas as outras áreas de ação do Estado, subordinada aos condicionalismos financeiros impostos por Salazar”. Existiu efetivamente “uma expansão continuada, ainda que lenta da rede de escolas primárias, mas o ensino ia sendo esvaziado, tornando-se cada vez menos

192 JÚNIOR, J. R. Costa – “A propósito de Cristo nas escolas”. O Democrático, nº 2005, 24/04/1936, p. 3. 193 JÚNIOR, J. R. Costa – “A propósito de Cristo nas escolas”. O Democrático, nº 2005, 24/04/1936, p. 3. 194 VIANA, Mário Gonçalves – “Educar, eis o problema!”. O Democrático, nº 2002, 03/04/1936, p. 3.

académico e mais moralista e abertamente político”. Com Salazar no poder, “a escolaridade obrigatória baixou dos cinco para os três anos” e “o curriculum foi limitado à leitura, escrita, aritmética e aquisição de princípios religiosos e morais básicos”, insistindo-se na “necessidade de um livro único para todas as disciplinas”195.

Sendo um periódico republicano, O Democrático sempre tomou a alfabetização como um dos seus maiores baluartes na busca do progresso e modernização da sociedade. Desta forma, denunciava o atraso intelectual de grande parte da população (facto que, de certa forma, em Ditadura era encorajado, uma vez que quem não sabe não questiona), e propunha formas de solução que, a seu ver, o Estado deveria aplicar para combater, desde logo, o flagelo do analfabetismo e o genérico atavismo que impedia a evolução do país.

Em meados de 1932, o jornal destacou o atraso intelectual do país, que vivia agarrado “a velhos preconceitos” que já não se coadunariam “com a vida moderna”. Efetivamente, apontava que os portugueses haviam conservado, “através dos séculos, a mesma mentalidade rotineira, conservadora, incapaz de compreender os mais instantes problemas”. Como antídoto para tão profundo mal, preconizava a adoção do ensino racionalista que consistia “em educar a criança ministrando-lhe apenas os conhecimentos que a sua inteligência facilmente aprende”, algo que “nunca passou de uma doce quimera” em Portugal. Dado que a laicização do ensino fora um dos princípios amplamente defendido por dirigentes da República proclamada em 1910, o autor deste texto via-se na necessidade explicitar as diferenças entre os conceitos de escola racional e escola laica, uma vez que considerava que muitas pessoas ainda confundiam os dois termos. Na sua elucidação, indicava os vários defeitos e falhas mais prementes do ensino laico, realçando a superioridade da escola racionalista. Assim, a escola laica reconhecia “todas as mentiras sociais, com exceção da mentira religiosa”. Por outro lado, conduzia “a criança à mais degradante subserviência a formas político-sociais, dispensando-se do mais importante: o desenvolvimento crescente do seu raciocínio”, sendo neste aspeto que mais se distanciava da escola racionalista. Posto isto, o autor constatava que o ensino português não era nem laico nem racionalista – “apenas neutro”. Era nesta corroboração que residia o verdadeiro problema: “no ensino não há nem pode haver neutralidade aceitável”, porque

esta conduzia o professor a uma situação paradoxal, em que “não ensina a superstição e o fanatismo”, por ser neutro; mas também “não ensina a verdade guiada pela ciência, porque continua a ser neutro”. Este seria o impasse que obstaculizava o progresso nas escolas, uma vez que não se ensinava a mentira, mas também não se ensinava a verdade. No final, o autor concluiu – sem surpresa – que o ensino racionalista seria a hipótese válida, sendo o único, de facto, científico, e, por consequência direta, verdadeiro196.

Ainda no mesmo ano, outro artigo apresentava uma crítica direta e engenhosa ao excessivo enaltecimento dos feitos do passado e incentivo ao amor cego à Pátria, fortemente instilados pelo ideário do Estado Novo. Recorria a uma das personagens criadas pelo dramaturgo João Gonçalves Zarco da Câmara (1852-1908) para retratar, “com maior fidelidade, o carácter teórico” da raça portuguesa: um “fidalgo arruinado por libertinagens incontáveis” que “encolhe placidamente, serenamente os ombros, ante a sombra da fome que o espreita, sofrendo os seus ímpetos, com a esperança vã da chegada de um filho ausente, carregado de ouro pedrarias”197. Servia esta descrição com recurso à literatura para que o autor fosse ainda mais longe no seu raciocínio:

Todos nós temos, afinal, um pouco do velho fidalgo da novela desde que confiamos aos deuses celestiais e terrestres, ao acaso, às lotarias e à fortuna, o nosso destino glorioso de povo guerreiro, conquistador marítimo, colonizador valentaço e patrioteiro. E desde quatrocentos, desde as arremetidas heroicas das Índias e das Áfricas, em cujas plagas germinou, como um anátema, a nossa miséria, alguém tem velado por nós, pelo nosso futuro198.

