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CAPÍTULO 6 CONSIDERAÇÕES PESSOAIS SOBRE A CONVERSÃO DA MEDIDA

6.1 A Conversão da Medida Imposta na Transação Penal em Pena Privativa de

6.1.1 Considerações

Como já analisado, a Lei 9.099/95 trouxe formas de diversificação processual653 como a transação penal e a suspensão condicional do processo, com a finalidade de aplicação de penas alternativas em substituição à pena de prisão, nas infrações penais de menor e médio potencial ofensivo, como forma de se atingir, por meios menos gravosos do que a pena criminal, os fins de política criminal.

Para tanto, realiza-se audiência preliminar, oportunizando-se ao autor desse tipo de infração a possibilidade de celebrar acordo com o Ministério Público - que será ou não homologado pelo juiz –, aplicando-se pena restritiva de direitos ou multa, em substituição à

653 Expressão utilizada por Fernando Fernandes, em seu livro, para expressar a transação penal e a suspensão

condicional do processo no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Cf. FERNANDES, Fernando. O processo penal

pena privativa de liberdade. 654 Realizada a transação penal, se o autor cumpre o acordo, será extinta a sua punibilidade. Contudo, se o descumpre, incide-lhe as consequências já vistas, como a execução, o oferecimento de denúncia ou a conversão em pena privativa de liberdade.

Como demonstrado, a execução do acordo está com seus dias contados, eis que

apenas o Superior Tribunal de Justiça acata este posicionamento – de que a transação penal descumprida deverá ser executada -, já havendo posicionamento dissonante no próprio tribunal a este respeito.655

Com relação ao oferecimento de denúncia diante do descumprimento do acordo, o Supremo Tribunal Federal656 é unânime a este respeito, havendo o entendimento de que é a melhor solução ao caso.

Por último, a conversão do acordo descumprido em pena privativa de liberdade mostrou-se contrária à Constituição Federal e aos pressupostos da Lei 9.099/95, cujo fundamento é evitar a instauração de processo nas infrações de pouca lesividade, evitando-se a pena privativa de liberdade.

Portanto, busca-se alternativa à pena privativa de liberdade de curta duração como forma de proteger o direito individual do infrator, evitando-se os efeitos maléficos da prisão, pois como alerta Gomes657, a prisão no moderno Estado de Direito “[...] além de não ser

654 Se o juiz adotar o posicionamento do STF, o acordo deverá ser homologado, pois segundo esta Corte a

homologação da transação penal não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retorna-se ao início, possibilitando-se ao Ministério Público o oferecimento de denúncia. Se adotar o posicionamento do STJ, de que o descumprimento da transação penal enseja somente a execução, homologará o acordo e diante do seu descumprimento caberá somente a execução, ou não o homologará, condicionando-a ao cumprimento do acordo e, diante do descumprimento, terá início a ação penal. Contudo, recentemente, algumas turmas do STJ também passaram a adotar o entendimento do STF.

655 O Superior Tribunal de Justiça está começando a abandonar o posicionamento de que se o acordo realizado

em transação penal for descumprido, apenas caberá a sua execução judicial. Já existem posicionamentos no sentido de que o acordo descumprido enseja o oferecimento de denúncia, seguindo os passos do Supremo Tribunal Federal.

656 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 602.072/RS. Relator: Min. Cezar Peluso. Julgado em: 19 nov.

2009. Diário da Justiça, Brasília, DF, 26 fev. 2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/

listarJurisprudencia.asp?s1=%28transa%E7%E3o+penal+n%E3o+homologada%2ENUME%2E+OU+transa% E7%E3o+penal+n%E3o+homologada%2EPRCR%2E%29&base=baseRepercussao>. Acesso em: 7 set. 2012.

657 Ainda nesse sentido, Gomes leciona que, “[...] hoje em dia, aparentemente, continua sendo esta privação da

liberdade a única pena que se impõe aos delinqüentes, mas de fato não é assim. Ao enviá-lo a nossas prisões, na realidade se lhes está submetendo a penas corporais tão duras e abjetas como as medievais. Quando um indivíduo hoje ingressa em uma prisão, não está sendo mandado para passar um tempo afastado da convivência e a sofrer o único castigo do seu encerramento, mas antes ele está sendo condenado a quase certas violações e violências várias, talvez à utilização de drogas, muito possivelmente a contrair enfermidades – sobretudo uma mortal, a Aids. Essas condenações implícitas, mas efetivas, reais, com as quais ninguém parece se escandalizar ainda que sejam manifestas, são padecidas ademais da mesma forma por qualquer preso, independentemente da gravidade de seu crime.” Cf. GOMES, Luiz Flávio. Suspensão condicional do

processo penal: e a representação nas lesões corporais, sob a perspectiva do novo modelo consensual de

neutra, é altamente dessocializadora e perigosa. Todas as penas proibidas formalmente pela nossa Constituição (art. 5º, inc. XLVII) acham-se presentes no dia-a-dia de uma prisão.”

