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somatopoético Foram ainda elaborados mais alguns conceitos A autoimpressividade será discutida a seguir, nas próximas páginas Os outros conceitos serão apresentados no último

3.1 Questões preliminares

3.1.1 Autoimpressividade e expressividade

Em uma conversa indireta realizada no ano de 1982 entre Monroe Beardsley e a dupla Sally Bannes e Nöel Carroll, é desenvolvida a dialética 'dançar não é simplesmente mover-se, mas mover-se pode ser dançar' (BEARDSLEY, 2008; BANES; CARROLL, 2008). Beardsley, em um artigo que irá desencadear a resposta posteriormente publicada por Banes e Carroll, defende que a dança é algo que transcende o 'simplesmente mover-se'. Na opinião de Beardsley, para que o movimento possa assumir a forma de um movimento de dança precisa haver uma espécie de superfluidez no movimento, e além disso, é necessário que haja o desejo de executá-lo, ou que ele seja uma representação de outras ações. Na resposta dada por Bannes e Carrol, elas contra-argumentam que o que faz um movimento ser ou não ser dança é o modo como ele é realizado e seu contexto, e não o tipo de movimento ou de fluxo de movimento que se realiza. Elas citam as danças-tarefas encenadas no âmbito do Judson Dance Theater para exemplificar casos de danças que não consistem em movimentos superfluidos ou representativos. No entanto, os movimentos ali realizados (dentre eles, movimentos funcionais) são executados com uma atenção especial, e isso faz com que eles reluzam aos olhos de quem os vê, ou diferenciem-se dos movimentos ordinários do cotidiano devido à qualidade de suas texturas. Seria então o envolvimento que a pessoa que se move tem para com os movimentos que realiza que caracterizaria a existência de uma dança. E disso conclui-se que movimentos simples e funcionais podem ser expressivos, a depender da ocasião.

Para Laban, a dança e o movimento são feitos da mesma combinação: tempo, espaço, peso e fluência, sendo este último uma resultante de combinações dos três primeiros. Mas, então, o que faria com que algumas combinações fossem dança e outras não? Segundo Laban, o que diferencia a dança do gesto comum é que na dança há uma espécie de comunicação ou trânsito vindo de dentro para fora do corpo. Para ele, dança é quando "a ação exterior é subordinada ao sentimento interior" (LABAN apud GIL, 2004, p. 14). Na teoria de Laban, todo movimento - dançado e cotidiano - é iniciado por impulsos de movimento. Segundo Bartenieff:

Antes de qualquer manifestação visível do movimento, existem impulsos internos relativos às preparações necessárias à realização do movimento. Em um primeiro momento, um impulso interno de atenção ao espaço que se tem ao redor; em um segundo momento, um impulso interno de atenção ao peso do próprio corpo e à força intencional de seu impacto; e em um terceiro momento, um impulso interno de atenção ao tempo que se tem para a ação. Todas essas participações internas interelacionam-se com a fluência do movimento, cujos impulsos interiores oscilaram entre a liberdade e o controle. Tais participações internas são combinações de processos da cinestesia com processos do pensamento, que aparentam ser quase simultâneos, em diferentes níveis de consciência. (BARTENIEFF, 1980, p. 51, tradução nossa177).

No caso de haver continuidade no movimento - o que me remete à superfluidez da qual fala Beardsley - o fator tempo dialoga com o espaço e com o peso em fluências nas quais há fluxo de movimento, de modo a gerar ciclos de movimento, ou seja, de modo a tornar os movimentos retroalimentadores. Essa continuidade ou fluidez de movimento não acontece só em movimentos dançados, mas também em movimentos de alguns esportes, como o tênis. Podemos pensar que nessas circunstâncias, impulsos de movimento são desencadeados tão dinamicamente que se mesclam aos movimentos. Outros tipos de diálogos entre os fatores do movimento irão gerar movimentos de outras naturezas, que não a fluida. Os movimentos acontecem de acordo com os impulsos de movimento. Como dito por Bartenieff no trecho a pouco transcrito, os impulsos de movimento antecedem o movimento, de modo que os fatores do movimento são a manifestação dos impulsos no corpo. Penso que a atenção especial mencionada por Bannes e Carroll seja uma espécie de sintonia com os impulsos de movimento; uma sintonia que faz a pessoa se sentir envolvida pelo mover-se.

Se assim o for, a frase de Andrea Olsen - "Toda pessoa é um dançarino" (OLSEN, 2014, p. 3, tradução nossa178) - faz muito sentido, pois toda pessoa é capaz, a seu próprio modo, de se sentir envolvida pelo mover-se. Essa maneira de ver o dançar traz outro personagem, além do dançarino, para o protagonismo da dança: o movedor (moover), aquele que se move conectado com o mundo perceptivo/sensitivo do movimento. O termo 'movedor' é usado em algumas abordagens da Educação Somática para se fazer referência à pessoa que se move somaticamente.

