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A expressividade somática em movimento: nomeando aspectos de uma experiência/aprendizado

somatopoético Foram ainda elaborados mais alguns conceitos A autoimpressividade será discutida a seguir, nas próximas páginas Os outros conceitos serão apresentados no último

3.6 A expressividade somática em movimento: nomeando aspectos de uma experiência/aprendizado

Quando estamos nos movendo no estado somático, estamos: ou mirando o movimento, ou sendo o movimento, ou sendo movidos pelo movimento. O trânsito entre esses diferentes lugares do sentir nos coloca em fluxos somáticos. Nisso, diferentes dimensões do nosso ser se comunicam, gerando diversas texturas expressivas no corpo. Como discutido no início deste capítulo, durante as explorações somáticas de movimento, nossas impressões somáticas nos impulsionam a expandir nossa exploração, nos colocando em um estado de retroalimentação somática - é a autoimpressividade. Esta, transborda em nossa forma corporal e em nossos movimentos. Aí reside a expressividade somática. Com a complexificação da vivência somática durante a exploração do movimento, vão se desenvolvendo os

fluxos da somatização, o que faz com que a expressividade do soma

gere a

poética do soma. Quando ao vermos um soma em movimento, nos sentimos

impactados poeticamente, estamos a presenciar o movimento somatopoético.

3.6.1 Fluxos da somatização

Estou denominando

fluxos da somatização o processo de propagação da

consciência por diferentes estados somáticos durante uma vivência de movimento. Esse processo ocorre conforme vão acontecendo idas e vindas entre um estado perceptivo mais proprioceptivo e unifocal, um estado perceptivo mais proprioceptivo e multifocal, um estado perceptivo mais imagético, um estado perceptivo mais cinestésico, um estado perceptivo mais lúdico e um estado perceptivo mais emocional. Na página seguinte, segue uma exposição desses estados em tópicos alistados:

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Who could believe an ant in theory? A giraffe in blueprint? Ten thousand doctors of what's possible could reason half the jungle out of being.

◆ Estado perceptivo mais proprioceptivo e unifocal ◆ Estado perceptivo mais proprioceptivo e multifocal ◆ Estado perceptivo mais imagético

◆ Estado perceptivo mais cinestésico ◆ Estado perceptivo mais lúdico ◆ Estado perceptivo mais emocional

Cada um desses estados pode estar bem intenso, ou pode estar coexistindo, em uma intensidade mais baixa, com outro estado. Não é necessário que todos os estados aconteçam durante uma vivência de movimento para haver fluxo somático. No entanto, quanto mais estados ocorrem, mais complexo o fluxo. Nos parágrafos seguintes apresentarei conceitos criados por mim com o objetivo de nomear e circunscrever semanticamente esses diferentes estados.

O estado proprioceptivo unifocal chamei de

atenção perceptiva; um nome para os

momentos em que a consciência, perceptivamente, está dedicada a focar um único acontecimento motor. Vejo a atenção perceptiva como algo equivalente àquilo que alguns educadores somáticos se referem utilizando o termo 'awareness'.

Ao estado proprioceptivo multifocal, dei o nome

perceptividade dinâmica. Nesse

estado, percebemos o movimento por meio de um foco dinâmico que acompanha o ritmo do movimento; que transita de um lugar para outro do corpo. Nessa dinamicidade podem ocorrer focos simultâneos.

Ao estado mais imagético, no qual a vivência do movimento somático é provocada e alimentada por imagens mentais produzidas por nossa imaginação, dei o nome

perceptividade imagética. Nesse estado, podemos perceber o movimento tanto de modo

focado, quanto de modo pulverizado, quando não há foco da consciência em alguma ou algumas partes corporais. Percebemos o movimento corporal devido a um evolvimento com o movimento imagético que está acontecendo em nossa imaginação, o que chamei de filme

imagético.

