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O processo educacional/terapêutico somático: aspectos a serem ponderados e configurações

1.3.1 Aspectos do ensino-aprendizagem

Aprendizado somático significa ampliação de possibilidades corporais, sendo algo muito distinto do processo que ocorre em práticas corporais que visam desempenho. Não há a intenção de condicionar o corpo para que ele atinja determinada meta. Como coloca Hanna, o processo educacional somático consiste em uma vivência que "[...] vai expandindo o alcance da consciência volitiva. Isto não deve ser confundido com condicionamento" (HANNA, 1995, p. 349, tradução nossa101). Não existem resultados previamente definidos, sendo que o percurso é mais importante que o ponto final. Não se pretende realizar tal movimento ou postura. Não se pretende aprender esse movimento em si, ou essa postura, mas sim aprender como ocorre o movimento de modo facilitado ou harmônico; como se chega à postura e como ela é mantida pela economia do esforço. O caminho percorrido é apreciado por meio da escuta ou observação das percepções posturais e de movimento, o que acontece de acordo com o nível de sensibilidade alcançado. É como dizia Feldenkrais: "Precisamos aprender a aprender" (FELDENKRAIS, 1994, p. 15). Algo que nos demanda "[...] aprender com seriedade mas sem solenidade, com paciente objetividade e sem seriedade compulsiva. Cerrar os punhos, tensionar as sombrancelhas, contrair o maxilar, são manifestações de esforço impotente" (FELDENKRAIS, 1994, p. 15).

Márcia Guimarães, psicóloga e educadora somática pelo Método de Feldenkrais, mencionou, na apresentação da edição brasileira de O poder da autotransformação, algumas características do modo como Feldenkrais conduzia as "propostas-convite" de movimento que fazia a seus alunos: inteligência, engenhosidade, criatividade, observação do processo e não da meta, respeito pelos próprios limites, despreocupação com o certo e o errado, curiosidade e humor (GUIMARÃES, 1994, p. 7).

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Somatic learning is an activity expanding the range of volitional consciousness. This is not to be confused with conditioning [...].

No processo de educação somática102, o professor precisa “desenvolver em cada um [dos alunos] a possibilidade de ser seu próprio mestre” (ALEXANDER, 1991, p. 31). Essa fala de Gerda Alexander, que fora direcionada por ela ao ensino da Eutonia, pode perfeitamente ser usada de modo genérico para todas as abordagens da Educação Somática, podendo ser dito o mesmo em relação a esta outra frase dita por ela: "o professor deve ser capaz de guiar seus alunos de modo a que estes sintam que seus progressos se devem, principalmente, a seus próprios esforços” (ALEXANDER, 1991, p. 31). Nessa missão, o professor precisa também fazer com que seu aluno se abstenha de julgar-se, em termos de cometer juízos de valor, de se comparar com alguma referência ou algum desempenho alheio. Nisso, estão inclusas coisas como se vangloriar ou se menosprezar, se considerar correto ou incorreto. Julgamentos como esses travam o processo de aprendizado somático. Como coloca Gerda, é muito importante “desenvolver no aluno a capacidade de observar, sem preconceitos, as reações que se produzem em seu próprio corpo" (ALEXANDER, 1991, p. 33).

A observação das percepções corporais dever ser uma observação objetiva, de modo que a pessoa que esteja em aprendizagem pratique o dicernimento e desenvolva a "discriminação aguçada" (FELDENKRAIS, 1977, p. 83). Como coloca Feldenkrais, sem a habilidade de diferenciar "não pode haver aprendizado e, na certa, nenhum aumento na habilidade de aprender" (FELDENKRAIS, 1977, p. 83). E ainda: "a discriminação é a mais fina quando o estímulo é o mais leve" (FELDENKRAIS, 1977, p. 83). Para Gerda Alexander, é preciso também "aprender a discernir entre imaginação e sensação real” (ALEXANDER, 1991, p. 33). Essa fala de Gerda precisa ser bem compreendida, pois tal capacidade é, de fato, muito importante, já que podem ser muitos os enganos perceptivos. No entanto, afirmar a importância dessa capacidade não é o mesmo que afirmar que a imaginação não seja útil ou que não haja lugar para ela no processo de aprendizagem somática. Ser capaz de discernir entre percepções reais e percepções ilusórias é fundamental, e isso não deslegitima o trabalho com a

inventividade perceptiva

103 nos contextos em que estas se tornam interessantes enquanto estratégia de aprendizado e crescimento.

