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somatopoético Foram ainda elaborados mais alguns conceitos A autoimpressividade será discutida a seguir, nas próximas páginas Os outros conceitos serão apresentados no último

3.1 Questões preliminares

3.1.2 Autoimpressividade, expressividade, técnica e estilo

A conversa entre a dupla Sally Bannes/Nöel Carroll e Monroe Beardsley possibilita uma segunda reflexão, a de que o movimento pretensamente expressivo pode não ser expressivo de fato. Quando assisto obras de balé, me parece nítido que dançar não é simplesmente mover-se. Mas isso não no sentido que talvez esteja sendo capturado em uma primeira leitura dessa frase, e sim no outro: muitos balairinos estão se movendo, mas não parecem estar dançando, e isso acontece por que, por mais sofisticados que sejam os movimentos, e por mais impecável que seja a execução, há sempre o risco de perder-se a dança por cegar-se na técnica. Como coloca Marcia Strazzacappa Hernandez, está aí "[...] um dos grandes problemas da má utilização da técnica: criar o mito, quer dizer, a técnica por ela mesma, a técnica como um fim" (HERNANDEZ, 2000, p. 111, tradução nossa183). Seguindo esse raciocínio, proponho uma premissa: 'o aprendizado da técnica corporal não pode se dar de modo desgarrado da autoimpressividade'. Nessa discussão, o sentido dado para 'técnica' é: saber fazer algo tendo controle sobre esse algo, tendo a capacidade de repeti-lo sem que a qualidade (nível) de sua execução seja perdida.

Nas artes do movimento, o estudo do desempenho ou performance corporal dos artistas diz respeito a questões que vão além do domínio da técnica. O intérprete mais luminoso não é aquele tecnicamente inultrapassável, mas aquele que tem a técnica à serviço da sensibilidade. É comum estudiosos da área do movimento expressivo comentarem que embora intérpretes de um mesmo trabalho, em dado momento da cena, façam o mesmo movimento, cada um realiza esse movimento de maneira diferente. Através de um olhar sensível e minucioso é possível observar que seus movimentos, aparentemente semelhantes, não são os mesmos. Essa constatação mostra que é nas sutilezas que residem as peculiaridades do mover-se de cada um; o modo de se mover. Alguns estão aprisionados pela técnica, outros não. E os desdobramentos dessa questão são mais complexos do que podem parecer à primeira vista, pois estar livre do aprisionamento exercido pela técnica, não é algo que passa pelo abandono da técnica, mas sim, por um processo de liberdade no uso da técnica.

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The source whence perfection and final mastery of movement must flow is the understanding of that part of the inner life of man where movement and action originate. Such an understanding furthers the spontaneous flow of movement, and guarantees effective liveliness. Man's inner urge to movement has to be assimilated to the acquisition of external skill in movement.

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[..] un des grands problèmes de la mauvaise utilisation de la technique: créer le mythe, c'est-à-dire, la technique pour elle-même, la technique comme fin.

Observemos que é comum uma bailarina clássica ser rapidamente reconhecida mesmo sem estar no palco realizando seu ofício. Vemos ela andando na rua e sabemos que ela é bailarina clássica. Temos essa impressão porque o balé esculpiu o corpo dela e lhe deu trejeitos marcantes. Não apenas o balé esculpe os corpos, mas, de diferentes modos, todas as técnicas corporais, e em diferentes medidas. Se a técnica é muito praticada, e se é praticada por longos anos, a escultura será bem definida. A Técnica de Martha Graham esculpe o corpo. O Karatê esculpe o corpo. Todos sabemos como as pessoas querem esculpir seus corpos nas academias de musculação. Nessas academias, normalmente os músculos são trabalhados isoladamente, e normalmente se privilegia alguns músculos devido à sua repercussão estética na aparência do corpo. A técnica de musculação, nesses casos, é planejada para esculpir o corpo; a escultura é a finalidade. Na área da luta, a técnica é planejada com a finalidade de tornar o aprendiz um bom lutador, e a escultura é uma consequência. Nas técnicas de dança, a técnica é planejada para fazer com que a pessoa possa dançar com desenvoltura.

Cada técnica de movimento lida com os fatores de movimento de modo próprio: o direcionamento espacial e os trajetos do movimento; o peso e a força corporal; as velocidades e alternâncias de velocidades; a fluência do corpo no espaço. Em algumas técnicas, por exemplo, há a alternância de fluxo muito livre e fluxo contido. Em outras, há posturas estáticas. Em outras, movimentos constantemente interrompidos. Em outras, posturas e fluxos controlados. E assim por diante.

Um ponto fundamental nessa discussão gira em torno da necessidade de se problematizar a relação que existe entre técnica e estilo de movimento artístico. Tomaremos a dança como recorte para essa breve discussão. As técnicas estilizadas de dança, como todas as técnicas corporais, moldam não apenas o corpo, mas também os hábitos de movimento do corpo, porque "Tal corpo, tal mente e tal mente, tal corpo.". Elas moldam a forma e delimitam o vocabulário corporal. Na dança, é comum existir uma estética estilizada acoplada à técnica. Então, em seu aprendizado, normalmente haverá um desejo estético acoplado ao desejo de realizar o movimento. Isso significa que a Técnica de Martha Graham, por exemplo, pode chegar em um corpo colando nele um 'estilo Martha Graham'. Acredito que isso não seja apenas ruim, porque, a depender do contexto, uma técnica estilizada é aquilo que se busca. No entanto, quando, além do estilo próprio da técnica, há uma estilização advinda de processos imitativos, isso tende a tornar-se algo negativo. O uso de idiossincrasias como modelo generalizado tende a ofuscar aquilo que há de pessoal ou individual nos movimentos. Em relação a essa questão, vejamos um trecho no qual Gerda Alexander expõe uma lembrança sua:

Ao longo dos meus estudos nos congressos de ginástica e dança a que assisti, era muito raro ver alunos que tivessem uma expressão de movimento que lhes fosse própria, mesmo quando a ‘liberação da personalidade pelo movimento’ constava em todos os programas. Muito pelo contrário, podíamos reconhecer, na vida cotidiana, em que escola cada um se tinha formado. Evidentemente, os grandes artistas, como Mary Wigman ou Rudolf von Laban, impregnavam com sua própria personalidade cada membro de seu grupo, para realizar suas próprias criações de dança. Mas na pedagogia do movimento, acima de tudo, temos que dar lugar ao desenvolvimento da expressão pessoal de cada aluno. (ALEXANDER, 1991, p. 40)

Dependendo de como os

artistas do movimento encaram e vivem o aprendizado

corporal, uma técnica de movimento pode não só abrir possibilidades de movimento, mas também aprisionar essas possibilidades. Tal aprisionamento pode se dar por diferentes motivos, como por exemplo, quando a pessoa restringe sua experiência de movimento a um treinamento em uma única técnica. Muitos programas de treinamento/formação em dança e em expressividade corporal são compostos, como coloca Lela Queiroz, basicamente de técnicas de movimento que acabam por causar "um desnudamento gradual da potencialidade inventiva de movimentos inaugurais" (QUEIROZ, 2011, p. 164). Treinamentos geram hábitos neuromotores, e na maior parte dos casos, também geram hábitos comportamentais de movimento, e direcionam a expressividade do corpo. Dependendo do contexto, esse direcionamento pode acabar desenvolvendo no artista uma espécie de cegueira. Em relação a isso, Gerda Alexander nos advertiu: "Quanto mais o indivíduo estiver marcado por um estilo, mais difícil lhe será perceber que sua capacidade de expressão ainda não está desenvolvida” (ALEXANDER, 1991, p. 39). Nessas condições, a tarefa de levantar um repertório ou vocabulário de movimentos esteticamente desvinculados de estilos torna-se difícil.

O emblemático antropólogo e sociólogo francês Marcel Mauss ressaltava que as técnicas corporais não são somente adquiridas, mas também esquecidas (MAUSS, 2002). O esquecimento aqui não está sendo colocado como desaprendizado, como algo que o corpo desaprende, mas sim como algo que vai para nosso plano de hábitos neuromotores, de automatismos; sobre o qual não precisamos mais pensar; do qual não mais precisa se ocupar a consciência volitiva. A técnica precisa ser esquecida para ser aprendida. Podemos considerar que um movimento foi completamente aprendido quando, no momento em que o realizamos, não mais nos preocupamos com ele. A pessoa aprende a técnica corporal quando a apreende e não mais precisa pensar nela durante a realização da movimentação. Os conhecimentos apreendidos estão agora em um lugar fundo, como uma base.

Quando a técnica não foi dominada, e quando não foi desmistificada, o movimento geralmente parece artificial ou mecanizado. No caso da falta de domínio, a artificialidade na dinâmica corporal ocorre devido a entraves técnicos. Precisamos superar as dificuldades que a técnica nos impõe para podermos conquistá-la e tê-la à nossa serventia, e não o contrário. Precisamos conquistar a capacidade de nos movermos sem sermos 'atrapalhados' pela técnica que está em questão. Para isso, precisamos reconhecer nossos limites, pois só assim poderemos trabalhá-los e expandí-los. Essa necessidade pode ser identificada em uma fala de Laban:

Nós deveríamos buscar estar familiarizados com ambas as coisas: com as capacidades gerais de movimento de um corpo e mente saudáveis, e com as restrições e capacidades específicas resultantes da estrutura individual de nossos próprios corpos e mentes (LABAN apud BARTENIEFF, 1980, p. 17, tradução nossa184).

Para a técnica chegar a ser esquecida, é necessário que ela seja praticada. Conforme exposto por Olsen, quando há um novo movimento sendo aprendido, há um velho padrão sendo modificado (OLSEN, 1998, p. 121). Olsen usa esse jogo de palavras porque, de fato, o sistema nervoso utiliza caminhos neuromotores que ele já conhece para tentar chegar a uma ação que ainda desconhece. Em suas tentativas, ele vai testando múltiplos padrões motores, e combinando-os. Ele procura afetar a resposta correta (desencadear muscularmente as ações motoras que resultarão no movimento desejado). Quando, pela primeira vez, uma resposta boa é alcançada, dificilmente o sistema nervoso será capaz de repetí-la seguidamente dali pra frente. Como o novo caminho neuromotor ainda é muito "raso", o movimento acaba indo pelas "valas mais profundas" - os hábitos. Conforme a resposta boa é repetida, ela vai sendo mais memorizada - as "valas" que levam a ela vão se tornando mais fundas. Por conta disso, todo caminho de aprendizado de movimento é uma serra: sobe, desce, sobe, desce. Até que uma hora, alcança-se um planalto. À medida que o sistema nervoso vai, gradualmente, refinando a resposta, ele começa a trabalhar a eficiência e a velocidade do movimento. Desse modo, quando nos dedicamos a aprender técnicas corporais, o sistema nervoso está o tempo todo "parindo" novos caminhos de inervação motora e "casando-os".

A dificuldade sentida na movimentação é o principal critério para uma mensuração do quanto avançamos na técnica. Como abordado por Feldenkrais: "Tudo que fazemos

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We shoul be acquainted both with the general movement capacities of a healthy body and mind and with the specific restrictions and capacities resulting from the individual structure of our own bodies and mind.

bem, não nos parece difícil" (FELDENKRAIS, 1977, p. 82). Quando um movimento nos parece difícil, isso indica que não estamos sabendo realizá-lo do modo adequado, seja por falta de habilidade, ou por equívoco. "À medida em que a habilidade cresce, a necessidade de esforço consciente decresce" (FELDENKRAIS, 1977, p. 81). No que concerne ao crescimento da habilidade, a auto-observação e a repetição têm um papel fundamental. O modo de se repetir é crucial. É preciso que haja conhecimento sendo gerado: eu aprendo como essa técnica funciona à medida que a pratico; eu não a encaro apenas como uma meta, mas como um processo que eu observo e com o qual aprendo. Essa técnica pode estar sendo criada por mim, devido ao fato de eu ter identificado a necessidade de sua existência. Ou, pode ter sido criada por outra pessoa. Um caso não deve ser comparado com o outro em termos de ter mais ou menos valor. Como enfatiza Gerda Alexander, executar o que outra pessoa criou ou transmitiu é um exercício muito proveitoso, pois nos obriga a percorrer caminhos e texturas de movimento que não nos são familiares, e isso expande nosso repertório de possibilidades (ALEXANDER, 1991, p. 42).

Nesse ponto, é necessário observar que, por vezes, pode estar atuando em nossas concepções, sem que percebamos, o falso paradigma de que toda técnica é burra. O fato de os métodos lidarem com princípios norteadores e as técnicas com modos codificados fomentou esse falso paradigma. Como coloca Helena Katz, a qualidade da 'experiência movimento' é o que importa, e não a origem do movimento (se ele foi descoberto por mim ou passado para mim por outra pessoa) (KATZ, 2009, p. 26). Se, durante uma abordagem técnica, experiencio um movimento 'x' de queda, o qual me fora ensinado, ou, se no contexto de um método, experiencio explorações maneiras pessoais de cair, nos dois casos, estou experienciando. Pela qualidade do experienciar, sempre haverá algo de inaugural naquilo que está a se aprender. Evitando-se o aprendizado mecanizado, não atento, a qualidade do experienciar sempre irá aflorar, mesmo ao realizar-se um movimento passado por alguém. A capacidade do artista de encontrar o próprio jeito de ser livre no movimento precisa ser sempre exercitada.

Quando o aprendizado do movimento expressivo se dá pelo caminho do autoconhecimento e autoinvestigação, possibilitando a transformação de hábitos sensoriomotores de modo dinamizado, a técnica não nos cega. Podemos estar dedicados a adquirir uma técnica específica, a maneira eficiente de realizar um determinado movimento e, devido ao modo pelo qual vivenciamos esse aprendizado, podemos experimentar mais integração corporal conforme avançamos no nosso entendimento do movimento e conforme melhoramos nosso desempenho. Quando a técnica corporal é vivenciada por essa perspectiva, são menores os riscos de ficarmos aprisionados funcionalmente em um estilo.

Quando queremos chegar a um mover-se que nos pareça mais autêntico, precisamos poder nos demorar no mundo da perceptividade/sensitividade, e o caminho que tem como objetivo o aprendizado de determinadas técnicas corporais não é o melhor caminho para isso, embora isso também possa ser nele desenvolvido. A autenticidade será trabalhada não buscando-se uma técnica pessoal, ou um confronto entre diferentes técnicas, mas sim por meio de um aprendizado que objetive a exploração da sensibilidade. Não sabemos o que iremos fazer. Não há uma meta a ser alcançada. Procuramos encontros com o desconhecido por meio do aguçamento da sensibilidade. Nessas condições, estamos em

liberdade técnica: as técnicas corporais que possuímos estão sendo dinamizadas

enquanto exploramos perceptivamente/sensitivamente o movimento, pois elas fazem parte da linguagem que o corpo fala. Entretanto, não estamos jogando o foco da consciência sobre elas. Vejo essa liberdade como essencial ao desenvolvimento do potencial poético somático.

É nesse contexto que as abordagens pedagógicas do campo da Educação Somática tem tanto a oferecer aos professores, diretores, coreógrafos, atores, dançarinos etc. Eloisa Domenici, se referindo à dança, comenta que as abordagens somáticas "[...] possibilitaram novos caminhos de investigação e criação, alterando profundamente os modos de fazer dança, para além da clássica epistemologia mecanicista em que se pauta o treinamento corporal tradicional" (DOMENICI, 2010, p. 69). Contudo, isso não significa que não seja proveitoso poder desenrolar a exploração da sensibilidade sobre um apreendido 'chão' técnico plural e maleável. Quando a técnica é um chão e não um bastão difícil de segurar nas mãos, ela é muito bem-vinda. Como coloca Hernandez: "Para que pode servir ter técnica se nós não nos servimos dela? Qual é a função de um ator senão representar para um público? De um artista, senão sua obra de arte?" (HERNANDEZ, 2000, p. 111, tradução nossa185). Gilberto Icle também expõe esse tema de um modo interessante: "toda técnica é sempre um segredo, pois não deve estar à frente do que o espectador vê, mas sim, sub- repticiamente entranhada, mascarada, escondida" (ICLE, 2009, p. 30).