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Even before any visible movement manifestations, there were inner impulses toward these preparations. First, an inner impulse to attention to the space around [...] and what it included; second, to the sense of [...] [the] own body weight and the intention of the force of its impact; third, to awareness of time pressing for decision. All of this inner participation interrelated with the flow of [...] movement whose inner impulses fluctuated between freedom and control. Such inner

participation is a combination of kinaesthetic and thought processes that appear to be almost simultaneous at different levels of consciousness.

Se o movimento realizado está sendo vivenciado na esfera da percepção e do sentimento, a dança não será 'simplesmente' mover-se. Então, além da expressividade - a qual pode ser definida como a qualidade expressiva que notamos em algo ou alguém, e que, em alguma medida, nos causa impacto179 - o que está em jogo nessa definição de dança é a autoimpressividade: o impacto interno - perceptivo/sensitivo e também emocional vivenciado pela pessoa que se move; impacto na sensibilidade causado pelas impressões perceptivas/sensitivas e emocionais do movimento. Existe muita coisa acontecendo na mente das pessoas que se encontram dedicadas a unicamente sentir/perceber o movimento que realizam, de modo que essa vivência pode acabar trazendo um autoencantamento à pessoa. Formulei o conceito autoimpressividade a partir das experiências que vivenciei em movimento somático. Senti falta de um nome para o caráter dinâmico das marcantes e retroalimentadoras impressões internas vivenciadas pelo soma que encontra-se em uma exploração do movimento.

Dito isso, considero importante fazer duas ressalvas para delimitar mais claramente esse conceito. A primeira consiste em esclarecer que a

autoimpressividade está sendo

conceitualmente delimitada considerando-se o contexto do movimento somático. A segunda diz respeito ao fato de haver uma relação entre a

autoimpressividade e a interioridade,

sendo importante distingui-las, para que não sejam confundidas. A interioridade sempre existe, independentemente do tipo de consciência que temos dela, porque ser uma pessoa também é ser um lugar onde muitas coisas se passam, continuamente. Já a

autoimpressividade irá existir nas circunstâncias específicas da exploração somática. As

duas estão relacionadas porque a interioridade é a base da qual se deriva a

autoimpressividade.

A compreensão da

autoimpressividade está muito ligada à seguinte questão:

relação interioridade-exterioridade e seus desdobramentos na expressividade. Primeiramente, observo que a interioridade estará sempre ecoando, em alguma medida, na exterioridade. Se alguém entra em um estado de perturbação durante um pesadelo, externamente isso será reconhecível, mesmo que em um único franzir da testa ou em uma alteração do ritmo respiratório. Por inúmeros motivos, a exterioridade de alguém traz em si uma porção de sua interioridade. François Delsarte, a seu modo, lidava com essa questão em sua lei da correspondência: 'Para cada acontecimento interno, um acontecimento externo e para cada acontecimento externo, um acontecimento interno' (SOUZA, 2011). Ele dizia isso em um contexto bem específico de estudo pantomímico, no qual o ator deveria

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O sentido de expressividade usado nesta tese não abrange apenas o ato de se expressar ou se exprimir volitivamente, pois trata-se também da vida expressiva inerente à condição da existência humana - a propriedade de dinamização orgânica e psicológica presente na forma corporal.

confiar em sua capacidade anímica (vinda da alma) de sentir uma forma corporal experimentada transformando-a em percepção e sentimento. Como coloca Mary Whitehouse:

[...] o corpo não - eu quase poderia dizer 'não é capaz' - de mentir. O ser humano, como ele realmente existe, não pode, a nenhum momento, ser encoberto por palavras ou roupas, e muito menos pelas coisas que ele deseja. Não importa o que ele faça ou diga, ele tem sua própria maneira de fazê-lo ou dizê-lo, e isso é o que revela seu modo de ser. (WHITEHOUSE, 1995, p. 242, tradução nossa180)

A expressividade das pessoas gera, nos que a observam, leituras pessoais daquilo que é expresso, mesmo que sejam leituras inconscientes. Isso significa que a expressividade carrega em si signos, no sentido de indicar coisas a quem a observa. Todavia, ela não possui, em si mesma, rótulos semânticos ou combinações de rótulos, pois ela será recebida por cada observador de maneira subjetiva. Essa comunicabilidade implícita ao movimento impressionava Mary Whitehouse, que a comenta:

