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CAPÍTULO 4 A CONVERSÃO DA MEDIDA IMPOSTA NA TRANSAÇÃO PENAL

4.1 A Sanção Penal

4.1.3 Teorias da pena: considerações dogmáticas

4.1.3.1 Teorias absolutas ou retributivas

4.1.3.1.2 A pena como retribuição

Pode-se explicar a teoria da retribuição mediante a fórmula “[...] o bem recompensa-se com o bem, o mal com o mal”370, de modo que a lei mosaica é considerada

365 BITENCOURT, 2004, op. cit., p. 107.

366 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís

Natscheradetz. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998. p. 16.

367 BACIGALUPO, Enrique. Direito penal: parte geral. Tradução de André Estefam. São Paulo: Malheiros,

2005. p. 23.

368 ROXIN, 1998, op. cit., p. 17.

369 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva,

2004. p. 106.

vingativa371. Para a doutrina clássica, retribuição traz o significado de equilíbrio, essencial por ocasião da lesão de um bem jurídico.

A teoria da retribuição é posta sob três aspectos, estes que se mesclam: a) teoria da retribuição divina, pela qual quem comete um crime ofende uma lei divina e Deus delegou ao homem uma parte da sua justiça; b) teoria da retribuição moral, estribada na fórmula acima, pela qual é uma exigência da consciência humana e que atribui ao Estado o poder de punir o ofensor; e c) teoria da retribuição jurídica, pelo qual o Estado afirma o próprio ordenamento.372

Na lição de Bruno373, “Acentuam na pena o seu caráter retributivo ou aflitivo de mal justo que a ordem de Direito opõe à injustiça do mal praticado pelo delinqüente”, havendo a necessidade de uma exigência absoluta de justiça, a qual encontra a sua formulação em Kant e Hegel.

Kant374 partia do princípio de que era necessário punir, orientando a concepção da pena na ética que dominava o seu sistema. Através de sua crença no livre arbítrio, “[...] chegou à pena como retribuição, imposição de ordem moral, que ele sugeriu fosse medida pelo talião. A razão de ser da pena estaria só na retribuição de ordem moral a que ela serviria de instrumento.” O soberano tinha a obrigação de castigar “sem dó” aquele que violasse à lei. A pena era compreendida como imperativo categórico, ou seja, um mandamento que “[...] representasse uma ação em si mesma, sem referência a nenhum outro fim, como objetivamente necessária.”375

Esse autor asseverava que não havia nada melhor que a medida de talião para expressar a qualidade e a quantidade da pena, com a condição de ser estimada por um tribunal. Os argumentos de Kant para a utilização dessa modalidade de pena eram: “[...] o mal não merecido que fazes a teu semelhante, o fazes a ti mesmo; se o desonras, desonras a ti mesmo; se o maltratas ou o matas, maltratas-te ou te matas a ti mesmo.”376

371 BASSIOUNI, Mahmoud Cherif. Diritto penale degli Stati Uniti D’America: substantive criminal law.

Tradução de Luisella de Cataldo Neuburger. Milano: Giuffrè, 1985. p. 117.

372 PAGLIARO, Antonio. Principi di diritto penale: parte generale. 7. ed. Milano: Giuffrè, 2000. p. 664. 373 BRUNO, Aníbal. Das penas. Rio de Janeiro: Rio, 1976. p. 13.

374 Ibid. “Kant combateu o propósito de se dar à pena uma função de prevenção, que Beccaria já manifestara,

negando que se pudesse utilizá-la como meio para alcançar um fim vantajoso para a sociedade ou o próprio condenado.”

375 KANT apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. São

Paulo: Saraiva, 2004. p. 108.

376 “Kant considera que o réu deve ser castigado pela única razão de haver delinquido, sem nenhuma

consideração sobre a utilidade da pena para ele ou para os demais integrantes da sociedade. Com este argumento, Kant nega toda e qualquer função preventiva – especial ou geral – da pena. A aplicação desta decorre da simples infringência da lei penal, isto é, da simples prática do delito. Cf. KANT apud BITENCOURT, 2004, op. cit., p. 111.

Por sua vez, Hegel transformou a retribuição ética de Kant em retribuição jurídica, transplantando a questão para o campo do Direito, afirmando, assim, que a finalidade da retribuição realizada através da pena, constitui a reafirmação da norma violada pelo crime, imprescindível para a manutenção da ordem e justificação da medida penal imposta ao delinquente. Hegel demonstra que o importante não seria o dano causado pelo crime, mas sim a anulação do ilícito que é o seu conteúdo.

Para Hegel377, o direito representa a expressão da vontade racional (geral), significando uma liberação da necessidade, sendo a racionalidade e a liberdade a base do direito. O delito, compreendido como a negação do direito, constitui a manifestação de uma vontade irracional (particular), denotando uma comum contradição entre duas vontades. Ocorrida a vontade particular, que é a do infrator, “[...] o crime é aniquilado, negado, expiado pelo sofrimento da pena, que, desse modo, restabelece o direito lesado”, pois considera-se “[...] a justiça como mandato de Deus, e a pena como execução da função judicial divina.”378 A imposição da pena pressupõe o restabelecimento da ordem jurídica fragmentada. Somente por meio da aplicação da pena o delinquente será tratado como um ser racional e livre. Assim, a pena representa o modo de reparar o dano provocado pelo delito, recobrando a harmonia perdida.379

A teoria retributiva, ultrapassado o período de Talião (“olho por olho, dente por dente”), mostrou-se inadequada, de modo que se passa a reconhecer que a igualação não poderia ocorrer de maneira fática, mas sim normativa, nada obstante restassem ainda dúvidas e controvérsias “[...] quanto a saber se a pretendida retribuição assumia o carácter de uma reparação do dano real, do dano ideal ou de qualquer outra grandeza, se ela ocorria em função do desvalor do facto ou antes da culpa do agente.”380

Podemos encontrar nos moralistas e nos filósofos provas consistentes de que a retribuição rapidamente deixou de representar a finalidade exclusiva da pena381, em que pese alguns autores afirmarem que se trata de um componente legítimo e necessário do conceito de Justiça, chamando-a inclusive de retributiva.382

As controvérsias não mais subsistem, pois se entende hoje que a ideia de retribuição está funcionalmente ligada à ilicitude do fato e à culpabilidade do agente, eis que a

377 BUSTOS RAMIREZ, Juan apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e

alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 112.

378 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís

Natscheradetz. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998. p. 17.

379 BITENCOURT, 2004, op. cit., p. 113.

380 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2007. p. 46.

381 BASSIOUNI, Mahmoud Cherif. Diritto penale degli Stati Uniti D’America: substantive criminal law.

Tradução de Luisella de Cataldo Neuburger. Milano: Giuffrè, 1985. p. 118.

exigência da Justiça se projeta no tratamento de cada pessoa segundo a sua culpabilidade e, coerentemente, porque na concepção de tratar o homem segundo a sua liberdade e dignidade, chega-se inexoravelmente no princípio da culpabilidade, máxima do direito penal “[...] humano, democrático e civilizado”, segundo o qual “Não pode haver pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa.”383 Inclusive, este é o grande mérito das doutrinas atuais, decorrentes de alguma ideia de retribuição, pois coloca o princípio da culpabilidade como vetor da aplicação da pena, em homenagem à dignidade humana384 e na sua aplicação prática a teoria mostra-se de grande utilidade, pois comporta uma limitação ao poder penal estatal, fazendo com que a aplicação da pena seja na mesma medida da culpabilidade do autor do delito.385

Pode-se dizer que a doutrina retributiva deixou uma importante contribuição, pois a sanção penal somente se justifica nos restritos limites da justa retribuição. A principal qualidade desta concepção retributiva é “A idéia de medição da pena, o que podemos chamar de princípio da proporcionalidade, dado informativo de qualquer moderna legislação penal.”386

Por outro lado, a doutrina retributiva é falha no que se refere aos fins da pena. Em primeiro lugar porque não é efetivamente uma teoria dos fins da pena, mas sim uma consideração de que a pena é uma entidade independente de fins. Em segundo lugar porque ela é inadequada para a legitimação, fundamentação e sentido da intervenção penal.387

Critica-se a doutrina retributiva, uma vez que ela “[...] esgota o seu sentido no mal que faz sofrer ao delinqüente como compensação ou expiação do mal do crime;”388 mostrando-se, claramente, uma doutrina social-negativa, revelando-se contrária a qualquer tentativa de ressocialização do delinquente, com a devida restauração da paz jurídica da comunidade afetada pelas consequências do crime; contrária, assim, aos objetivos de prevenção e controle do fenômeno da criminalidade.389

Segundo Roxin390, a teoria da retribuição não serve, pois não atende aos requisitos da punibilidade, uma vez que não estão comprovados os seus fundamentos. Além disso,

383 DIAS, 2007, op. cit., p. 46-47.

384 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2007. p. 47.

385 ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Introducción al derecho penal y al derecho penal

procesal. Tradução de Luis Arroyo Zapatero e Juan-Luis Gómez Colomer. Barcelona: Ariel, 1989. p. 24.

386 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo,

jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. p. 131.

387 DIAS, 2007, op. cit., p. 48. 388 Ibid.

389 Ibid.

390 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís

[...] nada se altera com a substituição, que amiúde se encontra em exposições recentes, da ideia de retribuição (que recorda em demasia o arcaico princípio de talião), pelo conceito dúbio de expiação, na medida em que, se com ele se alude apenas a uma ‘compensação da culpa’ legitimada estatalmente, subsistem integralmente as objeções contra uma ‘expiação deste tipo’. Se, pelo contrário, se entende a expiação no sentido de uma purificação interior conseguida mediante o arrependimento do delinquente, trata-se então de um resultado moral, que por meio da imposição de um mal mais facilmente se pode evitar mas que, em qualquer caso, se não pode obter pela força.

As teorias absolutas não procuram uma saída para o problema, apóiam-se em si mesmas e não se ocupam dos efeitos empíricos da pena - êxito na ressocialização e efetiva intimidação -, ao contrário do que ocorre nas teorias modernas, pois estes efeitos não cabem dentro de seus horizontes teóricos e nem sequer são formulados.391

Vê-se que as penas alternativas não se enquadram nestas teorias, pois a única finalidade destas é a expiação; é pagar o mal praticado por meio do mal da pena. Ao contrário, as penas alternativas representam uma nova visão do Direito Penal que deixa de penalizar as infrações de menor potencial ofensivo com pena de prisão, visando à ressocialização do infrator, de forma não estigmatizante.

A conversão da medida alternativa imposta na transação penal em pena privativa de liberdade – devido ao seu descumprimento - pode vir a significar um retorno à ideia retributiva. O autor do fato aceitou uma prestação alternativa em troca de ser processado e até mesmo condenado à pena de prisão. Contudo, ele descumpre o acordo e, como já analisado, poucas alternativas restam para que se faça cumprir a prestação avençada (execução do acordo, oferecimento de denúncia e conversão em pena privativa de liberdade). Desse modo, a opção da conversão da medida descumprida em pena privativa de liberdade ofende os princípios constitucionais de igualdade e legalidade, ao se executar uma pena de prisão sem que exista processo penal, com contraditório e ampla defesa, além de não haver previsão legal para tanto, lembrando, assim, a ideia retributiva, pois como dito por Roxin392, “[...] não se compreende como se pode pagar um mal cometido, acrescentando-lhe um segundo mal, sofrer a pena. É claro que tal procedimento corresponde ao arraigado impulso de vingança humana, do qual surgiu historicamente a pena.”

391 Para Hassemer, nos dias atuais, não se pode “decidir” a favor de uma pura teoria retributiva. Para tanto,

deveríamos mudar a época, pois significaria renunciar a uma justificação da pena desde o ponto de vista de seus efeitos práticos (tanto frente ao delinquente individual, como frente à comunidade jurídica como um todo). Portanto, o Direito Penal não pode decidir por esta renúncia. Cf. HASSEMER, Winfried.

Fundamentos del derecho penal. Traducción y notas de Francisco Muñoz Conde y Luis Arroyo Zapatero.

Barcelona: Bosch, 1984. p. 349.

392 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís