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somatopoético Foram ainda elaborados mais alguns conceitos A autoimpressividade será discutida a seguir, nas próximas páginas Os outros conceitos serão apresentados no último

3.2 Fundamentos para o desenvolvimento da expressividade somática

Os três fundamentos aqui apresentados - mudança, autonomia e troca - foram identificados por mim no arcabouço teórico das diferentes abordagens educacionais/terapêuticas somáticas. Eles nem sempre estão explicitados nesses arcabouços. Tomei-os como fundamentos para o desenvolvimento da expressividade somática, ou seja, como propósitos elementares que orientam o trabalho de

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"À quoi peut servir d'avoir de la technique si nous ne nous en servons pas? Quelle est la fonction d'un comédien sinon représenter pour un public? D'un artiste sinon présenter son oeuvre dárt?"

desenvolvimento do

movimento somatopoético apontando a missão que reside nesse

trabalho.

3.2.1 Mudança

O mundo é mudança, a vida é mudança. Não é possível ter controle sobre o processo de mudanças circunstanciais no qual estamos imersos na vida. O aprendizado do

movimento somatopoético também é um processo de mudança. Como fora falado por

Hanna, o soma é algo em constante mudança (HANNA, 1995). Se não houver mudanças em andamento, não há como estar acontecendo um aprendizado somático. "A mudança é o fator constante" - fora escrito no capítulo 2. No entanto, existe algo importante que Feldenkrais costumava frisar: o fato de que, à medida que uma mudança se estabiliza, ela se torna um hábito (FELDENKRAIS, 1995, p. 28). Por outro lado, hábitos que não são reforçados vão se tornando opacos, à medida que comportamentos deixam de ser recorrentes. Então, há em nós um movimento de geração e desconstrução de hábitos. Cada nova circunstância traz a necessidade de novas mudanças. Gradativamente, a novidade surgida em nós, sendo constantemente revisitada, se torna algo habitual. E talvez este hábito adquirido acabe cedendo lugar a outro.

No entanto, por termos padrões de pensamento, também temos dificuldade em aceitar mudanças. Muitos dos nossos hábitos nos acompanharão. Se não até o fim da vida, pelo menos por um longo tempo. Alguns são amados por nós, outros tolerados. Outros, nós desgostamos. É muito difícil controlar completamente nosso próprio processo de mudança, mas podemos ser proativos nesse processo, atuando sobre ele, ao invés de sermos inconscientes a ele.

Ruthy Alon, no livro em que aborda práticas de Feldenkrais (Espontaneidade consciente), aconselha o aluno:

Em seu confronto com seu organismo, o que lhe sobra não é a ação realizada mas a resposta do organismo a essa ação. O que importa é até que ponto o organismo está disposto a aceitar a direção que você lhe ditou. [...] Essa reação, às vezes, é contrária à intenção da ação. O músculo estendido à força reagirá contraindo-se com a mesma intensidade, e essa reação tem a mesma consistência de um reflexo." (ALON, 2000, p. 30).

No movimento somatopoético, chacoalhamos nossos hábitos, arejamos os hábitos, e com isso, criamos um ambiente mais facilmente mutável. Como colocado por Feldenkrais: "Cada padrão de ação que se torna amplamente assimilado interferirá com os padrões das

ações subsequentes" (FELDENKRAIS, 1977, p. 38). A sensibilidade é a base da mudança. Sem uma mudança de sensibilidade, não há real mudança. Logo, a mudança tem que vir de dentro, não se efetivará se for imposta. O apuramento da sensibilidade é então o núcleo da questão.

O medo do novo não é frutífero, embora ele possa surgir. Para quem não tem o costume de fazer uma inversão sobre as mãos (bananeira) ou de rolar sobre o chão no plano sagital (cambalhota), a probabilidade de que o medo surja é alta. No entanto, o medo pode ser transformado em vontade, conforme o fator que assusta for sendo percebido de outro modo, como um desafio. Para que isso ocorra é preciso que surja confiança. Para que a confiança surja, é preciso surgir entusiasmo e habilidade. Para que surja habilidade, é preciso haver mudança perceptiva e agregação de conhecimento. Visitando movimentos mais simples que preparem o corpo para a bananeira e para a cambalhota, a percepção será desenvolvida, a experiência ensinará coisas e a habilidade irá aflorar, o que fará com que o medo dê lugar à curiosidade e à disposição. O que está em jogo não é fazer uma bananeira ou uma cambalhota, mas como fazer, e esse 'como' precisa ser apreendido corporalmente e não apenas intelectualmente.

