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1.1 Características elementares

1.1.1 Detalhando o soma e a somatização

Hanna, em seu artigo que compõe a coletânea Bone, breath end gesture (JOHNSON, 1995) - What is Somatics? (HANNA, 1995), esclarece que a conceitualização de 'soma' proposta por ele, e utilizada na Educação Somática, refere-se ao corpo enquanto percebido pela perspectiva da interioridade. O que especifica o soma é a localização daquele que observa o corpo. Se o sujeito que observa é também o sujeito que realiza a ação corporal (observada), o corpo em questão estaria sendo vivenciado como um soma.

Quando um ser humano é observado de uma perspectiva exterior - isto é, do ponto-de-vista da terceira pessoa do discurso - o fenômeno percebido é o corpo humano. Mas, quando esse mesmo ser humano é observado pelo ponto-de-vista da primeira pessoa do discurso, ou seja, a partir de suas próprios sensações proprioceptivas, o que é percebido é um fenômeno categoricamente diferente: o soma humano. (HANNA, 1995, p. 341, tradução nossa42).

Para Hanna, esses dois pontos-de-vista são legítimos na mesma medida. O corpo e o soma possuem igual valor, e ambos são realidades. No entanto, enquanto fenômenos a serem estudados, eles são categoricamente diferentes. Diversas ciências estudam o fenômeno corpo humano muito à partir da perspectiva da terceira pessoa: observando o desempenho dos corpos. A Educação Somática se volta para as sensações de movimento e de ajuste postural proferidas em primeira pessoa: observamos a nós mesmos. Interessa à Educação Somática "o ser humano enquanto experienciado de dentro, por ele mesmo" (HANNA, 1995, p. 343, tradução nossa43). Então, é possível concluir que experimentar-se enquanto soma é estar vivenciando o momento pela condição subjetiva das percepções e sentimentos advindos do movimento existente no corpo, assim como do movimento do

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When a human being is observed from the outside - i.e., from a third-person viewpoint - the

phenomenon of a human body is perceived. But, when this same human being is observed from the first-person viewpoint of his own proprioceptive senses, a categorically different phenomenon is perceived: the human soma.

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corpo no espaço. Encontrar-se na condição de soma é estar integrado com o mundo perceptivo, sensitivo e emocional inerente à motricidade.

Para Hanna criar sua conceitualização de 'soma', certamente ele se inspirou em ideias dos semeadores da Educação Somática. Gerda Alexander, por exemplo, desenvolveu, no âmbito da Eutonia, a ideia de 'presença'. Em curtas palavras, a presença é uma "observação profunda" (ALEXANDER, 1991, p. 10). E desdobrando essa expressão, podemos considerar que a presença é um estado no qual a pessoa está completamente atenta a si mesma cinestesicamente, desperta, disposta e completamente no agora. Para Gerda, movimentar-se no estado de ‘presença’ e movimentar-se sem estar nesse estado são duas coisas muito distintas. Isso fica nítido em seu discurso quando ela compara a Eutonia à ginástica tradicional:

A ginástica tradicional permite a execução, mais ou menos perfeita, de sequências de movimentos aprendidos, mas, sem uma nova "presença", esses exercícios têm apenas um significado relativo; dentro do próprio indivíduo nada de essencial mudará. Esse modo de trabalho não tem nada em comum com a eutonia, porque esta, ao contrário, baseia-se na capacidade readquirida de sentir consciente e individualmente. (ALEXANDER, 1991, p. xi).

Nessas palavras de Gerda, notamos que a presença é uma pré-condição para a prática corporal ser uma experiência transformadora. Como coloca Gerda: “Para que a pessoa consiga um contato real consigo mesma, com o próximo e com o ambiente, é preciso que vivencie conscientemente o seu corpo, no movimento e no contato com o ambiente” (ALEXANDER, 1991, p. xi). Nessas palavras de Gerda encontramos a essência do soma, e em outra fala sua, notamos estar latente a questão da interioridade quando ela diz que, na Eutonia, o movimento corporal "não se deixa reduzir a uma sequência de movimentos independentes, como se o corpo fosse dirigido somente de fora" (ALEXANDER, 1991, p. xi). Assim como Gerda, outros semeadores da Educação Somática também desenvolveram seus modos próprios de falar de um estado peculiar de consciência pelo qual a sensibilidade vivencia o movimento corporal.

Quando Hanna propôs a configuração da Educação Somática enquanto campo do conhecimento, havia espaço, tanto socialmente, quanto cientificamente, para esse novo campo se erigir, pois pessoas estavam lidando com um objeto de estudo que ainda não havia sido muito bem delimitado por nenhuma das Disciplinas científicas existentes: o potencial de cura, harmonização, expressão e autoconhecimento existente na vivência sensível do movimento corporal.

Com o surgimento da Educação Somática, surge, de maneira organizada, uma nova concepção de prática corporal; uma prática que tem como núcleo epistemológico, a conexão entre perceber/sentir e agir. Para perceber, o soma precisa se mover, por que o que ele busca perceber é exatamente o modo como acontece o movimento. No entanto, ele pode sentir sem se mover, como quando são utilizadas visualizações que estimulam as percepções e sentimentos. As visualizações causarão o movimento corporal. Então, de todo modo, o auto-observar-se somático não é, em nenhuma circunstância, sinônimo de passividade. Para Hanna, seria um equívoco compreender o soma como algo passivo que apenas observa, que apenas sente, que apenas aguarda. Nas palavras de Hanna: "O ser humano não é meramente um soma autoconsciente, passivamente observando a si mesmo [...], ele está realizando outra coisa simultaneamente: está agindo sobre ele mesmo; i.e., está sempre engajado no processo de autorregulação" (HANNA, 1995, p. 344, tradução nossa44). Vale então enfatizar que o estado de auto-observação somática é um estado dinâmico de transformação: o soma existe enquanto algo que está modificando a si mesmo. Então, o soma é autoperceptivo e autoatuante ao mesmo tempo, e isso é uma característica emblemática dele; é uma peculiaridade sua. Como observa Hanna: "[...] essas funções interrelacionadas constituem o centro da adaptação e auto-organização somática" (HANNA, 1995, p. 346, tradução nossa45).

Outro esclarecimento importante feito por Hanna consiste no fato de que o soma abrange a percepção em primeira pessoa sem que dele seja excluída a percepção em terceira pessoa, visto que quando em estado somático, não deixamos de perceber o outro e o ambiente:

O soma tem um talento duplo: ele pode sentir suas funções individuais próprias via percepção de primeira-pessoa, e pode perceber estruturas externas e situações objetivas via percepção de terceira-pessoa. Ele tem o talento distinto de possuir dois modos de percepção (HANNA, 1995, p. 346, tradução nossa46).

É bem possível complementar o raciocínio de Hanna observando que a maneira como percebo e recebo o ambiente e o outro é fruto da maneira como me percebo, sendo igualmente possível pensar que a maneira como me percebo é uma semente brotada das percepções que tenho do mundo. Já que o soma é, intrinsecamente, algo que modifica a si

44 The human is not merely a self-aware soma, passively observing itself [...] it is doing something else

simultaneously: it is acting upon itself; i.e., it is always engaged in the process of self-regulation.

45 [...] these interlocked functions are at the core of somatic self-organization and adaptation.

46 The soma has a dual talent: it can sense its own individual functions via first-person perception, and

it can sense external structures and objective situations via third-person perception. It has the distinctive talent of possessing two modes of perception.

mesmo, então, seu olhar para as situações vivenciadas ou observadas também está em modificação, não sendo algo cristalizado. O estado somático modifica ou dinamiza a leitura que fazemos do mundo e das coisas, pessoas e acontecimentos que nele estão; é um estado que ecoa em nossas maneiras de interagir com o mundo.

Como nos lembra Bonnie Cohen, "Cada indivíduo é absolutamente único" (COHEN, 2014c , p. 8), o que me traz à memória uma frase de uma música de Raul Seixas: "Cada cabeça é um mundo, Raimundo." E de fato, como ponderado pela Ética, dentre outras disciplinas, existe unicidade em cada ser humano, o que aponta para a irrepetibilidade de cada vida; para o valor inigualável de cada ser. Não há ninguém igual a ninguém. Disso podemos observar que também existe uma unicidade somática: cada soma é um soma, assim como cada momento é um momento. O que está então em questão é a subjetividade. Logo, os dados somáticos são dados subjetivos. Estes dados são diferentes dos dados científicos objetivos e passíveis de repetibilidade.

Para Hanna, é fundamental lembrar que as áreas que lidam com o corpo pela objetividade, como por exemplo a Fisiologia e muitos ramos da Medicina, não devem deixar de considerar as informações da primeira-pessoa, ou seja, não devem ignorar os dados subjetivos (HANNA, 1995, p. 343). Hanna combate discursos que neglicenciam a importância dos dados somáticos: "Evitar evidências pelo fato destas serem 'fenomenológicas' ou 'subjetivas' é algo não científico. Repudiar tais dados considerando-os irrelevantes e/ou não importantes é algo irresponsável" (HANNA, 1995, p. 343, tradução nossa47). Para Hanna, todo repúdio a dados somáticos mostra que a ciência tradicionalista ainda encontra-se entranhada no comportamento de muitos cientistas. Esse repúdio seria um resquício do modo como foi erigido o conhecimento científico (considerando-se a ciência moderna): a partir da distinção entre os dois pontos de vista - externo (terceira-pessoa) e interno (primeira-pessoa) - sendo que o ponto de vista da terceira pessoa se fez dominante, e o ponto de vista da primeira pessoa fora excluído. Segundo Hanna, essa exclusão da subjetividade se deu por princípios edificados no mundo científico para o resguardo da ciência, como: a condição do método, o peso da objetividade e a prerrogativa do distânciamento entre observador e objeto de estudo. Seguindo-se os caminhos apontados por tais princípios, observou-se o céu, os astros, as rochas, os objetos, os animais, as plantas, as moléculas, os átomos etc. Construiu-se armas, máquinas; manipulou-se medicamentos e alimentos sintéticos.

Ainda de acordo com Hanna, observa-se que também o corpo humano é estudado via cumprimento dos princípios da ciência moderna (HANNA, 1995, 343-345). A fisiologia

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To avoid evidence that is 'phenomenological' or 'subjective' is unscientific. To dismiss such data as irrelevant and / or unimportant is irresponsible.

observa o homem pelas lentes dos microscópios. O corpo é observado, analisado e medido como uma entidade objetiva. Princípios e leis universais da física e da química se aplicam a esse corpo. A medicina, para tratar ou curar as pessoas, utiliza os dados da fisiologia, mas deve fazer isso levando em conta também a subjetividade de cada caso. É necessário, também, coletar dados somáticos. Entretanto, muitas vezes, por um comportamento médico bastante tecnicizado, a voz do soma não é chamada ao pronunciamento. Hanna atenta para o fato de áreas como a Fisiologia, a Medicina e mesmo a Psicologia terem, como parte de seus históricos, alguma negligência para com dados produzidos pela primeira pessoa do discurso. Extendendo o pensamento de Hanna para a arte da dança, observando a história desta arte, podemos considerar que a objetividade esteve acima da subjetividade em vários contextos. Ainda na atualidade, em muitos ambientes de ensino e de composição coreográfica, a voz em terceira-pessoa é superutilizada, ficando em silêncio a voz em primeira-pessoa, o que não poderia, nesses casos, ser encarado como uma irresponsabilidade, mas como uma escolha. Muitas coreografias são montadas a partir de movimentos pré-definidos balizados esteticamente por um olhar externo.

Passado o tempo, com as mudanças ocorridas na ciência e no campo terapêutico, a subjetividade ganhou mais espaço. Na atualidade, se desenvolve em diferentes áreas do conhecimento o resgate de saberes provenientes da voz da primeira-pessoa. A questão colocada por Hanna referente à negligência para com os dados somáticos pode ser encarada hoje como um importante lembrete: o soma precisa ser considerado uma instância pela qual a subjetividade fala importantes informações ao mundo e à ciência; existe relevância nos dados somáticos, de modo que aos procedimentos pedagógicos/terapêuticos da Educação Somática não se pode impor rígidos critérios da ciência tradicional.

O fato de existirem duas perspectivas para se observar o corpo, conforme posto em debate por Hanna, torna o estudo do ser humano mais complexo, porque existem dois pontos de vista a serem levados em questão (HANNA, 1995, p. 343). Por se relacionarem distintamente com o mundo perceptivo/sensitivo e emocional, as duas perspectivas da observação gerarão dados e resultados também significativamente diferentes. Em relação a essa diferença, Hanna enfatiza que elas devem ser encaradas como coisas complementares entre si, e não como informações rivais. Quando aplicadas sobre uma mesma pessoa, as duas perspectivas irão resultar em informações muito diferentes. O ponto de vista da primeira pessoa cria dados a partir de imediatas propriocepções, o que confere a esses dados uma característica de serem únicos, não possíveis de serem reproduzidos. Diferentemente desses dados, os dados científicos objetivos, provenientes do ponto de vista da terceira pessoa, devem ser passíveis de reprodução, e as condições do procedimento devem ser passíveis de serem replicadas corretamente. Dados científicos, então, são

previsíveis e mensuráveis. Foram gerados a partir de condições construídas pela objetividade. Dados somáticos advêm da subjetividade, e não podem ser medidos, nem pré- definidos. Eles "não precisam ser primeiramente mediados e interpretados através de um grupo de leis universais para posteriormente tornarem-se factuais" (HANNA, 1995, p. 342, tradução nossa48).

