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1.1 Características elementares

1.1.2 Objetivos, propósitos e ideais da Educação Somática

Nos sistemas, métodos, técnicas e abordagens experimentais da Educação Somática, o movimento corporal é percebido a partir de experiências exploratórias pessoais. Com isso, os educadores somáticos visam desenvolver nas pessoas uma maior integração corporal - considerando o corpo em sua totalidade, o que abarca a mente - por meio de um trabalho com o movimento corporal, assim como com posturas corporais e toques, e pelo viés da consciência perceptiva, sensitiva e emocional. A vivência do mundo perceptivo e sensitivo do movimento (considerando também o movimento interno ao corpo) ainda é experienciada em relaxamentos, alongamentos e manipulações corporais, além de o ser em movimentações, toques e ações posturais. Objetiva-se um melhoramento das funções vitais, dos processos fisiológicos e psicológicos, bem como do arranjo e eficiência da estrutura musculoesquelética por meio de repadronizações sensoriomotoras. Objetiva-se igualmente a harmonização entre tais funções, processos e estrutura. Por esse caminho, os educadores somáticos trabalham motivados a gerar a ocorrência de mudanças positivas nas pessoas.

Gerda Alexander, pensando na grande meta final do seu trabalho, pretendia "ajudar o homem a reencontrar as origens de sua espontaneidade" (ALEXANDER, 1991, p. XVI). Moshe Feldenkrais desejava colaborar para com a desconstrução dos efeitos do obscurantismo das individualidades (FELDENKRAIS, 1977, p. 21). Esse almejo de Feldenkrais também é presente no discurso de outros construtores do campo da Educação Somática, como podemos observar no seguinte trecho do livro escrito por Gerda ao referir- se à Eutonia:

A eutonia teve como ponto de partida meu desejo de criar, para o homem de nosso tempo, um ensino capaz de dar a cada um a possibilidade de desenvolver sua própria personalidade, encontrando as leis psicossomáticas dentro de si, escapando aos estilos, técnicas e modas, cuja influência geralmente procuramos ou sofremos sem perceber (ALEXANDER, 1991, p. 27).

Mary Whitehouse, outra importante pioneira, visava proporcionar às pessoas uma integração mais profunda do consciente com o inconsciente, fortalecendo a sabedoria instintiva. Whitehouse é uma das pioneiras que acabou por trazer a Educação Somática para mais perto da Psicologia. Para ela - e esse seu pensamento está em sintonia com as ideias de diversos outros investigadores hoje considerados importantes construtores da Educação Somática - a repressão do corpo é também a repressão da inteligência biológica50 que nos habita, da força misteriosa que somos e da criatividade que nos move:

o corpo é o inconsciente e, ao reprimí-lo, e mais importante, ao desconsiderarmos a vida espontânea do sistema nervoso simpático, estamos empossando o racional, o ordenado, o manobrável, e colocando- nos para fora de toda experiência do inconsciente e, portanto, do instinto" (WHITEHOUSE, 1995, p. 245, tradução nossa51).

O quadro apontado por Whitehouse é algo comum na vida de muitas pessoas desde a infância, de modo que, desde crianças, tais pessoas são condicionadas a negar sentimentos e evitar expressões. A repressão ou emolduração do corpo (comentada por Whitehouse), assim como a repercussão disso na vida psicológica, também é abordada por

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O significado dessa expressão poderá ser melhor apreendido após a leitura do subcapítulo 2.2 do capítulo 2, chamado 'Mente celular e mente corporal?', iniciado na página 102.

51

[...] body is the unconscious, and that in repressing and, more important, disregarding the

spontaneous life of the sympathetic nervous system, we are enthroning the rational, the orderly, the manageable, and cutting ourselves off from all experience of the unconscious, and therefore of the instincts [...]

Linda Hartley, uma importante educadora somática da atualidade, e que também é professora e pesquisadora na área da Dança:

Muito da nossa energia e avivamento são assim inibidos, e também perdemos acesso ao conhecimento e sabedoria que o corpo possui. Frequentemente, nos sentimos desligados ou desassociados de nosso corpo físico, o que pode nos conduzir a sensações de falta de base, tensão ou fraqueza, desconforto, dor e falta de contato real e vital com nosso meio ambiente. Essas sensações serão também refletidas em nossos estados psicológicos e na saúde de nossos corpos (HARTLEY, 1995, p. xxxi, tradução nossa52).