A fim de exercitar a capacidade de discernimento perceptivo, a pedagogia da Eutonia utiliza uma estratégia para fazer com que iniciantes verifiquem a repercussão dos pensamentos e sentimentos no organismo e vice-versa: fazer com que a observação da

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Conforme esclarecido na nota 14, na página 6 da introdução desta tese, a grafia com iniciais minúsculas é usada como sinônimo de 'processo educacional somático'.

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Formulei essa expressão para me referir às imaginações por meio das quais despertamos em nós mesmos novas percepções e sentimentos de movimento e postura. Imaginamos coisas ou processos irreais existindo ou acontecendo em nós, ou em nossa relação com o ambiente, ou ainda, em nossa relação com o outro.

percepção vivenciada seja acompanhada de alguma medição, como do pulso, da temperatura ou do tônus. Quando finalizada uma determinada atividade, pode-se dirigir a atenção do aluno para uma parte específica do corpo, como um pé, por exemplo, para que nele e em suas diferentes partes, possam ser percebidas mudanças mensuráveis da circulação e do tônus muscular. Pode-se também pedir que ele faça alguma movimentação e que em seguida volte a repousar, para que outras mudanças mensuráveis possam ser apreendidas. E nesse ponto, comparações entre partes são sempre úteis, pois ajudam a evidenciar diferenças. No exemplo do pé, pode-se sugerir que seja observada a diferença de aspecto e de sensitividade entre um pé e o outro (ALEXANDER, 1991, p. 34). Essas estratégias narradas por Gerda são úteis não só para trabalhos em Eutonia, sendo válidas de modo geral. Tais estratégias são também bastante sugeridas por Feldenkrais.

Um aspecto-chave concernente à capacidade de discernimento, diz respeito ao fato de que essa capacidade está diretamente relacionada com a capacidade de dosar o esforço, ou seja, a força que é usada no movimento, no impulso inicial e na manutenção do movimento. "Porque se se pretende reconhecer pequenas mudanças de esforço, este deverá ser reduzido em primeiro lugar. Um controle melhor e mais delicado do movimento só é possível por um aumento na sensibilidade, por uma habilidade maior de sentir diferenças" (FELDENKRAIS, 1977, p. 83).

A pessoa deve estar realmente livre em sua observação, a ponto de perceber que ao realizar novamente uma investigação motora já realizada anteriormente, ela pode encontrar um resultado novo, diferente. E mesmo que o resultado seja semelhante, as percepções e sentimentos podem ser variados. É uma questão de momento: “[...] um mesmo exercício, realizado em momentos diferentes, provoca na mesma pessoa reações diversas ou opostas” (ALEXANDER, 1991, p. 34). Um mesmo estímulo pode gerar uma pluralidade de impressões. “Essas experiências [...] ensinam aos professores e aos alunos que não há uma solução definitivamente válida, e que não se devem ater a receitas que tenham dado bons resultados, mas que convém reexaminá-las constantemente” (ALEXANDER, 1991, p. 34- 35).

Na tarefa de estimular a observação perceptiva e sensitiva do movimento, o profissional que conduz um processo de educação somática104 estimulando verbalmente os alunos toma cuidado com o uso de sugestões e evita sugestões diretas. Isso ocorre porque, a depender das sugestões feitas, pode haver um direcionamento da observação do aluno, o que pode limitar suas descobertas. Para Gerda Alexander, sugestões diretas “não permitem que a pessoa observe realmente os processos tal como os experimenta em seu organismo

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Conforme esclarecido na nota 14, na página 6 da introdução desta tese, a grafia com iniciais minúsculas é usada como sinônimo de 'processo educacional somático'.

num determinado momento” (ALEXANDER, 1991, p. 34). A fala necessita ser clara. Não se deve usar um tom sugestivo que induza resultados, pois é preciso garantir que cada pessoa possa reconhecer sua própria realidade. Gerda exemplifica: “Fala-se de temperatura do corpo, não de calor ou frio; pede-se ao aluno que sinta seu corpo, sem sugerir-lhe uma qualidade (pesada ou leve)” (ALEXANDER, 1991, p. 36). Nesse contexto, novas sutilezas entram no jogo: o modo de falar, de indagar e o tom da voz.

O profissional que conduz uma vivência educacional/terapêutica somática raramente demonstra o que está pedindo. A pessoa ou aluno que participa da vivência vai achando seus próprios caminhos, encontrando por si mesma o movimento, “uma vez que não se trata de uma imitação mas, sim, de uma transmissão de experiências" (ALEXANDER, 1991, p. 36). São propostos objetivos para as pessoas, e assim elas vão avançando. O profissional adapta as proposições para que todos possam tomar consciência daquilo que está sendo colocado em jogo, e notem que essa consciência está efetivada na sala, nas outras pessoas. É rico para o processo de aprendizado quando a pessoa nota, observando a desenvoltura dos outros, que existem “diversas maneiras de alcançar o mesmo fim” (ALEXANDER, 1991, p. 37).

O desempenho e o comportamento do aluno são dedicadamente observados pelo profissional que conduz o aprendizado somático; tanto o comportamento corporal, quanto o comportamento orgânico. Ao tratar desse assunto no âmbito da Eutonia, Gerda Alexander afirma que o eutonista deve ir para além da observação, experimentando em si o tônus que reconheceu em seu aluno, o ritmo e a amplitude respiratória, a qualidade da voz etc. Para ela, quando o eutonista vivencia o comportamento do aluno, coisas são reveladas a ele; coisas físicas e psíquicas sobre esse aluno e sobre o estado em que ele se encontra no desenvolvimento da movimentação harmônica (ALEXANDER, 1991, p. 35).

Essa admirável sacada de Gerda torna ainda mais inegável o fato de que o mediador do aprendizado somático precisa ser, antes de qualquer outra coisa, um soma bem desenvolvido. Esse é um ponto crucial no que tange o processo de ensino-aprendizado em Educação Somática. O mediador precisa possuir uma sofisticada bagagem somática, ou seja, ele precisa ter passado por um frutífero processo de educação somática105. Isso é muito presente no discurso de Gerda, quando ela fala do professor de Eutonia: “Para ser pedagogo em eutonia, assim como para utilizar esse método em terapia, é indispensável aprender primeiro a viver a eutonia no próprio corpo. É a condição primordial” (ALEXANDER, 1991, p. 33).

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Conforme esclarecido na nota 14, na página 6 da introdução desta tese, a grafia com iniciais minúsculas é usada como sinônimo de 'processo educacional somático'.

O mediador somático, entretanto, nunca será alguém 'finalizado' em seu alcance somático, de modo que está eternamente em aprendizado. Charlotte Selver narra um momento de sua vida que tem tudo a ver com a faceta continuamente investigativa da personalidade somática do mediador somático. Selver tornou-se aluna de Elsa Gindler quando esta havia entrado em um momento peculiar de sua vida:

Quando fui até Elsa Gindler pela primeira vez, em 1923, ela estava muito interessada na respiração e nas tendências positivas do organismo: de curar a si mesmo; se renovar; se equilibrar. Gindler tinha desistido de qualquer ensinamento, ela disse: "Não quero mais ensinar; quero procurar; quero estudar. Eu quero descobrir, e qualquer um que queira vir comigo para estudar e descobrir junto é bem-vindo." Esse foi um tempo magnífico que tivemos todos juntos. As pequeninas reações e as menores descobertas eram levadas muito a sério (SELVER, 2013, s.p. tradução nossa106).

