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CAPÍTULO 5. OS BOLIVIANOS EM BUENOS AIRES

5.2. A Presença Boliviana no Espaço Público da Cidade de Buenos Aires: Espaços de

5.2.1 A Festa Patronal de Nossa Senhora de Copacabana

Sempre no mês de outubro é realizada em Buenos Aires a festa de Nossa Senhora de Copacabana (Fiesta de Nuestra Señora de Copacabana). A virgem de Copacabana é considerada a padroeira da Bolívia e dos imigrantes bolivianos na Argentina. Não se trata, porém, de uma festa exclusiva da cidade de Buenos Aires, pois é possível encontrar celebrações semelhantes em homenagem à virgem também em Córdoba.85 Segundo Grimson (2011), essas comemorações são realizadas em diversos bairros de Buenos Aires, por exemplo, em Charrúa, Fuerte Apache e Villa Celina.

Grimson (2011) esteve presente na festa da padroeira no Barrio de Charrúa. De acordo com sua descrição, o evento possui três partes distintas. No período da manhã é realizada uma missa, seguida por uma procissão com a presença das fraternidades de dança. O festejo termina, por fim, com um baile popular no período da noite. As fraternidades de dança trazem para o espaço portenho algumas danças bolivianas, como a Morenada, Caporales, Pujllay, Doctorcitos, Diablada, Saya Negra, Antawara, Tobas, Tinku, Pinquillos, Tarqueada, Puca Ponchos, dentre outras. São danças praticadas pelas diversas classes sociais, grupos étnicos e regionais que configuraram os povos que habitam a Bolívia.

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Grimson (2011) afirma que na Bolívia as festas patronais possuem importantes particularidades e diferenças em razão das regiões onde acontecem. Em algumas há diferentes grupos de dança, com diversificadas vestimentas, e até a participação do Estado, por meio da presença de políticos que as prestigiam.

Nessa festa podem ser encontradas comidas típicas e produtos da Bolívia. Dezenas de mesas são montadas, desse modo os participantes podem sentar e desfrutar de comidas e bebidas, como chicharrón, picante de pollo, fricasé, chicha, cerveja e até coca-cola. Há venda de artesanato e outros produtos de higiene pessoal, por exemplo, sabonetes e shampoo, inclusive, utensílios do dia a dia, como relógios.

Grimson (2011) enfatiza que, durante a festa, tanto a bandeira boliviana quanto a argentina são hasteadas juntas e acompanhadas da bandeira do Vaticano. Aliás, a presença da Igreja Católica não se resume à veneração da virgem, pois antes de terminar a missa são feitas várias declarações. Dentre as quais, a leitura de um documento da Comisión Católica Argentina sobre Inmigración em defesa dos direitos dos imigrantes, incitando o respeito mútuo aos povos.

Além disso, os organizadores da festa fazem uma leitura do regulamento do evento em relação ao comércio que será praticado. Isto é, relembram as formas que devem ser seguidas pelos comerciantes que participam da celebração, advertindo-os que não devem vender seus produtos a um preço excessivo e que devem sempre baixar o volume da música quando a virgem passar em procissão.

Participam da festa as fraternidades de dança, cujos grupos são compostos por jovens, adultos e algumas crianças. Os membros da Paróquia anunciam os grupos que entram, mencionando o tipo de dança que apresentarão e o bairro de origem. Cada grupo possui sua própria orquestra. Apresentam-se em média trinta e cinco grupos, possuindo cada um entre vinte e vinte cinco bailarinos (GRIMSON, 2011).

Não é simples identificar o significado de toda essa complexa celebração. Pode-se sustentar que a festa é apenas um acontecimento religioso ou que a virgem de Copacabana é uma herança da época colonial espanhola e que o sentido profundo da festa se vincula à Pachamama, "la Madre Tierra", e à celebração aymara e quéchua, caracterizando-se por ser uma festa muito mais boliviana no espaço portenho do que somente religiosa. Se de um lado há essa visão acerca da religiosidade e da conexão com a terra de origem, por outro há o sentido de troca comercial (GRIMSON, 2011).

Entretanto, não só esses significados podem ser apontados, pois a presença dos grupos festivos de dança confere um caráter carnavalesco e jovial para a festa, uma vez que além de envolver muitos estilos de dança, nota-se a promoção do encontro de jovens que

querem conhecer outros jovens, de adultos que querem celebrar amizades ou simplesmente conhecer outras pessoas, de crianças que querem brincar e ver o amontoado de cores que desfilam diante de seus olhos. Há, portanto, um grande intercâmbio.

Se por um lado há pluralidade, diversidade e troca, por outro há também espaço para a negociação do sentido da imigração e da própria condição de imigrante. Alguns imigrantes bolivianos consideram a Festa da Virgem de Copacabana uma ocasião para se mostrar a cultura andina de caráter autóctone, indianista, e não para demonstrar a religiosidade católica do povo boliviano que se encontra em sintonia com a mesma religiosidade do povo portenho, o que seria um fator de integração. Para estes, os direitos dos imigrantes bolivianos, o direito à cidadania e à igualdade, não se deve em razão de uma necessária interação entre os povos, como defende o discurso da Igreja, mas sim porque são eles os primeiros e originários habitantes da América do Sul. Nesse sentido, tem-se o relato de um boliviano coletado por Grimson (2011):

[…] los bolivianos somos dueños de la tierra, los argentinos no son dueños de las tierras, los porteños más que todo, ustedes son emigrantes que han venido a ocupar un territorio. Vos inclusive tienes descendencia extranjera, tu etnia, tus ancestros están en Europa. En cambio nosotros somos dueños de un territorio, que se llama Bolivia, somos descendientes de los aymaras-quechuas. Entonces para nosotros es importante preservar nuestra identidad, porque somos dueños de un territorio determinado, nuestros ancestros han pisado este suelo y nosotros somos dueños de nuestra tierra. El jujeño es dueño de su tierra porque los Incas antiguamente abarcaban hasta Tucumán. Entonces para nosotros es importante mantener nuestra identidad porque nosostros somos dueños de esta tierra, inclusive de toda Sudamérica somos nosotros dueños, somos nativos de acá, no somos de Europa, no somos emigrantes.

Seja qual for o sentido da festa, não há dúvidas de que ele não é único. Além disso, é um acontecimento extremamente importante para os imigrantes bolivianos e seus filhos nascidos na Argentina no contexto do espaço onde vivem, pois se trata de uma oportunidade para expressar pública e coletivamente, não só as tradições culturais e religiosas, que marcam a relação de identidade dessas pessoas com a Bolívia e que são de maneira intrínseca parte da própria identidade de cada uma delas; mas também estabelecer uma forma de diálogo com as demais pessoas que habitam a cidade de Buenos Aires. É inegavelmente um momento de negociação coletiva (GRIMSON, 2011), de intersecção

entre o passado e o presente, entre a história e o contexto atual, de discussão política, um momento em que interesses se chocam e se encontram nas disputas entre o sentido religioso e indianista, entre o sentido da imigração e a coletividade boliviana diante da sociedade portenha. Diante disso, Grimson afirma (2011) que

[…] sin perder su dimensíon religiosa, la re-creación de las fiestas aparece como parte de la reconstrucción de una “cultura nacional”. Este nuevo sentido étnico es producido específicamente en la nueva situación de alteridad. Aquí no hay instancias estatales que promuevan la convocatoria – como las intendencias –, sino que, por el contrario, las intervenciones del Estado argentino en el curso de la fiesta pueden ir desde inspecciones bromatológicas para cerrar puestos de comida hasta la represíon policial con gases lacrimógenos. De ese modo, el nacionalismo deja de ser una búsqueda de legitimidad de un modelo estatal de ciertas elites, y pasa a formar parte de un relato étnico que atraviesa a todos los sectores y agrupamientos identificados con la colectividad como modo de manifestarse y dialogar con ese otro Estado y esa sociedad que los construye como Otros […] sin embargo, el proceso de identificación, de contruccíon de una homogeneidad conflictiva que defina la bolivianidad, está imbricada con el proceso de diálogo, negociacíon y conflicto con los “porteños” y otros grupos socioculturales. Por una parte, cada grupo e institucíon contruye su posicionamento en la fiesta, no sólo en base a una historia sino también en funcíon de su concepción de las relaciones sociales reales, imaginadas y deseadas en el contexto migratorio. Por otra parte, las fiestas como un todo, constituyen un modo de presentación y de acción frente a esa sociedad mayor. La fiesta es un modo clave de actuar la relación entre migrantes bolivianos y la sociedad porteña.

As festas patronais não constituem ações ocultas, clandestinas, envergonhadas, muito pelo contrário, constituem ações realizadas no espaço público portenho. O significado de "boliviano" não é negado nesse momento, mas sim reafirmado orgulhosa e positivamente frente à sociedade portenha. As festas espalham-se por outros bairros além de Charrúa, por exemplo, em Pompeya e Fuerte Apache. Há ainda duas festas que chegam a ocupar espaços públicos do coração de Buenos Aires: a Fiesta de la Virgen de Santa Cecilia e a Fiesta de la Virgen del Carmen. A primeira ocorre no final do ano e a segunda em meados de janeiro, mas ambas são marcadas por missas realizadas na Catedral de Buenos Aires, com procissões ao redor da Plaza de Mayo, centro político e social da cidade e da Argentina, onde se encontra a sede do Governo Nacional e o prédio histórico do Cabildo, no qual teve início o processo de independência argentino (GRIMSON, 2011). Ou seja, trata-se de um lugar cuja representação para o povo argentino é muito importante, pois

ele não só se relaciona com a gênese da nação argentina, como também é o espaço onde são realizadas as principais manifestações políticas e sindicais do país. Lugar em que o argentino age no espaço público, reivindicando e cobrando do Estado aquilo que entende ser necessário.

Essas duas festas são menores e abrangem menos pessoas que as dos bairros de Charrúa e Pompeya. No entanto, possuem diversas similaridades: em ambas podem ser vistas as bandeiras da Bolívia e da Argentina juntas, há fraternidades de dança, grupos musicais tocando guitarras e sanfonas etc. Assim como a Festa de Nossa Senhora de Copacabana, elas fazem parte desse processo de negociação coletiva, de intercâmbio, de ação no principal espaço político de Buenos Aires.