Segundo Gerda Alexander, para que a pessoa possa estar mais corporalmente plena em si mesma, ela precisa “Aprender a sentir a si mesmo e sentir o ambiente com realismo e a manter essa habilidade em todas as circunstâncias do dia a dia" (ALEXANDER, 1991, p. xii). É uma questão de superar distanciamentos. Esse era o objetivo almejado por Gerda em seu trabalho. Uma vez que a pessoa se torne íntima de uma vivência consciente do corpo, dos movimentos e da relação com os outros e com o ambiente, ela adquire um contato real consigo mesma, com o próximo e com o ambiente. (ALEXANDER, 1991, p. xi). Como Gerda acreditava que a função vital que mais repercutia no todo do ser humano era a tonificação muscular, ela focava essa função no seu trabalho de resgate da harmonia psicofísica, para que seu balanceamento reverberasse em todo o corpo. Para ela:

A dissolução das fixações do tônus elimina as fixações psíquicas, como, por exemplo, os estados depressivos ou eufóricos e outras formas de conduta rígida. Essa liberação das reações emocionais habituais abre o caminho à capacidade de viver mais ampla e profundamente toda a gama dos sentimentos humanos. (ALEXANDER, 1991, p. 24).

Por diferentes caminhos, mas sempre pela prática corporal, os educadores somáticos trabalham para que as pessoas conquistem uma maior integração entre percepção, sentimento, intenção e ação. Busca-se o equilíbrio psicofísico via vivência motora. Objetiva-se a harmonização dos ritmos naturais do corpo53. A questão é dar oportunidade à unidade do ser. Como coloca Whitehouse:

52

Much of our energy and aliveness is then inhibited, and we also lose access to the knowledge and wisdom that the body holds. Often we feel cut off, disassociated from our physical body, which can lead to sensations of ungroundedness, tension or weakness, discomfort, pain, and lack of real and vital contact with our environment. These sensations will also be reflected in our psychological states and the health of our bodies.

53

A condição física, de algum modo, também é a condição psicológica. Nós não sabemos de que maneira a psiquê é o corpo e o corpo é a psiquê, mas nós sabemos que um não existe sem o outro. E eu gostaria de ir mais longe, sugerindo que, assim como o corpo se transforma no curso de um trabalho com a psiquê, também a psiquê se transforma no curso de um trabalho com o corpo. Nós faríamos bem em lembrar que os dois não são entidades separadas, mas, misteriosamente, uma totalidade. (WHITEHOUSE, 1995, 242, tradução nossa54).

Para que o trabalho corporal possa trazer mudanças ao ser, ele precisa ser somático, e sendo somático, irá combater a força dos condicionamentos. Esse é um objetivo sempre presente nos empreendimentos dos educadores somáticos: quebrar o hábito neuromotor e gerar possibilidade para o novo acontecer. Com esse trabalho, a plasticidade cerebral concernente à função da motricidade e tudo o mais que a acompanha é animada, vivificada conforme novos percursos neuronais deixam novos rastros no tecido cerebral, oportunizando a ocorrência de novos padrões neuromotores. Isso acontece quando a pessoa em processo de aprendizagem somática inaugura novos modos de realizar uma ação corporal, o que significa que ela está mudando a maneira como habitualmente se move e mudando fluxos de movimentos sinápticos.

Os avanços adquiridos na prática motora perceptiva, sensitiva e emocional, que consistem também em mudanças nos tecidos cerebrais, transbordam nos fluxos mentais e trazem melhorias aos estados psicológicos. Juntamente com o desenvolvimento da sensibilidade e a aquisição de uma maior facilidade de movimento, surge mais singularidade, mais liberdade, mais felicidade. Segundo Whitehouse, experienciamos a verdade de que "o movimento é a vida do corpo" (WHITEHOUSE, 1995, p. 244, tradução nossa55), e vivemos mais plenamente. Como coloca Hartley:

À medida que o corpo se torna mais balanceado e integrado, podemos experimentar mais agilidade e clareza mental, maior abertura e espontaneidade no ser e no perceber. Pela liberação de padrões habituais fixados, podemos acessar e mais amplamente expressar a criatividade que há dentro de nós. (HARTLEY, 1995, p. xxxi, tradução nossa56).

54

The physical condition is in some way also the psychological one. We do not know in what way the psyche is the body and the body is the psyche but we do know that one does not exist without the other. And I would go so far as to suggest that just as the body changes in the course of working with the psyche, so the psyche changes in the course of working with the body. We would do well to remember that the two are not separate entities but mysteriously a totality.

55

[...] movement is the life of the body.

56

As the body becomes more balanced and integrated, we may experience more alertness and clarity of mind, greater openness and spontaneity of being and perceiving. By freeing habitual holding patterns, we can access and more fully express the creativity within us.