As palavras finais dessa lembrança de Selver refletem muito bem a essência do processo somático: o despertar para os detalhes. Um autêntico mediador do aprendizado somático, por mais que seja experiente, nunca irá achar que já encontrou todos os detalhes possíveis de serem conhecidos. Ele transmite essa enorme disposição curiosa a seus alunos, para que eles sintam como é frutífero carregar consigo esse comportamento. Observemos mais um trecho de Selver, no qual ela narra procedimentos das aulas de Gindler:

Quando a aula começava, na parte da manhã, durante a primeira hora e meia, havia um trabalho de respiração. Em seguida, gastávamos tempo com aspectos do funcionamento interno relacionados ao como se mover. E então, nós explorávamos o modo como lidamos com grandes questões: como realizamos tarefas difíceis na vida diária; como conduzimos outras pessoas; como podemos iniciar o contato com elas; como falamos com elas; como ajudamos uma pessoa a descansar mais, ou a se tornar mais viva, ou mais equilibrada. Gindler tinha um profundo interesse pelos modos como atuamos em momentos de estresse. Essas possibilidades eram intermináveis. Trabalhávamos atendendo uns aos outros, uns com os outros e sozinhos. Podíamos trabalhar o dia inteiro com uma atividade, fosse em aula, fosse sozinhos. Era um profundo estudo humano que abarcava todas as coisas que um ser humano poderia fazer. (SELVER, 2013, s.p. tradução nossa107).

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When I first came to Elsa Gindler in 1923 she had become very interested in breathing and the organism’s positive tendencies: to heal itself; to renew ; and to balance. Gindler had given up any teaching, she said: “I don’t want to teach anymore; I want to find out; I want to study. I want to discover and whoever wants to come with me, to study and discover together, is very welcome.” It was a magnificent time we all had together. The tiniest reactions and the smallest discoveries were taken very seriously.

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When class began in the morning there was first one and a half hours work on breathing. Next, we would spend time with inner functioning as it related to how we moved. Then, we would explore how we dealt with bigger questions: how we go into difficult tasks in daily life; how we approach

Como pode ser notado no teor do trecho citado, no processo de autoconhecimento e exploração somática, cada pessoa precisa se sentir bem a vontade com a tarefa que está realizando. Não há como haver um resgate ou um nascimento da sensibilidade profunda se não houver conforto consigo mesmo e com o ambiente. Nesse aspecto, o processo educacional/terapêutico de aprendizagem somática pode ser, em um primeiro momento, desafiante para muitas pessoas, pois, ser tocado por alguém, tocar alguém e se mover sem que seja a imitar alguém são coisas que podem ser experienciadas como sendo estranhas ou desagradáveis. Entretanto, com o tempo, comumente a estranheza transforma-se em confiança.

O que é indiscutível, é a importância do toque no processo educacional/terapêutico somático. E essa importância é grande, pois o toque é um poderoso instrumento de repadronização sensoriomotora108. Em relação ao toque, Susana Kesselman adverte o mediador somático ao dizer que é necessário "aprender a tocar, mas também aprender a não tocar" (KELSSEMAN, 2005, p. 104, tradução nossa109). Essa advertência feita por Kesselman se refere à possibilidade do toque ser recebido como algo invasivo, a depender do modo como acontece e do momento. Nem sempre o toque é algo produtivo. "Há momentos nos quais o outro corpo necessita estar em contato consigo mesmo, ou não está preparado para ser tocado" (KELSSEMAN, 2005, p. 104, tradução nossa110). O tocar precisa ser "flexível" e "atento às necessidades do outro" (KELSSEMAN, 2005, p. 104, tradução nossa111). Caso não o seja, ele acaba prejudicando o processo de aprendizado, interferindo na expressão do aluno, e no seu ritmo de desbloqueio.

A Educação Somática, trabalhando a capacidade de contato das pessoas, lida, ela mesma, com o contato como um instrumento de trabalho. O modo de olhar, de falar, de ouvir são todos importantes para o mediador do processo educacional/terapêutico somático. A observação antecede o toque e as proposições de movimento. E apesar da observação objetivar o alcance de revelações referentes ao aluno, ela deve ser isenta de julgamentos valorativos. Nessa missão, o mediador somático busca ler a pele da pessoa, mais que seu olhar. O olhar ele recebe e sente. Susana Kesselman, importante eutonista argentina faz algumas observações referentes à leitura da pele: