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1.2 Um pouco da história da Educação Somática

1.2.2 A Educação Somática e as Artes da Cena: frutos e raízes

Por dedicar-se à investigação perceptiva/sensitiva do movimento, do toque e da postura, o campo da Educação Somática possibilitou aos artistas do movimento um intenso ambiente para exploração da expressividade corporal, e assim contribuiu para o surgimento de uma subárea das Artes, na qual a relação entre arte e ciência passou a ser explorada no âmbito das práticas corporais expressivas. Conforme já colocado anteriormente, entre os pioneiros do campo da Educação Somática havia artistas: Matthias Alexander fora ator; Elsa Gindler se formou na ginástica expressiva delsartisa99; Gerda Alexander se formou em Eurritmia dalcrozeana; Mary Whitehouse fora estudante de técnicas de dança moderna e

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Esses não são os nomes dos Módulos que compõe a formação em BMC, e sim nomesexplicativos.

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Termo qualitativo que fora usado para uma identidade cultural proveniente do sistema de análise expressiva corporal desenvolvido por François Delsarte.

expressionista; Irmgard Bartenieff fora dançarina, tendo sido aluna e parceira de Rudolf Laban.

Pessoalmente, acredito que sistemas dedicados ao estudo e exploração da expressividade corporal desenvolvidos durante meados do séxulo XIX, como o sistema pantomímico de François Delsarte, foram consideravelmente importantes para o surgimento da Educação Somática. Delsarte falava que o homem era um ser triádico composto de sensação, sentimento e razão, o que também era entendido como corpo, alma e espírito (SOUZA, 2011). As leis delsartistas para a expressividade do movimento influenciaram práticas corporais que exploraram a percepção de movimento, tais quais os métodos amplamente divulgados no início do século XX de ginástica expressiva pantomímica.

Esses métodos inovaram ao serem propostos, significativamente, por mulheres, e ao levarem muitas mulheres para a prática física, o que era incomum na época. Muitas dançarinas cresceram frequentando aulas desses métodos, fosse na própria escola, enquanto atividade do currículo escolar, fosse em estúdios ou em aulas particulares, visto que essas ginásticas estavam na moda (SOUZA, 2011). Conforme mencionado no tópico anterior, Gindler estudou "Harmonische Gymnastik" com Hedwig Kallmeyer (WEAVER, 2006), também conhecida como Hede Kallmeyer (HANNA, 1995, p. 25). Esta, por sua vez, estudou Harmonic Gimnastic com Genevieve Stebbins (1857-1914), assim como também o fez Bess Mensendieck (HANNA, 1995, p. 26). Stebbins foi uma das principais figuras na divulgação da ginástica expressiva pantomímica advinda da Estética Aplicada de François Delsarte, tendo sido aluna de Steele MacKaye, que fora discípulo de Delsarte (SOUZA, 2011). Segundo Carola Speads (importante nome que levou o trabalho de Elsa Gindler para os EUA), em entrevista a Hanna, Kallmeyer e Mensendieck foram as pioneiras, da Gymnastik na Alemanha (HANNA, 1995, p. 26). Kallmeyer era alemã e atuava em Berlim, e Mensendieck era estadunidense, e atuava em Hamburgo.

Ao mesmo tempo em que essas ginásticas inovaram as práticas físicas, importantes artistas dedicados ao movimento expressivo estavam apresentando seus trabalhos: Isadora Duncan, Emile Jaques-Dalcroze, Rudolf Laban, Mary Wigman, Ruth St. Denis, Ted Shawn e Vaslav Nijinsky. Alguns destes artistas utilizavam ginásticas expressivas pantomímicas delsartistas como treinamento corporal e/ou provocação estética e poética para sua arte, como era o caso das dançarinas Isadora Duncan e Ruth St. Denis, bem como do dançarino Ted Shawn (SOUZA, 2011). Jaques-Dalcroze ensinava seus alunos de Eurritmia que em todos os movimentos, "os fatores tempo-espaço-energia devem ser ‘domados’ no corpo, isso, até onde se é possível, para que se obtenha o máximo de efeito com o mínimo de esforço" (SOUZA, 2011, p. 178). Suas descobertas a respeito do tônus muscular e seu

papel na fase interna ou preparatória do movimento influenciaram Gerda Alexander, que desenvolveu o movimento eutônico como uma forma de expressão (GAINZA, 1997, p. 37). O movimento eutônico influenciou novas qualidades de movimento na dança. Rudolf Bode (1881-1970), que fora aluno de Jaques-Dalcroze, foi professor de Charlotte Selver. Com ele, Selver estudou rítmica corporal (WEAVER, 2006).