Conforme fora esclarecido na introdução desta tese, nesta tese considera-se que, quando os dados somáticos são gerados pela movimentação corporal ativa e voluntária, ainda que motivada por um movimento imagético, e vivenciada perceptivamente, sensitivamente ou emocionalmente, está ocorrendo uma somatização. Essa definição deriva do significado que Bonnie Cohen, no âmbito do BMC, atribuiu ao termo 'somatização', o qual pode ser compreendido como 'movimentação corporal durante a qual está ocorrendo um monitoramento perceptivo do movimento' (COHEN, 1993; 2015). Bonnie deu a esse termo um uso semântico diferente do que fora dado por algumas linhas de pensamento da Medicina e da Psicologia. Bonnie aproximou o termo 'somatização' do termo 'soma' - tal qual este é trabalhado conceitualmente na Educação Somática. Em seu texto Introdução ao Body-Mind Centering (COHEN, 2015, p. 23), Bonnie conta que passou a usar o termo 'somatização' para fazer uma distinção com 'visualização' quando a visualização é vivenciada em repouso corporal, com os dados somáticos sendo gerados apenas via imaginação, sem haver movimento voluntário. Nas palavras de Bonnie:

Eu usei esse termo 'somatização' para engajar diretamente a experiência cinestésica, em contraste com 'visualização', que utiliza a imaginação visual para evocar uma experiência cinestésica. Por meio da somatização as células do corpo estão informando o cérebro tanto quanto o cérebro está informando as células. Eu derivei essa palavra 'somatização' da palavra 'soma' conforme usada por Thomas Hanna" (COHEN, 1993, p. 1, tradução nossa49).

A visualização e a somatização serão detalhadas no capítulo 3, em 'Modos de trabalhar o desenvolvimento da expressividade do soma' (página 138). Contudo, vale adiantar aqui que a visualização e a somatização, apesar de diferentes em suas essências,

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[...] do not need, first, to be mediated and interpreted through a set of universal laws to become factual.

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I used this word 'somatization' to engage the kinesthetic experience directly, in contrast to

'visualization' which utilizes visual imagery to evoke a kinesthetic experience. Through somatization the body cells are informing the brain as well as the brain informing the cells. I derived this word 'somatization' from Thomas Hanna's use of the word 'soma' to designate the experienced body in contrast to the objectified body. When the body is experienced from within, the body and mind are not separated but are experienced as a whole.

dão suporte uma à outra. Uma visualização pode levar a uma somatização e vice-versa. Além disso, elas podem ocorrer simultaneamente.

É interessante observar que apesar da ideia de somatização presente em linhas de pensamento mais tradicionais das Ciências Psicológicas e da Medicina ser diferente da ideia de somatização existente no BMC, elas se aproximam. Ao me perguntar como elas se aproximaríam, rascunhei algumas ideias desenvolvendo diálogos comigo mesma, e cheguei à seguinte frase: "Chegando perto da sensação, vc chega perto da linguagem dos nervos." - uma frase que carrega em si uma questão nuclear que todas essas três áreas procuram trabalhar: o restabelecimento de trânsitos harmônicos entre sensação, percepção e consciência. A noção de somatização presente em linhas tradicionais da Medicina e das Ciências Pscicológicas se aproxima da noção de somatização presente na Educação Somática (por meio do BMC) devido a ambas considerarem a existência da linguagem dos nervos e a tentativa de se acessar essa linguagem. A medicina lida com isso ao buscar reverter o sintoma físico, mudando o quadro dos padrões nervosos, o que muda a sensação e a percepção. As ciências psicológicas lidam com isso buscando propiciar o encontro da consciência analítica com discursos do inconsciente, alterando assim padrões perceptivos, revertendo sensações, dinamizando padrões nervosos. A Educação Somática lida com isso trazendo a percepção do movimento, da forma e volume corporal, bem como dos processos e conteúdos corporais para o espaço da consciência, procurando sentir o movimento de modo a se aproximar das sensações e comunicar novidade aos padrões nervosos da motricidade.