3.2.2 Autonomia

Na exploração do

movimento somatopoético, a pessoa que vivencia o movimento

precisa ser pró-ativa em seu processo de aprendizado. Quando se trata de um processo de ensino-aprendizagem, ou seja, quando existe a relação professor-aluno, o professor deve estimular a autonomia do aluno. É como coloca Gerda Alexander ao se referir ao aluno de Eutonia: “Ele mesmo tem que fazer suas descobertas e trabalhar para sua evolução" (ALEXANDER, 1991, p. XIX). Ao professor cabe a orientação, a instrumentalização, o acompanhamento e a motivação do processo, sendo que motivação, como coloca Gerda, "não tem nada a ver com passividade, nem com influência normativa sobre o aluno” (ALEXANDER, 1991, p. XIX).

Para que haja uma expressão autoral no movimento, o explorador do movimento precisa tomar as rédeas de seu aprendizado, adentrando a autoaprendizagem. Para Feldenkrais, a autoeducação nos dá o poder de reverter condicionamentos impostos por sistemas educativos. Ela "influencia o modo pelo qual a educação externa é adquirida" (FELDENKRAIS, 1977, p. 19). É interessante notar que a autoaprendizagem pode ocorrer não só quando estamos sozinhos, em estudos realizados individualmente, mas também em coexistência com a experiência de estarmos participando de uma aula dada por um professor, ou de uma vivência experimentada em grupo. A curiosidade do movedor somático

impulsiona sua autonomia, e à medida que esta se desenvolve, ele se torna mais livre em seu modo de se mover e de ser.

É necessário conhecer e respeitar o próprio ritmo, pois a autonomia brota quando o tempo pessoal é reconhecido e considerado. Peggy Hackney aconselha o movedor somático: "Deixe-se ficar com uma experiência até que você a sinta completa" (HACKNEY, 2002, p. 56, tradução nossa186). No entanto, a autonomia floresce quando o tempo pessoal interage produtivamente com o tempo do outro, do coletivo e do social.

3.2.3 Troca

O relacionar-se é uma preciosa instância de aprendizado. Com o

movimento

somatopoético não haveria de ser diferente. A relação com o outro dinamiza o soma de fora

para dentro. O outro é um mundo a parte. Um mundo no qual posso entrar, e que posso acolher. Lá se passam coisas que não se passam em mim. Então, pelo contato com esse mundo, eu posso passar a olhar para mim mesmo com olhos diferentes. Relacionando-se comigo, o outro olhará para si mesmo com olhos diferentes. É como nos explica Gerda Alexander: "Nosso comportamento reflete nosso inconsciente e repercute no inconsciente dos outros, o que, por sua vez, provoca uma mudança de seu comportamento" (ALEXANDER, 1991, p. 45).

O aprendizado, quando compartilhado com o outro, me traz surpresas; instiga-me a maneira como o outro lida com os conteúdos. Quando ao invés de sermos dois, somos vinte, vou vendo meu reflexo em cada um. Reconheço neles minhas dificuldades, minhas facilidades, meus potenciais e meus desejos de alcance. Ao observar cada um em sua singularidade, noto que são múltiplas as minhas possibilidades. Porque, como coloca Gerda Alexander, constatar que há "diversas maneiras de alcançar o mesmo fim" (ALEXANDER, 1991, p. 37) enriquece cada um que está a formar o coletivo.

As parcerias proporcionam muitas experiências que a pessoa sozinha não vivenciaria, como: ser massageado, ser olhado, ser seguido, ser levantado, ser conduzido etc. O coletivo também pode proporcionar essas vivências: ser carregado por um grupo, andar sobre um chão móvel feito de pessoas, distribuir o foco do olhar entre diferentes parceiros etc. As mudanças geradas em nós pela experiência das trocas que vivenciamos podem ser imediatas ou de longa duração - sementes em latência, novidades maturadas com o tempo.

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3.3 Princípios elementares para o desenvolvimento da expressividade somática