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CAPÍTULO 4 A CONVERSÃO DA MEDIDA IMPOSTA NA TRANSAÇÃO PENAL

4.1 A Sanção Penal

4.1.3 Teorias da pena: considerações dogmáticas

4.1.3.4 Posição da doutrina moderna

Tratando das finalidades da pena e da legitimação da pena criminal, Figueiredo Dias451 afirma que a pena tem a finalidade exclusiva de prevenção binária, isto é, geral e especial. Além disso, a pena é condicionada à medida da culpa e dentro deste contexto é determinada “[...] no interior de uma moldura de prevenção geral de integração [...]”, cujo teto é oferecido pela tutela dos bens jurídicos e a base oferecida pelas “[...] exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.” Entendido dessa forma, a medida da pena “[...] é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais.”

Já Pagliaro452 prefere dizer que a pena tem uma pluridimensionalidade e assim como as outras espécies de sanções desfavoráveis, persegue a função da prevenção geral com técnica dúplice de aflição e correção do ofensor, estas que fazem com que entrem em jogo os conceitos de retribuição e prevenção especial, e a concorrência dessas funções pode se explicar supondo uma subordinação aos fins da prevenção geral. O autor assim complementa:

449 ROXIN, Claus. Derecho penal: fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução de Deigo-

Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. p. 98.

450 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2007. p. 62-63. 451 Ibid., p. 84.

[...] de outra forma, restariam dificilmente esclarecidos aqueles casos concretos, nos quais a finalidade de prevenção geral induz a sacrificar, pelo menos em parte, a finalidade de retribuição ou aquela de correção (moral ou naturalística); e aqueles outros casos, nos quais se renuncia a retribuir em vista de uma readaptação social do réu (liberação condicional; suspensão condicional da pena; perdão judicial) ou para perseguir uma finalidade aflitiva se põe de lado uma direta finalidade de reeducação (como no caso da pena de morte, do ergástulo, das penas detentivas de breve duração, das penas pecuniárias)453.

O autor analisa criticamente a doutrina da retribuição isoladamente, pois de um lado e sob o ponto de vista dela, não se pode ver como a exigência de impedir que mais indivíduos venham a cometer o crime possa influir na quantificação da pena, sem que se possa comprometer aquela proporcionalidade entre o fato cometido pelo infrator e a respectiva sanção, esta que é rigidamente requerida pelo conceito de retribuição. De outro lado, no sistema em que se apóia a prevenção (geral ou especial) a retribuição mal se enquadra, eis que o interesse de restaurar a ordem ética violada produz o “malum passionis propter malum actionis” é consequentemente estranho aos fins do Estado, o qual se contenta em colocar as condições para a conservação e o desenvolvimento da sociedade.454

Prevenir o delito representa algo mais que “[...] dificultar seu cometimento ou dissuadir o infrator potencial com a ameaça do castigo.” Verifica-se que a prevenção do delito “[...] não interessa exclusivamente aos poderes públicos, ao sistema legal, senão a todos, à comunidade inteira. Não é um corpo estranho, alheio à sociedade, senão mais um problema comunitário.”455

Disso resulta que a prevenção geral e a especial devem atuar conjuntamente como fins da pena. Os fatos delitivos podem ser evitados tanto por meio da influência sobre o particular como sobre a coletividade, pois ambos se subordinam à finalidade a que se destinam e são igualmente legítimos.456

453 Ibid. (tradução nossa de: “[...] Altrimenti, resterebbero difficilmente spiegabili quei casi concreti, nei quali il

fine di prevenzione generale induce a sacrificare, almeno in parte, il fine di retribuzione o quello di emenda (morale o naturalística); e quelli altri casi, nei quali si rinunzia a retribuire in vista di um riadattamento sociale del reo (liberazione condizionale; sospensione condizionale della pena; perdono giudiziale) oppure per perseguire una finalità afflitiva si pone da canto una diretta finalità di rieducazione (come nel caso della pena di morte, dell’ergastolo, delle pene detentive di breve durata, delle pene pecuniarie).”).

454 PAGLIARO, Antonio. Principi di diritto penale: parte generale. 7. ed. Milano: Giuffrè, 2000. p. 667. 455 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus

fundamentos teóricos; introdução às bases criminológicas da lei 9.099/95 – lei dos juizados especiais. 5. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 312.

456 ROXIN, Claus. Derecho penal: fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução de Deigo-

Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. p. 95.

Jürgen Wolter457 prefere falar em grau de sensibilidade da pena, dizendo que as “[...] reflexões sobre o grau de sensibilidade e de receptividade à pena por parte do autor, assim como sobre a ‘sensibilidade da vítima’ afetam em último termo unicamente o sistema de determinação da pena ou ao sistema de processo” e isso em caso de pronunciamento da culpabilidade com renúncia à pena ou sustação do próprio processo.

Por sua vez, García-Pablos de Molina458 revela três espécies de prevenção: primária, secundária e terciária. A prevenção primária é considerada a mais eficaz, pois age a médio e longo prazo, exigindo prestações sociais, intervenção comunitária e não mera dissuasão, advindo limitações práticas, porque a sociedade necessita de soluções a curto prazo, o que é resolvido com fórmulas drásticas e repressivas. Dessa forma, os programas de prevenção primária atuam sobre o cerne do conflito criminal, visando eliminá-lo, antes que se manifestem; buscam criar os requisitos necessários ou resolver as situações relacionadas à criminalidade, procurando uma socialização voltada para os objetivos sociais. Já a prevenção secundária, não atua quando o problema criminal é produzido, mas sim quando se manifesta. Age a curto e médio prazo, orientando-se por concretos setores da sociedade, como os grupos e subgrupos que apresentam maior risco de sofrerem o problema criminal. Portanto, a prevenção secundária liga-se à política legislativa penal, bem como a ação policial, fortemente concentrada nos interesses de prevenção geral. Como exemplos, podemos citar temos os programas relacionados ao controle dos meios de comunicação, de prevenção policial etc., a serem desenvolvidos em bairros carentes das cidades. Por fim, a prevenção terciária possui somente um destinatário: o recluso, o condenado, tendo como principal objetivo evitar a reincidência.

Nota-se que das três modalidades de prevenção, a terciária é a que possui o mais nítido caráter punitivo, pois os seus programas reabilitadores e ressocializadores atuam no próprio espaço penitenciário. Contudo, essa prevenção se mostra insuficiente em razão dos altos índices de reincidência, demonstrando sua ineficácia, pois se “[...] trata de uma intervenção tardia (depois do cometimento do delito), parcial (só age no condenado) e insuficiente (pois não neutraliza as causas do problema criminal).”459

457 WOLTER, Jürgen; FREUND, Georg. El sistema integral del derecho penal: delito, determinación de la

pena y proceso penal. Tradução de Guillermo Benlloch Petit et al. Madrid: Marcial Pons, 2004. p. 68.

458 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, op. cit., p. 313.

459 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus

fundamentos teóricos; introdução às bases criminológicas da lei 9.099/95 – lei dos juizados especiais. 5. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 313.

Segundo Roxin460, o ponto de partida de toda teoria, hoje, deve ser o entendimento de que o fim da pena somente pode ser preventivo. As normas penais somente estão justificadas quando tendem à proteção da liberdade individual e à ordem social a que estão subordinadas. Também a pena concreta somente pode perseguir isto, ou seja, um fim preventivo do delito. Disso resulta que a prevenção especial e a prevenção geral devem figurar conjuntamente como fins da pena, pois os fatos delitivos podem ser evitados tanto por meio da influência sobre o particular como sobre a coletividade. Ambos os meios se subordinam ao fim último a que se estendem e são igualmente legítimos. Desse modo, os motivos de natureza preventiva podem levar a uma ínfima necessidade de pena ou à substituição ou dispensa desta, devendo o juízo de reprovação abrir espaço às finalidades de natureza preventiva, de forma a substituir a resposta processual penal formal por outra alternativa, com base nos pressupostos do juízo de reprovação.461

Nos dias atuais a pena possui um papel muito mais dinâmico (ressocializador), objetivando a não reincidência, principalmente pelas vias alternativas462 à intervenção penal, dirigindo-se, sobretudo, ao infrator real, pois a principal finalidade é a sua não reincidência463. E isso ocorreu em razão da diminuição do juízo de reprovação inerente à culpabilidade (culpabilidade leve), bem como em virtude da ausência do interesse público (prevenção geral) na imposição da pena. 464

De fato, constatando-se a desnecessidade de imposição de pena privativa de liberdade, em razão da pouca lesividade produzida pela violação da norma penal, a instauração de processo penal se mostra prejudicial à finalidade preventivo-especial de ressocialização e de não estigmatização do autor do fato.465

Desse modo, a tendência atual é a de conceder maior importância às penas alternativas ou substitutivas, principalmente em relação às infrações penais de pequeno e médio potencial ofensivo. Para tanto, a Lei 9.099/95 procurou alcançar estes objetivos (ressocialização e aplicação de pena não privativa de liberdade), instituindo o denominado

460 ROXIN, Claus. Derecho penal: fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução de Deigo-

Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. p. 95.

461 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Coimbra: Almedina,

2001. p. 817.

462 Ibid., p. 798. Segundo o autor, “[...] as formas de diversificação processual se apresentam como um meio de

manter o alcance do Sistema também em relação à criminalidade de menor potencial ofensivo, de modo que funcionem como via suficiente e adequada para a estabilização das normas jurídicas que tutelam os bens alcançados por esse tipo de delitos.

463 GOMES, Luiz Flávio. Penas e medidas alternativas à prisão. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999.

p. 38.

464 FERNANDES, F., 2001, op. cit., p. 787. 465 Ibid.

“[...] modelo consensual de Justiça Criminal”466, onde se propõe ao autor dessas infrações a possibilidade de aceitar uma pena restritiva de direitos ou multa extintiva da punibilidade - se devidamente cumprida -, em troca de ser processado penalmente, ensejando a sua ressocialização de forma mais benéfica.

Embora as penas alternativas não possuam força coercitiva para serem cumpridas pelo autor do fato, pois não se prevê no acordo a possibilidade de conversão em pena privativa de liberdade por falta de previsão legal, López Contreras467 leciona no sentido de que as medidas alternativas impostas na transação penal cumprem as funções preventivas gerais e especiais da pena, uma vez que a eficácia intimidativa se obtém por meio da ameaça de perder certa quantia em dinheiro, no caso de prestação pecuniária ou multa, ou de ver-se obrigado a prestar serviços à comunidade, no tempo que seria dedicado a outra atividade pessoal. E diz, ainda, que “O sofrimento que causa a privação do dinheiro é tão comparável com o sofrimento que produz a privação da liberdade”468, continuando a afirmar que

A função político-criminal que ostenta a pena de multa é a possibilidade de ser um substitutivo das penas privativas de liberdade, uma vez que esta sanção possibilita e facilita o cumprimento dos fins da pena, também de ser uma pena mais equitativa ao fato praticado e mais humana que a pena de prisão; bem como de conformidade ao princípio de subsidiariedade, deve-se preferir a pena de multa à pena privativa de liberdade, por ser uma sanção menos drástica para o infrator469.

Na eventualidade de descumprimento da pena alternativa (transação penal ou suspensão condicional do processo), o Direito Penal e suas sanções entram em ação, por meio da intimidação do início de um processo penal – até então evitado - que poderá resultar em uma pena privativa de liberdade. Portanto, essa intimidação pode proporcionar o êxito desse novo

466 GOMES, 1999, op. cit., p. 41.

467 LÓPEZ CONTRERAS, Rony Eulalio. La sustitución de las penas privativas de libertad: aspectos

procesales y penales. San Sebastián: IVADP, 2005. p. 68.

468 LÓPEZ CONTRERAS, Rony Eulalio. La sustitución de las penas privativas de libertad:aspectos

procesales y penales. San Sebastián: IVADP, 2005. p. 68-69. (tradução nossa de: “El sufrimiento que causa

la privación del dinero es tan comparable con el sufrimiento que produce la privación de libertad [...].”).

469 Ibid. “La función político-criminal que ostenta la pena de multa es la possibilidad de ser un sustitutivo de las

penas privativas de libertad, ya que esta sanción posibilita y facilita el cumplimiento de los fines de la pena, además de ser uma pena mucho más equitativa al hecho ocasionado y mucho más humana que la pena de prisión; así también de conformidade al principio de subsidiaridad se debe considerar preferente la imposición de ésta pena que la privativa de libertad, por ser una sanción de menor drasticidad para el condenado.”

modelo de Justiça Penal consensual, permitindo a ressocialização do infrator “[...] na medida em que ele pode responsavelmente participar da ‘escolha’ da ‘melhor’ resposta ao delito.”470 É possível buscar dentre as penas alternativas a melhor opção, visando à ressocialização do autor do fato, de forma a se atender à prevenção especial da pena, sem deixar de observar a prevenção geral, representada pela ameaça de sanção, que no caso da transação é o oferecimento de denúncia. Assegura-se, desse modo, “[...] a função ressocializadora da sanção, ainda que alternativa, de outro, não menos importante, é não se permitir a sensação de impunidade.”471.

Portanto, emprega-se as medidas alternativas processuais no espaço da pequena culpabilidade resultante do delito – pequena ofensividade ao bem jurídico tutelado -, visando fins específicos de prevenção, particularmente, de prevenção especial. Contudo, se ocorre o descumprimento da medida imposta, significa que a finalidade de prevenção especial não foi suficientemente alcançada, fazendo-se necessário o início do processo penal para a imposição de outra sanção mais eficaz, por exemplo, a pena privativa de liberdade, subordinada ao prévio processo.

Analisada a conversão da medida imposta na transação penal em pena privativa de liberdade, sob a perspectiva político-criminal, pode-se concluir que essa conversão não se ajusta às finalidades preventivas e repressivas da pena.

470 GOMES, Luiz Flávio. Penas e medidas alternativas à prisão. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999.

p. 42.

CAPÍTULO 5 SOBRE A LEGITIMAÇÃO DA MEDIDA IMPOSTA NA TRANSAÇÃO