Para me referir ao estado perceptivo mais cinestésico, passei a usar a expressão

sensitividade cinestésica. Nesse estado não há foco proprioceptivo, e sim uma percepção

mais pulverizada do movimento corporal no tempo-espaço. É a consciência sintonizada com

o vasto oceano das impressões sensitivas rítmicas do movimento; é surfar208 nesse oceano, ser levado por ele. A lógica pela qual esse estado surge é a abertura e o esvaziamento: me abro para simplesmente sentir-me em variação no tempo-espaço durante o movimento, esvaziando-me de dados proprioceptivos e de pensamentos. Quanto mais nos esvaziamos desses dados, mais aumenta nosso estado cinestésico. Deixamos que o movimento aconteça.

Para o estado mais lúdico, usei a expressão ludicidade cinestésica. Esse estado de consciência é o momento em que o soma se diverte a partir de sua cinestesia. É um divertimento espontâneo, que pode tornar qualquer movimento corporal uma brincadeira acolhedora ou desafiadora. O riso surge causado pelo dentro e pelo fora, pois o caráter relacional desse estágio é marcante. Coisas são descobertas ou redescobertas devido à curiosidade brincante. Desafiamos a nós mesmos a partir de nossos desejos de movimento, os quais brotam tanto de nossas explorações, quanto das observações voltadas para os outros. Por meio de uma dinâmica observação e interação somática, experimentamos corporalmente o que vemos e sentimos no outro, em uma imitação latente de reflexividade. Podemos realizar muitas trocas com o outro, e ser muitas coisas diferentes, provocando-nos a partir da multidimensionalidade do soma.

O estado mais emocional, chamei de cinestesia emocional. Ele está relacionado com um grau alto de ativação dos 'sentimentos fundamentais' abordados por Antônio Damásio, que são aqueles relacionados à malha neuromotora, e que servem de base para todos os sentimentos voltados a outras pessoas e ocasiões (DAMÁSIO, 1996, p.12-16). Segundo Damásio: "[...] a essência de um sentimento (o processo de viver uma emoção) não é uma qualidade mental ilusória associada a um objeto, mas sim a percepção direta de uma paisagem específica: a paisagem do corpo" (DAMÁSIO, 1996, p. 14). Ele esclarece: "[...] os sistemas de que as emoções e os sentimentos dependem de forma crítica incluem [...] de forma mais importante, os setores cerebrais que recebem e integram os sinais enviados pelo corpo" (DAMÁSIO, 1996, p. 14). De acordo com Damásio, os sentimentos fundamentais estão relacionados à percepção individual de conforto e desconforto físico e sensitivo. Durante uma somatização, a memória neuromotora existente na malha neural que interliga o cérebro e os músculos pode ser acionada de modo intenso, de modo que podemos ser pegos por um empuxo emocional vindo das profundezas do mundo somático. Acontece uma mobilização significativa de nossa natureza afetiva. Um exemplo disso se dá quando despertamos uma área que encontrava-se em amnésia sensoriomotora (HANNA,

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Foi no âmbito de uma aula de BMC, no ano de 2014, enquanto eu estava participando de uma vivência conduzida pela professora Tarina Quelho, que ouvi o verbo surfar sendo indicado como um sentimento; um modo de sentir-se movido pelo movimento.

1995, p. 349-350). Esse despertar pode nos fazer vivenciar uma emoção. Outro exemplo se dá quando a consciência está surfando sobre o fundo sensitivo tempo-espacial do movimento, e experienciamos o sentimento de sermos movidos pelo movimento (o que é diferente de perceber-se em movimento). Esse sentimento pode nos emocionar, e passamos então a surfar o mar emocional do movimento.

Quando estamos no estado de cinestesia emocional, o fluxo somático pode nos levar rapidamente de volta à

sensitividade cinestésica. Isso significa que o soma pode ter a

necessidade de baixar a intensidade emocional. O contrário também pode acontecer: o soma pode querer se estender na emoção, ficar lá, durar nisso. Os

fluxos da somatização

são idas e vindas. Se acabarmos voltando para a

sensitividade cinestésica, ela pode,

sequencialmente, nos levar à

perceptividade dinâmica, ou à ludicidade cinestésica: são

possibilidades. Abaixo, segue uma exposição, em formato de tópicos alistados, dos estados juntamente com os conceitos referentes a eles:

