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CAPÍTULO 4 A CONVERSÃO DA MEDIDA IMPOSTA NA TRANSAÇÃO PENAL

4.1 A Sanção Penal

4.1.1 A sanção penal na antiguidade

A pena representa um dos mais controvertidos temas do Direito Penal e, em substância, representa o valor que a sociedade atribui à repulsa, à ofensa, encarnando o seu interesse nos confrontos com o culpado.330 A pena é um castigo infligido ao autor de uma infração. Ela tem por resultado imediato causar um sofrimento. A noção de sofrimento é inseparável da ideia de pena, pois ela permite distinguir a pena de outros procedimentos coercitivos.331

O que podemos considerar barbaridade nos dias atuais era julgado correto e adequado outrora, tal como se observa no Velho Testamento, que punia o adultério com a pena de morte. Insta considerar que ainda hoje se vêem penas que os ocidentais consideram cruéis e desumanas, mas que para os muçulmanos são adequadas para punir o ofensor, tal como ocorre com o talho das mãos do ladrão que rouba.

Num olhar panorâmico, verificamos que em pleno século XXI, ainda temos penas que ofendem a dignidade da pessoa humana, tais como a pena de morte, de trabalhos forçados

330 BASSIOUNI, Mahmoud Cherif. Diritto penale degli Stati Uniti D’America: substantive criminal law.

Tradução de Luisella de Cataldo Neuburger. Milano: Giuffrè, 1985. p. 109. (Tradução nossa de: “La pena

rappresenta com ogni probabilità l’aspetto più controverso del diritto penale. In sostanza, la pena rappresenta Il valore che la società attribuisce all’odiosità dell’offesa e incarna Il suo interesse nei confronti del colpevole.”).

331 VABRES, Henri Donnedieu. Traité élémentaire de droit criminal: et de législation pénale comparée. Paris:

Librairie du Recueil Sirey, 1939. p. 283. (tradução nossa de: “La peine est um chàtiment infligé à l’auteur

d’une infraction. Elle a pour résultat immédiat de causer une souffrance. La notion de souffrance est inseparable de l’idée de peine. C’est elle qui permet de distinguer la peine d’autres procédés coercitifs.”).

e obrigatórios, além das penas pecuniárias, assim como acontece, por exemplo, nos Estados Unidos da América.332

Também no antigo Estado Soviético a pena servia como meio de proteção do regime estatal e social, da propriedade socialista, da pessoa e dos direitos dos cidadãos, assim como de todo o ordenamento socialista contra o crime, sendo considerada uma categoria classista, pois, diferentemente do regime capitalista, a sua aplicação tinha por finalidade defender os interesses do “[...] adiantado e progressista regime social.”333

Na idade média, a aplicação da pena de morte contradizia as aspirações da consciência cristã. A igreja dizia ter horror ao sangue (Ecclesia abhorret a sanguine). Entretanto, a pena de morte encontrou defensores, mesmo entre os Pais da Igreja. São Tomás de Aquino a declarava legítima quando o perigo social que se pode temer, em deixando a vida aos culpados, é maior e mais certo que o bem que se poderia esperar de sua correção. Desse modo, ele previne contra um falso sentimentalismo, que, para salvaguardar o interesse material e moral ou mesmo a saúde de um grande culpado, chegava, em definitivo, a sacrificar inocentes.334

A questão foi amplamente discutida no seio da escola clássica por Rousseau e Beccaria. Rousseau tentou justificar a pena de morte invocando as cláusulas do contrato social. Para ele, o poder de dispor da vida é uma faculdade natural que os homens, por meio do contrato social, depositam nas mãos da comunidade. Essa doação não se faz gratuitamente, mas em troca de garantias que a sociedade assegura ao contratante, para o caso de sua vida vir a ser ameaçada. Beccaria não segue, nesse ponto, o pensamento de Rousseau, pois ele não admite que se possa renunciar, antecipadamente, mesmo de modo condicional, à vida. Ele reconhece a legitimidade da pena capital nos períodos de revoltas políticas, que se opõe ao reinado pacífico das leis. Mas, em tempo normal, ele se opõe à pena de morte, porque ele não crê no seu efeito intimidativo. Ele considera que o efeito intimidativo da pena está conforme sua duração.335

332 BASSIOUNI, op. cit., p. 111.

333 ZDRAVOMÍSLOV, Boris Viktorovich et al. Derecho penal sovietico: parte generale. Bogotá: Temis, 1970. p.

285.

334 VABRES, Henri Donnedieu. Traité élémentaire de droit criminal: et de législation pénale comparée. Paris:

Librairie du Recueil Sirey, 1939. p. 299. (tradução nossa de: “Au moyen age, son application devait se heurter

aux aspirations de la conscience chrétienne. L’Eglise, disait-on, a horreur du sang.Ecclesia abhorret a sanguine. Cependant, la peine de mort a trouvé des défenseurs, même parmi lês Pères de l’Eglise. Saint Thomas d’Aquin La declare legitime, lorsque se danger social que l’on peut craindre, en laissant la vie aux coupables, est plus grand et plus certain que le bien qu’on pourra attendre de leur amendement. Saint Thomas d’Aquin met en garde contre une fausse sentimentalité, qui, pour sauvegarder l’intérêt matériel et moral ou même Le salut d’un grand coupable, aboutirait, en définitive, à sacrifier des innocents.)”

335 Ibid. (tradução nossa de: “[...] Rousseau essaye de justifier la peine de mort em invoquant les clauses

prétendues du contrat social. Pour lui, le pouvoir de disposer de la vie est une des facultés naturelles que les hommes, par le Contrat social, ont remises entre lês mains de la communauté. Ce don, ils ne l’ ont pas fait

Podemos verificar que houve uma época de horror, como a estabelecida pela Ordenação francesa de 1670, vigente até a Revolução Francesa (1789), que previa a forma geral da prática penal, na seguinte hierarquia: a morte, a questão com reserva de provas, as galeras, o açoite, a confissão pública, o banimento. As penas físicas podiam variar de acordo com os costumes, a natureza dos crimes e o status dos condenados336. A pena de morte natural compreendia todos os tipos de morte, como a forca, a ter a mão ou a língua cortada ou furada e ser enforcado em seguida; em casos de crimes mais graves, a pena era ser arrebentado vivo e expirar na roda depois de ter os membros arrebentados; ou ser arrebentado até a morte natural; a ser estrangulado e em seguida arrebentado; a ser queimado vivo; a ter a língua cortada ou furada, e em seguida queimado vivo; a ser puxado por quatro cavalos, outros a ter a cabeça cortada.337

A pena capital representa uma das mais antigas formas de vingança social. Também os castigos corporais, igualmente pavorosos, estiveram presentes em quase todos os sistemas jurídicos com diferentes intensidades e tipos. Eram aplicados em nome de Deus e do governante, consistentes em açoites, tortura da roda, queimaduras com ferro quente, retirada das unhas e demais crueldades imaginadas pela mente humana.338

Com o passar do tempo o suplício tornou-se intolerável, revelando a tirania, o excesso, a sede de vingança, enfim, o cruel prazer de punir. Com relação à vítima, a situação era vergonhosa, humilhante, sem falar do exemplo que era dado ao povo, onde se aprendia, rapidamente, que a vingança era concretizada por meio de sangue.

Nota-se que a privação e a restrição da liberdade não existiam nos usos antigos como formas de aplicação de sanções, apesar do encerro e outras formas de isolamento fossem largamente utilizadas. Assim, “A prisão se infligia no interesse de assegurar a

gratuitement, mais em échange de garanties, que la société assure au contractant, pour le cas ou as vie viendrait à être menacée. Beccaria ne suit pas, sur ce point, la pensée de J. J. Rousseau. Il reconnaît la légitimité de la peine capitale dans les périodes de troubles politiques, qu’il oppose au regne paisible des lois. Mais, en temps normal, Beccaria est opposé à la peine de mort, car Il ne croit pas à son effet intimidant. Il considere, en effet, avec Bentham, que l’effet intimidant de la peine est en rapport avec sa durée.”).

336 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 36. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 34. 337 SOULATGES, J. A. apud FOUCAULT, 2009, op. cit., p. 34.

338 BASSIOUNI, Mahmoud Cherif. Diritto penale degli Stati Uniti D’America: substantive criminal law.

Tradução de Luisella de Cataldo Neuburger. Milano: Giuffrè, 1985. p. 110. (tradução nossa de: “La pena

capitale, una delle più controverse, rappresenta la più antica forma di vendetta sociale. Pene corporali diverse da quella capitale erano previste praticamente in ogni sistema giuridico anche se di intensità e tipi diversi. Erano applicate nel nome di Dio e dei governanti e consistevano in staffilate, bastonate, nel supplizio della ruota, in ustioni com ferri roventi, nell’asportazione delle unghie e in tutto quanto di crudele poteva escogitare la mente umana.”).

execução das penas corporais, especialmente a de morte, além de servir para a colheita de prova mediante tortura.”339

A prisão (cárcere) foi introduzida pelo Direito Canônico, como “[...] instrumento espiritual do castigo”, pois através do sofrimento e isolamento, a alma humana poderia se depurar e expiar o pecado. A igreja considerava o delito a pura expressão do pecado e, para remir sua culpa, o agente deveria ser submetido à penitência, que poderia aproximá-lo de Deus. Eis a razão de se efetivar o internamento dos infratores em prisões de conventos.340

Na segunda metade do século XVIII, iniciam-se fortes protestos contra os suplícios: filósofos e teóricos do direito, juristas, magistrados, parlamentares e legisladores. Era preciso punir de outro modo, eliminando-se a confrontação física entre soberano e condenado, o conflito frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida do povo, por intermédio do supliciante e do carrasco. Era necessário punir com “humanidade.”341 Os criminosos já não eram os mesmos, verifica-se uma considerável diminuição dos crimes de sangue e das agressões físicas e um crescente aumento do número de crimes patrimoniais, ocorrendo nítida suavização dos crimes antes mesmo da suavização das leis. Em contrapartida, a justiça do século XVIII torna-se “[...] mais lenta, mais pesada, mais severa com o roubo, cuja freqüência relativa aumentou, e contra o qual toma agora ares burgueses de justiça de classe.”342 Foucault343 ressalta que “A reforma penal nasceu no ponto de junção entre a luta contra o superpoder do soberano e a luta contra o infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas.”

Por conseguinte e face à larga experiência alcançada em mais de duzentos anos, Dotti344 assevera que

A prisão é o monocórdio que se propõe a executar a grande sinfonia do bem e do mal. Nascendo geralmente do grito de revolta das vítimas e testemunhas na flagrância da ofensa, ela é instrumento de castigo que se abate sobre o corpo do acusado e o incenso que procura envolver a sua alma caída desde o primeiro até o último dos purgatórios.

4.1.2 Sobre as finalidades da pena

339 DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,

1998. p. 32.

340 DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,

1998. p. 33.

341 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 36. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 71. 342 LE ROY-LADURIE apud FOUCAULT, 2009, op. cit., p. 74.

343 FOUCAULT, 2009, op. cit., p. 84. 344 DOTTI, 1998, op. cit., p. 105-106.