Através desta reflexão, O Democrático pretendia demonstrar que os portugueses heroificados nas grandes epopeias e valerosas conquistas históricas nunca foram senhores de si próprios, nunca comandaram o seu próprio destino, deixando-o ao arbítrio dos deuses: enquanto “outros povos, atingida já a meta da idade positiva, comandam bem ou mal a sua atividade, nós mais felizes estacionamos na idade teológica e deixamos aos

196 GONÇALVES, Alexandre Jorge – “Escola Laica e Escola Racional”. O Democrático, nº 912,

20/05/1932, p. 1.

197 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1. 198 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1.

mitos e aos ídolos esse pesado e difícil encargo”. Esta asserção positivista-comtiana, tão entranhada na ética republicana lusa – se bem que já um pouco ultrapassada filosoficamente nos anos 1930 – não condenava a leitura “em adoração mística” das maravilhas da história do país, mas ela teria de ser feita com a consciência de que os “antolhos não […] deixam ver as realidades da vida moderna”. Esta é, efetivamente, a ideia basilar do artigo em apreço: a História nacional e os feitos heroicos das suas personalidades deviam ser estudados e admirados por todos, contudo era fundamental não permitir que o “elogio da raça” – elemento axial da propaganda nacionalista do regime em ascensão – significasse a estagnação do presente, alimentado apenas pela mirada do passado. Isto porque, “como raízes de heras apegadas à rigidez dos basaltos”, a Nação encontrava-se agarrada, “há seculos, à Índia e ao Gama”, vivendo no passado sem solucionar os problemas do presente199. Numa profética e acertada antecipação do que seriam os tempos futuros, mesclando ironia e fina crítica política, o artigo abordava a Situação e o seu ideário nestes termos:

Somos um povo ignorante e inculto? Que importa? Temos Os Lusíadas… A nossa instrução é uma miséria? Descobrimos o Brasil.

A educação infantil é um crime. Não possuímos escolas onde modernos métodos pedagógicos incitem e desenvolvam as atividades embrionárias. Liceus, Faculdades, Universidades arejadas, amplas, donde dimane livre e irradiante a luz da ciência? Temos sebentas…200

Três anos volvidos, em 1935, o periódico publicou um artigo reproduzido d’ O

Eco de Pombal acerca da imprescindível necessidade de extinção do analfabetismo, avançando eventuais soluções para extirpar esse mal profundo e estrutural da sociedade portuguesa. O seu autor, Lucas Alonso, abre com a constatação de que já haviam sido experimentadas “muitas tentativas […] para se conseguir, quando não a suspensão completa, pelo menos uma diminuição sensível na desoladora percentagem da população analfabeta de Portugal”, porém eram “cada vez mais alarmantes e cada vez mais

199 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1. 200 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1.

profundas e mais desalentadas as lamentações e censuras estigmatizadoras dessa suposta úlcera social que, longe do caminho da cura” mais se alastrava e expandia, “mau grado de quantos na sua destruição” se empenhavam e indicavam projetos de resolução. O autor acreditava, portanto, que as abordagens ensaiadas não haviam apresentado os resultados desejados. Assim, propunha soluções que, num país como Portugal, poderiam ser vistas como “estravagâncias”, mas que em alguns outros países haviam sido convertidas em leis. Sugeriu, então, a isenção “do serviço militar aos mancebos que na devida altura demonstrassem ter o conhecimento de leitura e escrita”, assim como o impedimento do “matrimónio às mulheres que não pudessem fazer aquela demonstração”. Revelados estes expedientes, o autor não deixou de reconhecer-lhes perigos potenciais, que se traduziam na forma de “dificuldades no recrutamento de homens para o exército e um provável desenvolvimento de lares, irregularmente constituídos”. Contudo, tais fragilidades seriam ultrapassadas através da “transformação do serviço militar numa missão honorífica ou, então, suficientemente remunerada” e através da “amputação de todos os direitos e foros cívicos aos componentes de lares imperfeitos ou fora das leis correspondentes”. Desta forma, as possíveis preocupações volver-se-iam em “coisas nulas e sem valor”, pelo que as hipóteses induzidas seriam merecedoras de uma análise demorada e atenta, para que pudessem, no final, ser postas em prática201. Por outro lado, e no que diz respeito aos elementos básicos que permitissem o exercício da instrução, o autor acreditava encontrarem-se já reunidos, embora precisassem de se tornar mais eficazes, conferindo ao ensino generalizado das primeiras letras a natureza de uma missão que, embora espinhosa e difícil não podia deixar de se cumprir:

Professores numerosíssimos e edifícios adrede e profundamente distribuídos. Povoem-se convenientemente estes e dê-se ocupação a todo aquele dispondo-o para uma vida móvel, ambulante, nómada para ir, junto dos que dela precisam, levar a luz das primeiras letras em vez de estar na sáfara expetativa de aguardar na escola os que, quase sempre constrangidos, a ela venham202.

201 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4. 202 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4.

Adicionalmente, o texto defendia que o problema não residia na construção de mais escolas, uma vez que as alternativas e opções de lugares para a prática da alfabetização eram vastas, embora pouco convencionais:

Em toda a parte há ou uma igreja ou a casa de um benemérito. A igreja não se macula. Não é uma religião também a aquisição de um pouco de pão para o espírito? E a casa do benemérito não se amesquinha; dignifica-se e por isso ninguém a recusará se edifício próprio não existir no lugar. E os jardins, e as matas, e os recantos de uma planície, plenos de sol brilhante e fartos de ar puro [poderão ser aproveitados] como fontes de uma missão santa203.

Todas estas considerações e propostas surgiam na sequência de um projeto de lei reproduzido no Jornal do Comércio e das Colónias, da autoria de Araújo Correia (deputado e engenheiro), “tendente à extinção do analfabetismo”. A proposta consistia na criação de uma “Junta de Cultura Popular”, que procedesse à fixação das matérias que deviam integrar o “curso completo de instrução rudimentar”; instalação de “40.000 postos de cultura popular”; e criação de uma “cota de analfabetos de mais de 12 e menos de 50 anos”. Observavam-se ainda neste projeto, “disposições tendentes a aproveitar o concurso de pessoas particulares, hábeis para o intento e a galardoar, por meio de determinadas vantagens, os alunos que hajam obtido o respetivo certificado de instrução”204.

Fica aqui explícita a primeira grande manifestação de preocupação d’O

Democrático – através da transcrição de um artigo publicado por outro periódico – no

que diz respeito aos elevados níveis de analfabetismo em Portugal, assim como a procura de soluções para este flagelo. A partir daqui, o discurso permaneceu carregado da mesma dose de preocupação, sempre com uma particular insistência em demonstrar a importância da educação na sociedade.

Em 1936, o semanário debateu nas suas colunas o “vasto e complexo” caminho que, em plena primeira metade do século XX, existia ainda por percorrer no campo da

203 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4. 204 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4.

educação infantil. Defendia que as bases do ensino primário infantil deviam iniciar-se no lar, sendo “tremenda”, nesse domínio, “a responsabilidade dos progenitores”. A complexa missão de educar não deveria pertencer única e exclusivamente aos professores, uma vez que “na família, na escola, na sociedade – em toda a parte” se poderia “realizar alguma coisa de útil e de construtivo em benefício da juventude e da mocidade”. O jornal considerava que este não era um assunto que pudesse ser deixado para segundo plano, pois “os pequeninos de hoje – homens de amanhã” – mereciam “ser vigiados e orientados com o maior carinho, desde a idade da razão”. Neste contexto, o periódico criticava a educação dada às crianças de famílias católicas que, embora procedessem de “boa-fé”, limitavam-se a “uma instrução formalista” que “poucos resultados úteis traria”. Mais do que incentivar os mais novos a decorar certas noções ou conceitos, o mais importante seria compreendê-los, senti-los e depois praticá-los em conformidade. Quer isto dizer que, na visão d’O Democrático, era fundamental a formação de cidadãos informados, aptos e competentes para desempenhar um papel válido, ativo e responsável na sociedade. Contudo, considerava que os suportes básicos do ensino falhavam: a família raras vezes cumpria a sua obrigação, a escola atraiçoava muitas vezes a sua missão e a sociedade nunca cumpria o seu dever, deixando assim o futuro comprometido205.

Neste seguimento, não surpreende que o semanário tenha publicado outro artigo do mesmo pedagogo, Mário Gonçalves Viana206. No texto aqui em destaque, Gonçalves Viana afirmava que a educação era, efetivamente, o problema máximo no país. O autor admitia que “o problema económico e a própria questão social” que Portugal atravessava seriam os grandes fatores propiciadores dessa situação. Numa aceção que se aproximava mais dos valores ideológicos que o país abraçava à época, insistia na importância da educação como pedra angular na sustentação de qualquer sociedade moderna: