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CAPÍTULO 4 A CONVERSÃO DA MEDIDA IMPOSTA NA TRANSAÇÃO PENAL

4.1 A Sanção Penal

4.1.3 Teorias da pena: considerações dogmáticas

4.1.3.2 Teorias relativas

4.1.3.2.1 Doutrinas da prevenção geral

Essas doutrinas trazem um ponto comum que é a concepção de pena como instrumento de política criminal “[...] destinado a actuar (psiquicamente) sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-se da prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei, da realidade da sua aplicação e da efectividade da sua execução.”400

Elas partem do pressuposto de que o fim da pena não se encontra na retribuição nem em sua influência sobre o autor do fato, senão na influência sobre a comunidade, que por meio de ameaças penais e execução da pena deve ser instruída sobre as proibições legais de modo a não incorrer em sua violação. Trata-se de uma teoria propensa à prevenção de delitos, e como resultado a pena deve atuar especialmente sobre a comunidade e, geralmente, sobre o condenado. Por este motivo se chama teoria da prevenção geral.401

Foi Feuerbach, um dos representantes da prevenção geral, que formulou a teoria da coação psicológica. De acordo com esta teoria, segundo Hassemer402, o Direito Penal representa uma solução ao problema da criminalidade, anunciando, por meio da cominação penal, frente a que tipo de ação injusta pensa reagir e por meio da execução da pena imposta, no caso de ser necessária, diz claramente que está disposto a cumprir essa sanção. Deste modo, o infrator “[...] se encontra sob uma coação que não atua fisicamente como uma corrente a que deveria ficar preso para evitar com toda segurança o delito, senão psiquicamente, fazendo-o pensar que não vale a pena cometer o delito que se castiga.”

400 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2007. p. 50. (grifo do autor). 401 ROXIN, Claus. Derecho penal: fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução de Deigo-

Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. p. 89.

402 HASSEMER, Winfried. Fundamentos del derecho penal. Traducción y notas de Francisco Muñoz Conde y

Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p. 380. (tradução nossa de: “[...] se encuentra bajo una

coacción, que no actúa físicamente, como una cadena a la que debería quedar atado para evitar con toda seguridad el delito, sino psíquicamente, haciéndole pensar que no merece la pena cometer el delito que se castiga.”).

Somente por meio do Direito Penal se resolverá o problema da criminalidade. E isto ocorrerá com a ameaça de pena, listando através de leis as condutas ofensivas aos bens jurídicos protegidos, sujeitas à sanção penal. Além disso, a efetiva aplicação da pena cumpre a ameaça prevista para a prática de determinado delito. Portanto, “A pena é, efetivamente, uma ameaça da lei aos cidadãos para que se abstenham de cometer delitos; é, pois, uma coação psicológica com a qual se pretende evitar o fenômeno delitivo.”403

Para as doutrinas da prevenção a pena é vista de um lado como um instrumento de prevenção geral negativa ou de intimidação, em que o sofrimento do delinquente serve como modelo para conduzir outros membros da sociedade a não repetir os fatos cometidos por ele, por meio da “[...] coacção psicológica que representa a pena.”404 De outro lado, a pena mostra-se como um instrumento de prevenção geral positiva ou de integração, com lastro no princípio de confiança, pelo qual a sociedade confia na validade e na força das normas (o ordenamento jurídico-penal) editadas pelo Estado.405

A doutrina da prevenção geral (negativa) descreve que a pena deve ter uma atuação preventiva sobre a generalidade das pessoas e em qualquer momento, isto é, tanto na ameaça abstrata como na sua concreta aplicação ou na sua efetiva execução. Verifica-se a necessidade da pena ser efetivamente aplicada, pois, caso contrário, a ameaça de sanção perderia no futuro o caráter dissuasivo.406

A teoria da prevenção geral mostrava-se mais adequada às proposições do novo Estado (liberal), pois desobrigava totalmente a pena de uma concepção metassocial ou metafísica. Ela se desenvolveu no período do iluminismo, surgindo durante a transição do Estado absoluto para o Estado liberal. Para essa doutrina, a pena “[...] apóia a razão do sujeito na luta contra os impulsos ou motivos que o pressionam a favor do delito e exerce coerção psicológica perante os motivos contrários ao ditame do direito.”407

A crítica que se faz a essa doutrina é a de que ocorre a violação à dignidade da pessoa humana408, uma vez que para alcançar o seu desiderato - a intimidação da generalidade

403 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva,

2004. p. 123.

404 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Coimbra: Almedina,

2001. p. 770.

405 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2007. p. 50-51. 406 PAGLIARO, Antonio. Principi di diritto penale: parte generale. 7. ed. Milano: Giuffrè, 2000. p. 665. 407 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva,

2004. p. 124.

