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CAPÍTULO 5 SOBRE A LEGITIMAÇÃO DA MEDIDA IMPOSTA NA TRANSAÇÃO

5.1 Principiologia Aplicável à Lei 9.099/95: Constitucional e Infraconstitucional

5.1.7 Princípio da humanidade das sanções

A origem deste princípio remonta ao Direito Constitucional inglês: a Magna Carta de 1215; a Petition of Rights de 1628; e o Bill of Rights de 1689. Contudo, estes documentos, em

595 ROCHA, Fernando Antônio Nogueira Galvão da. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Impetus. 2004.

função das suas condições históricas, materializavam apenas os interesses mais imediatos dos povos ou classes sociais que se libertavam de alguma forma de opressão.596

A tendência humanitária europeia se propagou pelo mundo e nos Estados Unidos da América os documentos trouxeram o reconhecimento dos direitos humanos fundamentais597, como a Declaração de Independência Americana (1776) que trouxe direitos como a vida, a liberdade e a busca da felicidade.598 Contudo, foi em 1789 que a Revolução Francesa trouxe a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e com ela a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência contra a opressão, conferindo aos direitos fundamentais uma abrangência ainda não vista por outros documentos anteriores. Entretanto, foi com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, em Paris, que se deu o efetivo reconhecimento dos direitos humanos. Esta declaração veio reforçar a expectativa dos povos que integram as Nações Unidas sobre o grande valor dos direitos fundamentais, da dignidade e do valor da pessoa humana. Ela traz em seu preâmbulo, a consideração de que a liberdade, a Justiça e a paz no mundo têm por base o reconhecimento da dignidade intrínseca e os direitos iguais e inalienáveis de todos os seres humanos. Reconhecendo, ainda, que o menosprezo pelos direitos humanos tem originado atos de barbárie ultrajantes para a consciência da humanidade, havendo a necessidade de proteção jurídica desse direito.599

O princípio da humanidade sustenta a proibição do poder punitivo estatal aplicar sanções que prejudiquem ou lesionem a dignidade da pessoa humana, ou que provoquem lesões na composição físico-psíquica do sentenciado, apresentando-se como um caminho garantidor de restrição da lei penal, asseguradora da dignidade humana. A título de exemplo, temos a Constituição Federal brasileira de 1988, que em vários dispositivos prevê a proteção contra a violação desses direitos, como ocorre na vedação da tortura e de tratamento desumano ou degradante a qualquer pessoa (art. 5º, III, CF); a proibição da pena de morte, da prisão perpétua, de trabalhos forçados, banimentos e cruéis (art. 5º, XLVII) etc.

596 Ibid., p.79.

597 “Nenhuma pessoa será obrigada a responder por um crime capital ou infamante, salvo por denúncia ou

pronúncia de um grande júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, corram nas forças terrestres ou navais, ou na milícia, quando sem serviço ativo; nenhuma pessoa será, pelo mesmo crime, submetida duas vezes a julgamento que possa causar-lhe a perda da vida ou de algum membro; nem será obrigada a depor contra si própria em processo criminal ou ser privada da vida, liberdade ou propriedade sem processo legal regular; a propriedade privada não será desapropriada para uso público sem justa indenização.” Cf. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Constituição dos EUA: Emenda V. 1787. Disponível em: <http://www.archives.gov/exhibits/charters/bill_of_rights_transcript.html>. Acesso em: 10 ago. 2012.

598 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Direito penal e direitos humanos. Rio de Janeiro: Forense, 1977. p. 119. 599 ROCHA, Fernando Antônio Nogueira Galvão da. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Impetus. 2004.

Este princípio está presente na cominação, aplicação e execução da pena. Porém, ele possui um campo maior de intervenção com relação à sua execução.600 A pena deve ter caráter humanitário, não podendo esgotar-se em regras expiatórias, de cunho retributivo, caso contrário, em nada se diferenciará da vingança e nenhuma pena (privativa de liberdade ou restritiva de direitos) pode atentar contra a incolumidade física ou moral da pessoa como ser social, mostrando-se inconstitucional a criação de tipos penais que cominem penas atentatórias aos direitos e à dignidade da pessoa humana.

É decorrência do princípio da humanidade a impossibilidade de a pena passar da pessoa do condenado.601 Significa dizer que este não perde a sua condição humana e a Justiça criminal deve manter seu enfoque nas consequências sociais da incriminação e punição.

