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CAPÍTULO 5 SOBRE A LEGITIMAÇÃO DA MEDIDA IMPOSTA NA TRANSAÇÃO

5.1 Principiologia Aplicável à Lei 9.099/95: Constitucional e Infraconstitucional

5.1.1 Princípio da legalidade

5.1.1.1 Princípio da legalidade penal

5.1.1.1.3 Princípio da exigibilidade de lei escrita (nullum crimen, nulla poena sine lege

como fonte de elaboração de condutas criminosas e cominação de penas. Somente por meio de processo legislativo é possível a elaboração de novas leis penais. Nesse sentido, o artigo 22 da Constituição Federal prevê a competência exclusiva da União para legislar sobre matéria penal501.

Por proibição do uso do direito consuetudinário entende-se a exigência de que o juiz, durante a interpretação e aplicação da lei, não abandone o marco delimitado por esta, em

499 CERNICCHIARO, Luiz Vicente; COSTA JUNIOR; Paulo José da. Direito penal na constituição. 2. ed. São

Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991. p. 52.

500 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípios políticos do direito penal. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos

Tribunais, 1999. p. 78. Em sentido contrário, CERNICCHIARO defende que “A doutrina costuma valer-se da palavra ‘ultratividade’ para explicar o fenômeno. Vocábulo, desenganadamente, impróprio, como se explicou. A lei jamais é ultrativa, no sentido de continuar a viger após a revogação. Isso jamais acontece. Seria como que existente uma lei revogada.” Cf. CERNICCHIARO, Luiz Vicente; COSTA JUNIOR; Paulo José da.

Direito penal na constituição. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991. p. 67.

501 O costume não pode ser considerado como fonte imediata ou direta na formulação das leis. Entretanto, pode

ser considerado como fonte mediata ou indireta do Direito Penal, podendo, assim, influir sobre a reforma da lei penal, visto que o legislador, quando da elaboração das leis, deve considerar a opinião, a cultura e os costumes da população.

prejuízo do autor de um fato ilícito, pois caso o abandone, enfraquece a lei escrita, mediante a utilização de um direito não escrito, ofendendo, assim, o princípio da legalidade.502

Contudo, pode ocorrer a descriminalização de certas condutas anteriormente consideradas criminosas e que deixam de constituir crimes, em razão de uma argumentação baseada nos costumes. É o caso do crime de sedução (art. 217 do CP), que foi revogado pela Lei nº 11.106/2005, visto que a sua redação não mais condizia com a realidade deste século.

A Constituição Federal, seguindo as tendências do Direito Penal mínimo, prescreveu a criação dos Juizados Especiais Criminais, com a possibilidade de aplicação de penas alternativas em substituição à pena privativa de liberdade, promovendo a despenalização de infrações penais de menor potencial ofensivo. Veja-se que não se trata de descriminalização, como ocorreu no crime de sedução, pois os delitos continuam a existir, apenas passaram a seguir um rito especial, onde se oferta ao autor de uma infração de pouca lesividade, a opção de não ser submetido a um processo formal, e talvez condenado, mediante o cumprimento de uma pena alternativa.

Caso o autor descumpra este acordo, nota-se mais uma vez a impossibilidade de sua conversão em pena privativa de liberdade, pelo fato de não existir lei que preveja esta possibilidade. A única previsão que existia na Lei 9.099/95 foi revogada. Portanto, sem lei escrita, não é possível a concretização da conversão.

5.1.1.1.4 Princípio da proibição da analogia (nullum crimen, nulla poena sine lege stricta) O princípio da legalidade impõe ao juiz a proibição de aplicar a lei penal por analogia, em prejuízo do autor de um fato ilícito, seja ao fixar os pressupostos da culpabilidade, seja na determinação da pena. Nas palavras de Hassemer,

O princípio de legalidade proíbe no Direito Penal a ampliação da norma a casos que não estão reconhecidos, mas sim imaginados na fórmula legal. Em caso de conflito entre o teor literal e o sentido da norma, a proibição da analogia resolve estritamente a questão em favor do teor literal. Para tanto, aceita o risco de que o fim pretendido pela norma penal não se atinge nunca, se esse fim não estiver materializado em linguagem normativa.503

502 HASSEMER, Winfried. Fundamentos del derecho penal. Traducción y notas de Francisco Muñoz Conde y

Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p. 331. (tradução nossa de: “Por prohibición del derecho

consuetudinario se entiende la exigencia de que el juez em la interpretación no abandone, em perjuicio del acusado, el marco delimitado por la ley; si lo abandona, debilita la lex scripta con un derecho no escrito y lesiona así el principio de legalidad.”).

503 HASSEMER, Winfried. Fundamentos del derecho penal. Traducción y notas de Francisco Muñoz Conde y

Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p. 333-334. (tradução nossa de: “El principio de legalidad

prohíbe en Derecho penal tal ampliación de la norma a casos que no están recogidos, pero si imaginados, en la fórmula legal. En caso de conflicto entre tenor literal y sentido, la prohibición de analogia decide

Do mesmo modo, veda-se o uso da analogia para criar novos delitos e cominar penas e medidas de segurança que não estejam regularmente previstas, ou ainda, que possam agravar a situação do autor do fato delituoso.504 A lei penal não tem lacuna, de modo que um juiz necessite fazer uso da analogia para supri-la. Caso se verifique lacuna em determinada lei penal, somente outra lei penal poderá complementá-la.

A proibição da aplicação da analogia somente tem sentido quando as leis penais apresentam-se escritas de maneira determinada. Contudo, a ação de proibir o emprego da analogia visando coibir possível arbítrio judicial não pode ser vista como única. Encontramos, também, a proibição do uso da analogia em razão do caráter fragmentário do Direito Penal. Como o Direito Penal protege somente os bens jurídicos mais importantes, de forma valorativa, as ações delitivas se encontram limitadas pela realidade legislativa vigente, o que enseja o seu caráter incompleto, fragmentário.

Sobre esse ponto de vista, a lei penal deve assinalar limites abstratos entre o punível e o não punível. A analogia que alicerça ou agrava a responsabilidade criminal de uma conduta humana não pode ser amparada pelo ordenamento jurídico penal em razão do seu caráter fragmentário. Caso a analogia fosse permitida, haveria o risco do Direito Penal se transformar em um todo contínuo, o que iria contra a sua própria natureza e também contra o interesse do próprio Estado, uma vez que seria o primeiro a sofrer as consequências de um excessivo inchaço jurídico-penal.505 Na clara lição de Hassemer506:

A proibição do uso da analogia é uma qualidade do Estado de Direito de caráter primordial. Com ela, o Direito Penal renuncia em favor do afetado não somente a realização do fim normativo, senão também a possibilidade de que seja reelaborado pelo juiz além do que permite o teor literal da lei, seguindo a direção da vontade do legislador. A proibição da analogia tem que servir de limite à interpretação da lei, pois, caso contrário, será considerada como transgressão ao princípio da legalidade.

estrictamente el conflicto en favor del tenor literal. Para ello acepta el riesgo de que el fin que se pretende alcanzar por la norma jurídica penal no se alcance nunca, si ese fin no se há materializado em el lenguaje normativa.”).

504 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo:

Ed. Revista dos Tribunais, 1994. p. 121.

505 Ibid., p. 122.

506 HASSEMER, Winfried. Fundamentos del derecho penal. Traducción y notas de Francisco Muñoz Conde y

Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p. 334-337. (tradução nossa de: “La prohibición de la

analogía es una cualidad del Estado de Derecho de rango primordial. Con ella el Derecho penal renuncia en favor del afectado no solo a la realización del fin normativo, sino también a la posibilidad de que sea reelaborado por el juez más allá de lo que permite el tenor literal legal, siguiendo la dirección de la voluntad del legislador. [...] La prohibición de la analogía tiene que servir de límite precisamente a la interpretación de la ley. El hecho de que no puede hacerlo estrictamente, es considerado como una quiebra del principio de legalidad.”).

A proibição do uso da analogia representa uma garantia de que o Estado não intervirá na vida do indivíduo além do que a lei permite. Por isso é fundamental a existência de lei prevendo determinadas situações. A título de exemplo, o Ministério Público não oferecerá proposta de transação penal a quem não preencha os requisitos legais para tanto. O juiz também não poderá homologar referida proposta, pois é necessário que sejam respeitados os requisitos prescritos em lei. Do mesmo modo, o juiz não pode obrigar o autor de uma infração de menor potencial ofensivo a aceitar a proposta de transação penal ou suspensão condicional do processo, por achar descabido a sua recusa, sob pena de transgressão ao princípio da legalidade.

Por outro lado, realizada transação penal, respeitando-se todos os requisitos que a lei determina, e o autor vem a descumpri-la, o juiz não poderá convertê-la em pena privativa de liberdade por não existir legislação que permita essa possibilidade, não podendo utilizar a analogia para suprir essa lacuna, eis que se trata da liberdade do autor, um direito fundamental garantido pelo princípio da legalidade, fundamento do Estado Democrático de Direito.

5.1.1.1.5 Princípio da taxatividade ou determinação (nullum crimen, nulla poena sine lege certa)

Segundo o princípio da taxatividade ou determinação, para que o crime e a pena sejam considerados válidos, não é suficiente a existência de lei anterior e vigente no momento da prática ilícita, é essencial que a lei delimite o fato criminoso, expondo detalhadamente a realização da conduta humana não permitida, de forma individualizada, e cominação de pena necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

Este princípio designa o modo como o legislador deve proceder quando da elaboração das normas, na definição dos tipos legais de ilicitude, com a finalidade de estabelecer, de forma taxativa, o que é penalmente ilícito ou proibido.507

Sem o corolário da taxatividade o princípio da legalidade não alcançaria o seu objetivo, eis que a anterioridade da lei não teria sentido se não estivesse provida de certeza e transparência, necessárias para evitar insegurança e arbitrariedade na sua aplicação. Desse

507 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo:

Ed. Revista dos Tribunais, 1994. p. 130. No mesmo sentido leciona LUISI, para quem a imprescindibilidade de normas penais precisas e unívocas é consequência da finalidade de proteger o cidadão do arbítrio judiciário, reduzindo a discricionariedade do aplicador da lei. Cf. LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais

modo, a determinação da pena deverá representar um compromisso entre a fixação legal e a aplicação da sanção penal pelo juiz, respeitando-se o princípio da individualização da pena, para não infringir o princípio da legalidade, pressuposto fundamental do Estado Democrático de Direito.

A pena deve ser especificada e determinada508, pois a pena indeterminada representa um meio extralegal de luta contra a criminalidade, considerada inconstitucional.509

Para que o fato definido como crime e a pena a ele cominada possam ser valorados, é necessário que exista uma lei que estabeleça esse fato como delituoso, expondo com clareza a conduta humana, de forma que ela não possa ser confundida com outra conduta, bem como seja prevista cominação de pena justa, sem exageros.510

O princípio da taxatividade traz a certeza de que o autor de uma infração penal seja responsabilizado somente pela prática daquela infração determinada em lei, trazendo em seu texto a descrição da conduta delituosa e a penalidade a ser aplicada em caso de sua violação.

No caso da prática de infração penal de menor potencial ofensivo, o autor também viola um preceito legal, estando sujeito à penalidade. Contudo, a Lei 9.099/95 trouxe a despenalização dessas infrações penais, por meio da aplicação de penas alternativas, onde será ofertada ao autor do fato a oportunidade de não ser processado e condenado formalmente, visando-se a sua ressocialização por meio de uma pena mais digna e solidária.

Nota-se que não ocorre infringência ao princípio da taxatividade, pois a despenalização das infrações penais de menor potencial ofensivo está prevista na Lei 9.099/95

508 Quanto à determinação, as penas podem ser classificadas em: a) absolutamente determinada – a pena é

preestabelecida com rigidez, não deixando margem ao juiz para a sua individualização; b) absolutamente indeterminada – não fixa qualquer parâmetro para aplicação da pena; c) determinável dentro de margens – o legislador fixa um marco inicial e outro final, cabendo ao juiz a individualização da pena; d) relativamente determinada quanto ao início – nesse sistema, o legislador fixa o mínimo da pena e deixa o máximo a critério do juiz; e e) relativamente determinada quanto ao fim – o legislador não fixa um mínimo para aplicação da pena, deixando a cargo do juiz a análise no caso concreto. Nota-se que os dois primeiros sistemas se encontram em desuso no ordenamento jurídico penal, ficando o terceiro sistema como o mais usual, onde o juiz, dentro de um marco traçado pelo legislador, poderá observar os requisitos contidos no artigo 59 do Código Penal (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do crime, comportamento da vítima), estabelecendo a pena aplicável dentro dos limites previstos, suficiente à reprovação e prevenção do crime, bem como o regime inicial de cumprimento da pena ou sua substituição quando cabível. Quanto ao quarto sistema, mostra-se um dos mais perigosos, uma vez que estabelece uma indeterminação relativa da pena quanto ao máximo, cabendo ao juiz fixá-la livremente, diante do caso concreto, garantindo-se ao agente apenas o mínimo de duração da pena. Ao contrário deste, o último sistema não fixa a pena mínima aplicável, somente a máxima, deixando ao juiz a análise de sua aplicação. Cf. LOPES, Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1994. p. 137-138.

509 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Pena e constituição: aspectos relevantes para sua aplicação e execução. São

Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995. p. 28.

510 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípios políticos do direito penal. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos

e no art. 98, inciso I, da CF/88. Por outro lado, a possibilidade de conversão do acordo descumprido em pena privativa de liberdade não está taxativamente previsto na legislação pátria, o que o torna proibido.