408 Para Hassemer, o delinquente não pode reconhecer na execução da pena nenhum sentido. Ele se sente

utilizado como meio para conseguir um fim, e é isto que os teóricos das teorias absoluta haviam considerado sempre como o pecado original do Direito Penal. Portanto, a teoria preventiva geral ameaça a dignidade humana. Do mesmo modo que ocorre com a teoria retributiva, para a teoria preventiva geral o tempo de

das pessoas -, não consegue quantificar a pena. Além disso, uma vez demonstrada a sua ineficácia como instrumento repressor, tende a aplicar penas cada vez mais severas, podendo tender para um direito penal do terror, como outrora aconteceu.409 Por outro lado, ela não leva em consideração a questão psicológica do delinquente, ou seja, a confiança de que não será descoberto. Portanto, a ameaça de pena – pretendido temor que deveria agir no infrator – não é bastante para obstar a prática da infração penal.410

Segundo Roxin411, a prevenção geral “[...] necessita, assim, de uma delimitação que não se depreende do seu ponto de partida teórico [...]”, pois se durante a guerra foram decretadas as penas mais graves, incluindo sentenças de morte para crimes insignificantes, tal razão deu-se por motivos de prevenção geral. Assim, essa teoria não pode fundamentar o poder punitivo estatal “[...] nos seus pressupostos, nem limitá-lo nas suas consequências; é político-criminalmente discutível e carece de legitimação que esteja em consonância com os fundamentos do ordenamento jurídico.”412

A teoria da prevenção geral não conseguiu fundamentar a aplicação da pena, pois se o Estado pune o infrator com a ideia de infundir o medo entre os futuros delinquentes para que não venham a praticar crimes, a pena deixa de estar fundamentada na culpabilidade, passando a caracterizar apenas um meio de intimidação através da punição exemplar do infrator, contrariando os ditames do Estado Democrático de Direito.

Já a doutrina da prevenção de integração (prevenção geral positiva) é meritória, pois se utiliza de um critério que permite encontrar uma pena que seja justa e adequada à culpabilidade do delinquente e por fixar limites intransponíveis ditados pela culpabilidade, primados da dignidade da pessoa humana. Desse modo, considerando-se essa doutrina (integração), a prevenção geral apresenta um significado racional e político-criminal assentado nas finalidades da pena.413

No mais, do ponto de vista do Estado de Direito, a teoria da prevenção geral, sem referência ao fim da retribuição justa ou ao princípio de proporcionalidade, é intolerável.

duração da pena não representa mais que um mal, um tempo vazio, ainda que seja um mal necessário para a intimidação dos demais. Cf. HASSEMER, Winfried. Fundamentos del derecho penal. Traducción y notas de Francisco Muñoz Conde y Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p. 381.

409 DIAS, 2007, op. cit., p. 53.

410 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva,

2004. p. 125.

411 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís

Natscheradetz. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998. p. 24.

412 Ibid., p. 25.

Vinculam o sistema jurídico-penal com as consequências que produz e o submete a uma permanente crítica que estimula a política do Direito Penal.414

A transação penal não atende aos requisitos da doutrina da coação psicológica de Feuerbach – a qual reconhece a ameaça de pena como forma de intimidação à prática da infração penal -, pois o seu fundamento não consiste na definição de que a “[...] severidade e efectividade na aplicação da pena cominada é uma forma eficaz para o combate à criminalidade.” Distintamente, o fundamento da transação penal consiste na “[...] constatação de que o sistema penal é selectivo e estigmatizante, reproduzindo e aprofundando as desigualdades sociais”. Acrescente-se, é o próprio caráter destrutivo da prisão e a sua impropriedade como instrumento ressocializador, além do alto custo social e financeiro, que fundamentam essa medida alternativa.415

A transação penal, juntamente com as demais penas alternativas, não almeja a privação da liberdade do autor do fato; pelo contrário, busca a sua ressocialização longe do cárcere. Logo, não comungam o pensamento da prevenção geral.

Desse modo, se partirmos do pressuposto de que as penas alternativas acordadas na transação penal não possuem qualquer poder coercitivo sobre o autor do fato (ele cumpre se quiser), verificaremos que a conversão desse acordo em pena privativa de liberdade, diante do seu descumprimento, não atinge as finalidades de prevenção geral, em razão da inexistência de qualquer força coercitiva a impulsionar o seu cumprimento, pois a Lei 9.099/95 não prevê a possibilidade da conversão do acordo descumprido em pena privativa de liberdade, não garantindo, assim, o sucesso das penas alternativas, preventivamente, com a ameaça de prisão. Por outro lado, se considerarmos que a possibilidade de início da ação penal pelo Ministério Público ou querelante, diante do descumprimento do acordo, é suficiente a ensejar uma intimidação no autor do fato, ante a ameaça de ser processado e até mesmo condenado a uma pena privativa de liberdade, a transação penal atingirá o seu objetivo face à teoria da prevenção geral.