[...] movimento é não verbal, e ainda assim, comunica, isto é, diz alguma coisa. As impressões que temos das pessoas, nós colhemos tanto a partir de suas atitudes físicas e gestos, quanto de suas palavras e roupas. O nervosismo frequentemente mostra a si mesmo em pequenos movimentos extras das mãos, pés e face; a tensão, em ombros elevados, assim como na voz elevada; a depressão, em uma linha caída passando por todo o corpo; o medo, em movimentos limitados e cuidadosamente controlados; e assim por diante, indefinidamente. Tudo isso é comunicado para nós pelos outros, e por nós para os outros, estejamos ou não cientes disso, estejamos ou não descrevendo isso em palavras (WHITEHOUSE, 1995, p. 242, tradução nossa181).

Quando há expressividade corporal elevada em uma pessoa, isso significa que sua interioridade está dinamizada. Um exemplo disso é o torcedor do Brasil envolvido intensamente pelos pênaltis finais do jogo Brasil x Alemanha de futebol masculino das Olimpíadas Rio 2016; um torcedor que vibra - também por dentro. Sua interioridade não está pacata. Da questão da interioridade dinamizada, deriva um possível desdobramento: quando o processo interno está intenso, a pessoa que o vivencia pode impressionar-se com

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The body does not, I would almost say cannot, lie. The human being as he actually exists at any moment cannot be hidden, by words, by clothes, least of all by wishes. No matter what he is doing or saying, he has his own way of doing and saying it, and it the way that reveals what he is like.

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[...] movement is non-verbal and yet it communicates, that is, says something. Our impressions of people are gathered fully as much from physical attitudes and gestures as from words and clothes. Nervousness often shows itself in little extra movements of hands, feet, and face; tension, in raised shoulders as well as voice; depression in downward drooping lines of the whole body; fear in limited and carefully controlled movement, and so on indefinitely. They are all comunicated to us by others and by us to others, whether we know it and describe it in words or not.

o que percebe em si mesma e sente. Quando, por exemplo, alguém percebe que as batidas de seu coração se aceleraram de modo não comum e que parecem estar um pouco descompassadas, essa pessoa irá impressionar-se com isso. Tal impressionar-se não deve ser confundido com a

autoimpressividade. Nesta, as impressões somática possuem um

caráter retroalimentador elementarmente relacionado com o movimento corporal exploratório. Outro ponto relevante no que tange a interioridade dinamizada diz respeito ao fato de que é possível estar havendo um alvoroço interno ainda que a expressividade encontre-se em aparente normalidade, o que significa que a pessoa estará se controlando.

Como a interioridade se manifesta na exterioridade, podemos dizer que ela chega no outro, naquele que observa de fora. Uma pessoa pode começar a sentir-se mal ao observar alguém em pânico. Nesse caso, a interioridade da pessoa em pânico, devido à expressividade corporal dessa pessoa, chegou até a interioridade da pessoa que a observa. Assim como a interioridade é a base do soma, os fenômenos referentes ao desencadeamento interioridade-exterioridade são a base da qual derivam as relações

artista do movimento-plateia. De modo semelhante ao que acontece com a interioridade, a

autoimpressividade, ao ecoar para fora, como parte da expressividade, chega no outro. A

autoimpressividade dá uma consistência peculiar à expressividade.

A

autoimpressividade do artista do movimento (levando-se em conta que esse

artista esteja em estado somático) é expressiva, e mobiliza internamente a plateia. E podemos ir um pouco mais longe, ao notar que o somático artista do movimento, quando em cena, vivencia a

autoimpressividade ao mesmo tempo em que está presente para o

outro, projetando sua presença para ele. O somático artista do movimento se expande para dentro e para fora. Isso me faz conjecturar que o público, quando chega a ter sua interioridade muito dinamizada devido aos acontecimentos da cena, poderá, inconscientemente, estar buscando um cúmplice no artista. O artista também pode estar buscando cumplicidade no público - o que me parece uma ideia menos óbvia. Considerando esses trânsitos, me pergunto se haverá uma zona de intersecção entre a

autoimpressividade do artista e a interioridade dinamizada do público. Finalizando esse

tema, deixo uma fala de Laban:

A fonte de onde devem fluir a perfeição e o domínio do movimento é o entendimento daquela parte da vida do homem que lhe é interior, onde o movimento e a ação se originam. Tal entendimento aumenta o fluxo espontâneo do movimento, e lhe garante uma efetiva vivacidade. Os impulsos interiores do homem para o movimento têm de ser assimilados

para a aquisição de habilidades externas de movimento. (LABAN apud BARTENIEFF, 1980, p. 49, tradução nossa182).