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CAPÍTULO 6 CONSIDERAÇÕES PESSOAIS SOBRE A CONVERSÃO DA MEDIDA

6.1 A Conversão da Medida Imposta na Transação Penal em Pena Privativa de

6.1.2 A falta de previsão legal para a conversão do acordo descumprido

A Lei 9.099/95 trouxe as medidas despenalizadoras como forma de se evitar a instauração do processo formal, garantindo-se a não aplicação de pena privativa de liberdade nas infrações penais de menor e médio potencial ofensivo, observando os novos rumos do Direito Penal, qual seja: diminuição da pena de prisão e ressocialização do infrator de forma a evitar a reincidência, levando em consideração o respeito aos direitos fundamentais do ser humano e as exigências da Justiça social.

Ao impedir a condenação à pena privativa de liberdade, esta lei trouxe a opção do autor de uma infração penal menos grave ser beneficiado por uma pena restritiva de direitos ou multa, sem, contudo, prescrever meios coercitivos para que seja efetivamente cumprida. Na proposta de transação penal ofertada pelo Ministério Público não consta que o descumprimento do acordo ensejará na conversão em pena privativa de liberdade, mas sim no prosseguimento do feito (execução ou oferecimento de denúncia, como analisado no capítulo 3). Daí a falta de poder coercitivo para o seu cumprimento, pois o autor do fato sabe – como todos nós sabemos – que a Justiça brasileira é morosa667 e o descumprimento do acordo apenas prolongará o desfecho do caso.

Falhou o legislador em não prever um meio coercitivo diante do descumprimento do acordo celebrado na transação penal. Preocupado com os novos rumos do Direito Penal mínimo – evitar as penas privativas de liberdade de curta duração e a ressocialização do infrator –, deixou de observar essa importante questão que traz por consequência o início de um processo penal com finalidade diversa do instituto que permitiu o acordo consensual entre o autor do fato e o Ministério Público – a transação penal -, e os princípios que a norteiam, como a oralidade, celeridade, informalidade e economia processual, tão prezados pela Lei 9.099/95, que os prescreveu nos artigos 2º e 62.

Para a aplicação de pena privativa de liberdade é fundamental o respeito aos princípios do devido processo legal e da ampla defesa. Prova disso é a Constituição Federal de 1988 que prescreve no art. 5º, inciso LIV, que “Ninguém será privado da liberdade ou de

667 A morosidade da Justiça brasileira é visível em todas as searas. Esta foi uma das preocupações da Lei

9.099/95, trazendo um procedimento célere e eficaz, por meio da aplicação dos princípios da oralidade, simplicidade e economia processual. Contudo, ao deixar de cumprir o acordo celebrado na transação penal, o autor do fato sabe que tão cedo não será responsabilizado, pois ao trocar de endereço por várias vezes, evita que seja encontrado para audiência de justificação, prolongando-se por algum tempo o procedimento. Ao ser denunciado, nova tentativa para encontrá-lo será realizada, até o momento de se requerer a sua citação por edital, o que é incompatível com o Juizado Especial, deslocando-se a competência para a Justiça Comum.

seus bens sem o devido processo legal.”. Apesar dessa proibição, o art. 98, inciso I, da mesma Carta Magna permite a aplicação de penas alternativas antes do início da ação penal – por meio da transação penal - ou após o seu início – com a suspensão condicional do processo - em substituição a um processo legal (penal), sendo absolutamente imprescindível o consentimento do autor do fato.668

Mesmo sem um processo condenatório, a pena de multa aplicada na transação penal podia ser convertida em pena privativa de liberdade, porém, esta possibilidade foi suprimida pela Lei 9.268/98, que passou a considerar a multa como dívida de valor, ficando sem eficácia o art. 85 da Lei 9.099/95, que permitia a conversão da pena de multa descumprida, em pena de prisão, “nos termos previstos em lei”. Liszt669 já previa a utilização da pena de multa como substitutiva da pena privativa de liberdade, e não o contrário:

É justamente nos crimes de ocasião que a ampliada applicação da pena de multa promette o resultado desejado, uma vez que a multa seja accommodada á fortuna do condemnado e se exclua, quanto fôr possível, a conversão desta pena em prisão.

Com relação à conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade, também não existe qualquer previsão legal neste sentido, pois o art. 62 da Lei 9.099/95 prescreve a aplicação de pena restritiva de direitos ou multa em substituição à prisão. Portanto, aplicar a conversão dessas penas em privativa de liberdade contraria o princípio de legalidade inserto na Constituição Federal.

No Juizado Especial Criminal a pena restritiva de direitos é autônoma, não existindo quantidade de pena detentiva para a conversão, diferentemente do sistema do Código Penal, em que a pena restritiva resulta de substituição da pena detentiva e diante do descumprimento será convertida pelo tempo de pena privativa de liberdade fixada na sentença.670

A Lei 9.099/95, na esteira das Regras de Tóquio, também não previu essa conversão. Prova disto é o que prescreve a Regra 14.3: “O insucesso de uma medida não- privativa de liberdade não deve implicar automaticamente a imposição de medida privativa de liberdade.” Esta regra se fundamenta no princípio de que a pena de prisão deve ser imposta somente como último remédio (ultima ratio). Portanto, se o bem jurídico não é considerado tão essencial, ou se a ofensa provocada é de pouca lesividade ao bem jurídico tutelado, e não

668 GOMES, Luiz Flávio. Penas e medidas alternativas à prisão. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999. p. 76. 669 LISZT, Franz von. Tratado de direito penal allemão. Tradução de José Hygino Duarte Pereira. Brasília,

DF: Senado Federal, 2006. (História do direito brasileiro). p. 115.

sendo o caso de exclusão da norma penal, admite-se a atenuação dessa resposta estatal, por meio das penas alternativas previstas nesta lei.671

A questão se situa em razão da carência de tutela penal, representada pelos princípios da subsidiariedade, ultima ratio e proporcionalidade, para os quais o Direito Penal somente deve atuar quando a proteção a bens jurídicos não possa ocorrer por meios menos gravosos. Como leciona Fernandes672,

“Trata-se de um referente político criminal, de cunho particularmente funcional, que implica um duplo juízo: o da necessidade, dizendo respeito à inexistência de outros meios – jurídicos ou não – capazes de oferecer uma tutela adequada e suficiente (subsidiariedade); o da idoneidade, relativo à aptidão e eficácia da tutela penal para a protecção do bem (adequação); o da proporcionalidade, implicando uma verificação das vantagens e desvantagens político-criminais da intervenção penal, com vista a poder afirmar-se que a tutela não gera mais custos que benefícios.”

Havendo, pois, meios menos gravosos - como as medidas alternativas trazidas pela Lei 9.099/95 – capazes de atender as expectativas da norma penal violada, de forma mais rápida e eficiente, sem gerar custos desnecessários, deverão ser aplicados, evitando-se o processo formal e a condenação à pena privativa de liberdade de curta duração. Desse modo, não há necessidade de intervenção do Direito Penal, eis que os fins de política criminal serão atingidos por meio das alternativas processuais (transação penal e suspensão condicional do processo).

Nesse sentido, permitir a conversão da transação penal descumprida – seja na modalidade de prestação pecuniária, prestação de serviços à comunidade ou multa - em pena privativa de liberdade, iria contra o principal fundamento da Lei 9.099/95 que é evitar o processo penal e a aplicação de pena privativa de liberdade. Além disso, a conversão de qualquer pena alternativa em prisão viola vários princípios constitucionais como a ampla defesa, o contraditório, a proporcionalidade, a intervenção mínima, a humanidade etc.

6.1.3 O descumprimento da pena alternativa e a sua conversão em pena privativa de