Irmgard Bartenieff, figura emblemática da Educação Somática e da Dança, procurava esclarecer os processos pelos quais se dão a integração motora do corpo; como ocorre a integração corporal no movimento, e trabalhava no resgate ou otimização desses processos. "Os Fundamentos de Bartenieff foram desenvolvidos para prover exercícios para a experiência do corpo em movimento com uma atenção perceptiva de como e porque ele está se movendo" (BARTENIEFF, 1980, p. 20, tradução nossa57). Nessa fala de Bartenieff encontramos o pragmático ponto em comum a todos os educadores somáticos: o como nos movemos. Acredita-se que a sabedoria de movimento é latente no corpo; que o corpo reconhece a melhor maneira de se mover. Trabalha-se para que hábitos, comportamentos e circunstâncias que estejam impedindo ou diminuindo o desenvolvimento dessa sabedoria sejam superados ou contornados. Trata-se de desobstruir e fomentar a "inteligência inata do corpo" (HARTLEY, 1995, p. xxx).

Moshe Feldenkrais também se refere à importância da sabedoria instintiva. Mencionando que a expressão de nossos "traços instintivos" mostra-se "essencial para o máximo funcionamento do organismo" (FELDENKRAIS, 1977, p. 22). Feldenkrais relaciona a expressão dos instintos com a possibilitação da emergência da "satisfação orgânica e revitalizadora" (FELDENKRAIS, 1977, p. 23). Nesse ponto, torna-se compreensível o entendimento que a Educação Somática tem de 'instinto'. Esse termo deve ser entendido como uma espécie de conhecimento perceptivo acumulado e que é atuante nas diversificadas circunstâncias vividas, a respeito daquilo que se deve fazer em cada situação. Uma percepção advinda da sintonia entre a inteligência intrínseca ao organismo harmonizado e a alta consciência. Nesse sentido, seres humanos conectados com seus instintos são seres humanos mais harmonizados, mais socialmente autolocalizados e mais conectados com a natureza. A Educação Somática quer ajudar as pessoas a se tornarem mais integradas consigo mesmas, com os outros e com o mundo. Normalmente, quem provou de seus benefícios acredita na possibilidade dessas melhoras.

Em todo aporte teórico referente aos sistemas, métodos e técnicas da Educação Somática, pode-se observar a presença de uma visão holística de ser humano e de mundo. Nessa visão, o ser humano é um todo formado pelas dimensões fisiológica, psicológica, reflexiva, expressiva, social etc. E deve comportar-se e ver-se como algo integrado à sociedade e ao mundo natural58. O mundo construído pelo homem deve ser regido pela harmonia. Nas palavras de Gerda transcritas abaixo, pode-se observar nitidamente a presença desse ideal:

57 Bartenieff Fundamentals were developed to provide exercises for the experience of the body in

motion with an awareness of how and why it is moving.

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A eutonia propõe uma busca, adaptada ao mundo ocidental, para ajudar o homem de nosso tempo a alcançar uma consciência mais profunda de sua realidade corporal e espiritual, como uma verdadeira unidade. Convida-o a aprofundar essa descoberta de si mesmo sem se retirar do mundo, mas ampliando sua consciência cotidiana, permitindo-lhe liberar suas forças criadoras, possibilitando-lhe um melhor ajustamento a todas as situações de vida e um enriquecimento permanente de sua personalidade e de sua realidade social (ALEXANDER, 1991, p. 9).

Em relação à integração com a natureza, já que somos parte dela, Hanna traz nosso olhar para o fato de que não somos os únicos somas a existir nesse planeta. Ele diz: "todos os membros do reino animal são somas, porque todos os animais são seres que possuem auto-organização e funções sensoriomotoras" (HANNA, 1995, p. 346, tradução nossa59). Ao aprofundar-se nesse pensamento, considerando que as células são sensorialmente autoconscientes60, Hanna vai além: as plantas também são somas (HANNA, 1995, p. 346). Desse modo, a ecologia está presente na Educação Somática, pois nela o ser humano é visto e trabalhado como um elemento da natureza que existe dentro de um todo maior; que faz parte de uma rede de relações. Somos um corpo, somos um sistema, somos ossos, músculos, nervos, circulação sanguínea, somos pensamentos, emoções, sensações, somos células, somos água, somos átomos etc. Somos parte de um ambiente, somos um ambiente, somos um pedaço de um grupo, somos unidades de um coletivo etc. A dimensão social compõe o indivíduo assim como este é considerado parte do social. Nessa perspectiva ecológica humana, o indivíduo preza pelo social de modo a não agir egoisticamente em seu comportamento quando este, para beneficiar a si, traz desarmonia aos outros. O mesmo pode ser dito em relação às espécies animais, vegetais e ao mundo mineral: devemos respeitá-las. A lógica não é a de alcançar os interesses próprios acima de qualquer custo. O outro e o mundo natural não são coisas separadas de mim; não estão apenas fora de mim; também estão dentro de mim. Irmgard Bartenieff, Gerda Alexander, Moshe Feldenkrais, Mathias Alexander, Mary Whitehouse e tantos outros, todos prezam em seus discursos, de um modo ou de outro, por esses ideais.