◆ Estado perceptivo mais proprioceptivo e unifocal - atenção perceptiva

◆ Estado perceptivo mais proprioceptivo e multifocal - perceptividade dinâmica ◆ Estado perceptivo mais imagético - perceptividade imagética

◆ Estado perceptivo mais cinestésico - sensitividade cinestésica ◆ Estado perceptivo mais lúdico - ludicidade cinestésica

◆ Estado perceptivo mais emocional - cinestesia emocional

A consciência ora observa um movimento, ora observa movimentos simultâneos, ora segue um movimento imagético, ora brinca se movimentando, ora sente o tempo-espaço, ora é tomada por uma emoção vinda do fundo emocional do movimento. Uma dessas possibilidades pode não acontecer. Duas dessas possibilidades podem não acontecer etc.

Para que haja fluxo somático, é preciso que ocorra variação na estimulação perceptiva do movimento. Eu notei que a mais comum inicialização de um fluxo somático se dá com a

atenção perceptiva iniciando a vivência de movimento e desencadeando a

perceptividade dinâmica, a qual, por sua vez, desencadeia ou a ludicidade cinestésica, ou

a

sensitividade cinestésica. Notei também que a

cinestesia emocional surge, mais

frequentemente, do estado de

sensitividade cinestésica. Outra inicialização comum se dá

com a

perceptividade imagética desencadeando a

sensitividade cinestésica, e esta

provocando a perceptividade dinâmica.

Diferentes estratégias podem ser utilizadas para adentrarmos um fluxo somático. Existe, por exemplo, a possibilidade de se atingir o fluxo somático a partir de um momento inicial onde haja apenas um mover-se ao acaso. Nesse mover-se não há um ressaltamento da propriocepção, da emotividade, ou da ludicidade, e também não há cinestesia em nível intenso. Estamos simplesmente fazendo movimentos enquanto temos a consciência focada em outra coisa que não o movimento. Podemos estar nos aquecendo enquanto pensamos em algo. Podemos até mesmo estar com nossa atenção voltada para algo externo enquanto nos movemos: podemos estar conversando com alguém ou observando algo. Em um momento, miramos perceptivamente um movimento que já esteja em andamento no corpo, e em seguida abandonamos esse foco perceptivo, voltando nossa atenção para o foco anterior (alguém, algo, um pensamento). Repetimos isso, e vamos alternando nossa atenção entre o foco motor e o foco externo ou racional. Então, transitamos entre mover-se ao acaso e mover-se focando perceptivamente um movimento. Nisso, podemos passar para a perceptividade dinâmica, ou para a sensitividade cinestésica. Essa situação pode tomar rumos diversos.

Irei agora narrar um processo de encadeamento de fluxo somático iniciado pela

atenção perceptiva. Em atenção perceptiva, focamos um acontecimento motor. Isso induz

um processo de ressaltamento no fundo perceptivo do movimento: uma parte corporal se levanta em nossa percepção, como uma onda sobre a calmaria das águas. Conforme nossa

atenção perceptiva se dinamiza, gerando múltiplas ondas, vamos entrando em

perceptividade dinâmica. O foco de nossa atenção perceptiva passa a saltar de um

acontecimento motor para outro, e passam a ocorrer focos simultâneos. À medida que essa dinamicidade se autoalimente, ela faz nossa percepção do movimento ir se tornando mais ritmicamente sensitiva - menos proprioceptiva e mais cinestésica. Prosseguimos abandonando o jogo de focos proprioceptivos e nos liberando para o cinestésico sentir-se em movimento no tempo-espaço, e entramos em

sensitividade cinestésica. Nesse estado,

vamos passando a nos divertir com o movimento, e a nos desafiar a realizar coisas. Nisso, vamos entrando em

ludicidade cinestésica. Nesse estado, interagimos com o outro,

vivenciando um foco externo do movimento. Aos poucos, a brincadeira vai se "gastando", e vamos retornando à

sensitividade cinestésica. Em dado momento, experienciamos uma

emoção que aflora e firma sua presença, e com isso, vivenciamos o estado de

cinestesia

emocional. Posteriormente, vamos sentindo essa emoção se propagar e retornamos à

sensitividade cinestésica. Em seguida, vamos cessando os movimentos, sentindo que