As imagens expostas a seguir mostram relações estéticas entre Genevieve Stebbins, Elsa Gindler e Isadora Duncan. Podemos observar que suas vestimentas pertencem a uma mesma cultura, a um mesmo estilo de se vestir. As roupas de Gindler e Duncan são quase idênticas. Essas três mulheres tiveram contato intenso com a ginástica expressiva delsartista, a Harmonic Gimnastic. Stebbins foi responsável pela transmissão da cultura física delsartista tanto nos EUA quanto na Europa. Estudou tanto em um lugar quanto em outro, e nos EUA recebeu diversos europeus como alunos (SOUZA, 2011). Uma de suas alunas, conforme apontado anteriormente, fora Kallmeyer, a professora de Gindler. A partir dos ensinamentos de Steele MacKaye, Stebbins desenvolveu um modo próprio de ensinar a ginástica expressiva, e inovou, ligando as poses pantomímicas umas às outras por movimentos corporais espiralados. Duncan atribuía a base de sua dança ao sistema de expressividade gestual delsartista (DUNCAN apud SHAWN, 1963, p. 80).

Figura 1: Genevieve Stebbins

Figura 2: Elsa Gindler

Fonte: SENSORY, s.p. - Site da Sensory Awareness Foundation. Disponível em: <http://sensoryawareness.org>.

Figura 3: Isadora Duncan

Segundo Nancy Ruyter, Genevieve Stebbins trabalhava em suas aulas de Harmonic Gimnastic:

1. exercícios de relaxamento (às vezes incluindo quedas)

2. trabalho postural e peso harmonico [jogo de oposição entre descarga de peso na perna direita e descarga de peso na perna esquerda, repercutindo oposições no direcionamento espacial do quadril, tórax e cabeça]

3. exercícios de respiracão

4. exercícios para a liberacão das articulacões e da coluna

5. atitudes das pernas [as atitudes de uma parte corporal consistem em combinações entre posicionamento espacial e tonificação, e as atitudes das pernas englobam também diferentes descargas de peso]

6. caminhadas

7. movimentos espiralados em sucessão [mobilização de torção em uma articulação corporal e em seguida, mobilização de torção da próxima, e assim por diante]

8. atitudes de expressão [atitudes de diferentes partes do corpo]

9. formas performáticas [combinações entre atitudes das pernas, braços, quadril, tórax, pescoço/cabeça e rosto].

(RUYTER, 1996, p. 71 apud SOUZA, 2011, p. 125).

A vertente da ginástica pantomímica convivia com a vertente da rítmica corporal e com a do movimento livre, além da vertente clássica do balé. Estas diferentes maneiras de se fazer dança, assim como os métodos ginásticos expressivos, encontravam-se imersas em um contexto social onde pensadores estavam problematizando a visão mecanicista do corpo. Como coloca Pamela Matt:

Nutrindo todos esses sistemas, havia um clima intelectual progressivo, que honrou o movimento enquanto fenômeno complexo, questionou concepções cartesianas de separação mente/corpo e rejeitou práticas de treino físico enraizadas em uma repetitiva broca sem mente (MATT, 2014, s.p. tradução nossa100).

Por um lado, a guerra havia engrandecido o tecnicismo, por outro, havia incitado o desejo de sensibilização. Esta, virou motivação tanto para educadores/terapeutas do movimento, como para artistas do movimento, e dentre estes, diversos dançarinos. Gerda Alexander acreditava que "a eutonia devia constituir uma base comum a todas as formas de movimento artístico (rítmica, dança, ópera, teatro) e a todos os gestos de nossa vida cotidiana, os jogos e os esportes” (ALEXANDER, 1991, p. 27). Estava em questão o nascimento de um novo ser humano: um ser integrado racionalmente, sentimentalmente,

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Nurturing all these systems was a progressive intellectual climate that honored movement as a complex phenomenon, questioned Cartesian conceptions of mind/body separation and rejected physical training practices rooted in mindless, repetitive drill.

perceptivamente, socialmente e ambientalmente. O plural movimento intelectual que ensaiava teoricamente esse novo ser humano contava com uma base empírica corporal. Esta não foi, então, uma ideia descarnalizada. Nas palavras de Rosenberg:

A concepção do corpo, estimulada pela "nova consciência", não surgiu de repente, mas seu caudal se formou com a participação de muitos afluentes. Ao mencionar os principais criadores e inspiradores dessa nova e complexa concepção do corpo, traçamos como que uma história do movimento. Integram esta lista, que bem poderia ser ampliada: P. Delsarte, Leo Kofler, Jaques-Dalcroze, G. Stebbins, C. Schlaffhorst-H. Andersen, B. Mensen, fundadores de Loheland, Elsa Gindler, R. Bode, F.M. Alexander, H. Medau, a escola Günther, para a qual Orff criou sua obra didática, R. von Laban, M. Wigman e Rosalia Chladek. (ROSENBERG, 1991, p. 4).

Desse modo, começaram a ser estabelecidas novas relações entre disciplinas científicas e as artes do movimento. Novos paradigmas científicos envolvendo a mente e o corpo se refletiram em questões pedagógicas voltadas para a performance cênica corporal, buscando-se explorar nos movimentos a relação entre percepção e expressão.

Posteriormente, com a consolidação do campo da Educação Somática, fundamentos de técnicas, métodos e sistemas da Educação Somática refletiram-se significativamente em questões pedagógicas do universo artístico expressivo corporal, de modo que muitos desdobramentos vieram da relação Educação Somática-Artes da cena, sendo singular a relação Educação Somática-Dança. Conforme colocado por Marcia Strazzacappa Hernandez, entre os campos da dança e da educação somática, foram estabelecidas fortes relações a partir da década de 1960 (HERNANDEZ, 2010). O que nos leva a observar que foi à partir de um momento no qual as abordagens pioneiras já haviam tido tempo para amadurecer, que essa relações se estabeleceram.

Como analisara Eloisa Domenici, Anna Halprin levou para uma importante geração de dançarinos, da qual alguns estariam compondo o Judson Church, proposições de exploração corporal muito diferentes das aulas de técnicas de dança, e próximas de proposições educacionais/terapêuticas somáticas. Um exemplo era explorar os movimentos de cada articulação do corpo (DOMENICI, 2010, p. 71). Steve Paxton e seus parceiros no Contato-Improvisação acompanharam e instigaram o desenvolvimento do BMC. A abordagem pedagógica corporal posteriormente criada por Steve Paxton - Material for the Spine - é baseada em fundamentos da Educação Somática. A prática dessa abordagem ajuda no desenvolvimento de habilidades necessárias a quem deseja se desenvolver no Contato-Improvisação. Irene Dowd difundiu a Ideokinesis no meio da dança; Hubert Godard difundiu o Rolfing e outras abordagens no meio da dança.

Os encontros entre a Educação Somática e as Artes da Cena proporcionaram importantes trocas entre sensibilidades terapêuticas e sensibilidades poéticas. Então, as influências entre a Educação Somática e as Artes da Cena ocorreram em um fluxo duplo. Podemos então falar na existência de raízes artísticas da Educação Somática, o que explica boa parte de seu mistério, de sua característica de mergulho, de entrega. E podemos também falar em frutos artísticos da Educação Somática, o que ajuda a explicar parte das mudanças ocorridas na dança durante a segunda metade do século XX.

1.3 O processo educacional/terapêutico somático: aspectos a serem