A humanização das penas criminais tem sido uma reivindicação permanente no processo evolutivo do Direito Penal. Progressivamente as penas foram se modificando, passando de penas de morte e corporais a penas privativas de liberdade, e destas, a penas alternativas (multa, prestação de serviços à comunidade, limitação de fim de semana, interdição temporária de direitos etc.). Logo, em um Estado de Direito Democrático como o brasileiro, torna-se proibida a elaboração, a aplicação ou a execução de pena ou qualquer outra medida que contrarie a dignidade humana.602

A Constituição Federal de 1988 trouxe normas proibitivas, destinadas a impedir a criação de um ordenamento penal do terror603, assegurando aos presos e condenados o respeito aos princípios fundamentais604, buscando sempre a humanização das sanções. O Direito Penal deve revestir-se de caráter humanitário, considerando-se a responsabilidade da sociedade para com o infrator, fornecendo a este o necessário para a sua reinserção na comunidade, satisfazendo-se o interesse social.

O princípio da humanidade está a “[...] exigir que as limitações impostas aos direitos individuais pela sanção penal, sempre as mais graves que gravitam em torno do sistema, estejam em conformidade com as regras relativas ao perfil ético autorizador da sanção na função material de sua utilidade e justiça.”605

600 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 100. 601 BONFIM; Edilson Mougenot; CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 131. 602 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípios políticos do direito penal. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos

Tribunais, 1999. p. 102.

603 Ibid., p. 103.

604 A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III, traz a “dignidade da pessoa humana” como um

dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

605 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da insignificância no direito penal. 2. ed. São Paulo: Ed.

Os direitos humanos podem representar o limite e fundamento do Direito Penal moderno. A intervenção punitiva estatal (repressiva e preventiva) deve estar translucidamente discriminada: de uma parte, organiza-se a máxima intervenção punitiva (punição dos delitos socialmente relevantes), tendo os direitos humanos como alicerce; e de outra, realiza-se a mínima intervenção estatal repressiva (medidas despenalizadoras), fazendo uso dos direitos humanos como limite concreto.606

Verifica-se que as medidas alternativas propostas pela Lei 9.099/95 satisfazem o propósito de um Direito Penal humano, visto que são realizadas de forma célere e informal, buscando alcançar uma rápida solução para o conflito, de forma consensual e satisfatória, em substituição a uma sentença penal condenatória, evitando-se todas as consequências e inconvenientes da pena privativa de liberdade, ainda que de curta duração.

Para se alcançar os objetivos do princípio da humanidade, o Direito Penal moderno tem procurado “[...] criar, desenvolver e aperfeiçoar alternativas penais idôneas que possam reduzir a aplicação das penas privativas de liberdade.”607 E neste contexto, as medidas alternativas implantadas com a Lei 9099/95 se mostram as mais adequadas a esta finalidade, pois, há interesse em obter respostas menos estigmatizantes para o autuado, de forma a não impedir o processo ressocializador.608 Para tanto, a aplicação de penas alternativas mostra-se fundamental para evitar a estigmatização derivada do próprio processo penal e da pena privativa de liberdade.

Por outro lado, a conversão das penas restritivas de direitos e multa em pena privativa de liberdade, diante do descumprimento pelo autor do fato, contraria as finalidades deste princípio, pois traz a pena de prisão como penalidade (castigo) pelo descumprimento do acordo, quando a Constituição Federal e a Lei 9.099/95 trazem a despenalização de infrações de pouca lesividade, como forma de evitar a privação da liberdade. Desse modo, deve-se buscar outros meios para efetivar o cumprimento dessas medidas, uma vez que

A função punitiva do Direito Penal só deve intervir quando o fato apresenta lesividade, legitimando a aplicação da pena. Assim, convém que seja reservado para os casos de delitos graves, quando os outros ramos do Direito não conseguem impedir a conduta ilícita.609

606 FALEIROS JÚNIOR, Roberto Galvão. Tutela penal-constitucional dos direitos humanos: uma abordagem

proporcional do fenômeno criminológico no Brasil. In: BORGES, Paulo César Corrêa (Org.). Marcadores

sociais da diferença e repressão penal. São Paulo: NETPDH : Cultura Acadêmica, 2011. p. 55.

607 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Prestação de serviços à comunidade: alternativa à pena privativa de

liberdade. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 13.

608 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Coimbra: Almedina,

2001. p. 821.

A transação penal mostra-se suficiente para afastar a exigência de qualquer sanção penal, pois o Direito Penal é colocado como ultima ratio do sistema e se outras medidas mais brandas se mostrarem suficientes ao efeito preventivo, não haverá necessidade da incidência do Direito Penal.