Não podemos esquecer que “a pena é um mal que se impõe ao autor pelo fato culpável. Baseia-se no postulado da retribuição justa, ‘que cada um sofra o que seus fatos valem’ (Kant)”658. Desse modo, a pena deve compensar juridicamente a culpabilidade do infrator. Em última instância, ela é o resultado de uma causa e deve manter a relação de proporcionalidade entre o mal do ilícito e o mal justo imposto ao infrator.659

Por isso, a Lei 9.099/95, seguindo os passos da modernidade penal (mínima intervenção e máxima efetividade), trouxe as medidas alternativas (penas restritivas de direitos ou multa), como forma de se evitar a pena privativa de liberdade.

Confrontando-se estas medidas alternativas com as teorias da pena - analisadas no capítulo 4 – tem-se que as teorias retributivas não servem às finalidades destas medidas, pois para estas teorias a finalidade precípua da pena era realizar a retribuição pura como consequência natural do crime, a ser devidamente cumprida sem justificações de qualquer outra natureza, seja individual ou social. Elas enxergam na pena um predominante caráter de castigo, onde se pune o mal (prática de delito) com o mal (pena). O único fim da imposição da pena absoluta é a realização da Justiça. Diante do mal provocado pelo delinquente existe sempre um castigo que compense esse mal e o retribua. Considerar estas teorias, hoje, seria um retrocesso.

As penas alternativas também não cumprem o seu papel preventivo-geral, pois para esta teoria o fim da pena não se encontra na retribuição nem em sua influência sobre o infrator, senão na influência sobre a comunidade, que por meio da ameaça de sanção penal deve ser intimidada a não mais praticar delitos. Desse modo, a pena deve atuar especialmente sobre a comunidade e, geralmente, sobre o infrator. A transação penal e as demais penas alternativas não atendem aos requisitos da doutrina da coação psicológica de Feuerbach, que reconhece a ameaça de pena como forma de intimidação à prática da infração penal, pois não

658 WELZEL, Hans. Derecho penal aleman: parte general. 11. ed. Traducción del alemán: Juan Bustos Ramírez

y Sergio Yáñez Pérez. Santiago: Jurídica de Chile, 1970. p. 326. (tradução nossa de: “La pena es un mal que

se impone al autor por el hecho culpable. Se basa en el postulado de la retribución justa, que ‘cada uno sufra lo que sus hechos valen’.”).

659 DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,

1998. p. 212. Ainda para este autor, “O mal da pena geralmente não se exaure na pessoa do infrator. Ele se projeta aos seus familiares e pessoas que com ele estão ligadas por laços de interesse ou afeição. Assim como no sofrimento resultante de uma doença, quando, à volta do leito, se amargura a infelicidade do enfermo, também ocorre a lamentação dos parentes e amigos do condenado. Essas pessoas, estranhas ao delito como aquelas não afetadas pela doença, sofrem, no entanto, os efeitos morais desses problemas.” Cf. DOTTI, op. cit., p. 219.

almejam a privação da liberdade do autor do fato; pelo contrário, buscam a sua ressocialização longe do cárcere. Logo, não comungam o pensamento da prevenção geral.

As penas alternativas não exercem intimidação sobre o autor do fato, em razão de não possuírem qualquer poder coercitivo para que sejam cumpridas. O autor cumpre se quiser. A advertência de que o não cumprimento do acordo ensejará na instauração de ação penal contra o autuado não é suficiente para que ele cumpra a medida imposta. Portanto, a falta desse poder coercitivo - como a conversão em pena privativa de liberdade - faz com que fique sem cumprimento o acordo celebrado, não exercendo influência intimidativa sobre a comunidade.

Pode-se dizer que as terias da prevenção especial cumprem bem o seu papel frente às penas alternativas, pois possuem como objetivo principal a correção do infrator, buscando a sua ressocialização660. A prevenção especial não consiste na intimidação do grupo social ou a retribuição do delito praticado, ela visa apenas aquele indivíduo que ofendeu a ordem jurídica, de modo a fazer com que não volte a praticar delitos, legitimando-se, assim, sob o ponto de vista político-criminal. Nada melhor do que as penas alternativas para a ressocialização do infrator, eis que para realizar o seu cumprimento não necessita ser privado de sua liberdade, do seu trabalho e do convívio familiar. Na lição de Pimentel661:

A pena continua a ser necessária, como medida de justiça, reparadora e impostergável. Isso não se pode negar. Mas, as finalidades adicionais, tais como prevenir a prática de novos delitos e promover a reinserção social do condenado, não são satisfatoriamente cumpridas.

Analisada sob esse enfoque, a conversão662 da pena alternativa acordada na transação penal é medida extrema, pois contraria os fins da Lei 9.099/95, que tem como principal fundamento a aplicação de pena alternativa em substituição à prisão. Além de ser a principal finalidade almejada por esta lei, ela está de acordo com os postulados constitucionais da legalidade, igualdade, intervenção mínima, da proporcionalidade, da ofensividade e da humanidade, conforme analisados no capítulo 5, demonstrando que as penas alternativas -

660 Para Roxin, “Servindo a pena exclusivamente fins racionais e devendo possibilitar a vida humana em comum

e sem perigos, a execução da pena apenas se justifica se prosseguir esta meta na medida do possível, isto é, tendo como conteúdo a reintegração do delinquente na comunidade. Assim, apenas se tem em conta uma execução ressocializadora”. Cf. ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998. p. 40.

661 PIMENTEL, Manoel Pedro. O crime e a pena na atualidade. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,

1983. p. 180.

662 Segundo Liszt, conversão “[...] é a substituição de um gênero de pena por outro. Faz-se mister, quando razões

de facto ou de direito tornam impossível a applicação do gênero de pena de que se trata.” Cf. LISZT, Franz von. Tratado de direito penal allemão. Tradução de José Hygino Duarte Pereira. Brasília, DF: Senado Federal, 2006. (História do direito brasileiro). p. 454.

implementadas pelas Regras de Tóquio e implantadas pela Lei 9.099/95, nas infrações penais de menor potencial ofensivo - acompanham “[...] os movimentos universais que buscam contornar as consequências negativas da pena privativa da liberdade.”663

Vê-se que as penas alternativas buscam defender a sociedade em oposição ao crime. Por meio destas medidas, almeja-se a ressocialização do infrator, a reparação do dano e a prevenção do crime. Na lição de García-Pablos de Molina664, “[...] sem dúvida, este é o enfoque cientificamente mais satisfatório e o mais adequado às exigências de um Estado social e democrático de Direito.” Nesse sentido, a Regra de Tóquio 1.5 prescreve a necessidade das penas alternativas:

Os Estados-membros devem introduzir medidas não-privativas de liberdade em seus sistemas jurídicos para propiciar outras opções, reduzindo deste modo a aplicação das penas de prisão e racionalizar as políticas de Justiça Penal, levando em consideração o respeito aos direitos humanos, as exigências da justiça social e as necessidades de reabilitação do delinqüente.

Estas penas devem despertar no autor a vontade de não mais praticar delitos, fazendo-o refletir sobre os seus atos, pois se foi beneficiado com pena alternativa, significa que tem condições de ressocialização fora do cárcere, onde certamente seria contaminado pelo ambiente hostil.

Ao adotar a opção das penas alternativas em substituição à privativa de liberdade, como consectário de um Direito Penal mínimo e garantista665, leva-se em consideração o valor do bem jurídico tutelado e a lesão a ele provocada, de forma a se valorar a severidade e o modo de aplicação da sanção penal. Portanto, nas infrações de menor potencial ofensivo, ou seja, em função do pequeno valor do bem jurídico lesionado, a norma penal pode não necessitar de uma resposta penal típica (processo penal formal) para “[...] a manutenção e reforço de sua vigência.”666 Assim, a pena privativa de liberdade somente deve ser aplicada como última instância do sistema, respeitando-se os princípios constitucionais da legalidade e proporcionalidade.

663 CERNICCHIARO, Luiz Vicente; COSTA JUNIOR, Paulo José da. Direito penal na constituição. 2. ed. São

Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991. p. 103-104.

664 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus

fundamentos teóricos; introdução às bases criminológicas da lei 9.099/95 – lei dos juizados especiais. 5. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 311.

665 BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas penas alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei n.

9.714/98. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 167.

666 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Coimbra: Almedina,

2001. p. 798. Leciona o autor que “[...] as formas de diversificação processual se apresentam como um meio de manter o alcance do Sistema também em relação à criminalidade de menor potencial ofensivo, de modo que funcionem como via suficiente e adequada para a estabilização das normas jurídicas que tutelam os bens alcançados por esse tipo de delitos.”