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CAPÍTULO 2. O SER HUMANO COMO CENTRO DE PROTEÇÃO DO DIREITO

2.1 A Nacionalidade e o Direito Internacional

Guido Soares (2004, p. 174) assevera que a nacionalidade é o vínculo mais antigo da história da humanidade, cuja existência une pessoas e estabelece entre elas os fundamentos para o exercício do poder, por parte de uma autoridade local. Tomando como premissa a longevidade desse vínculo e assumindo que as relações internacionais são, na realidade, muito anteriores no tempo à organização westfaliana dos Estados, tem-se a nacionalidade como grande fator de coesão de antigas civilizações. O relacionamento entre células políticas em confronto, como entidades autônomas – que não eram Estados –, tinha na nacionalidade um importante elemento diferenciador.

Guido Soares (2004, p. 172) esclarece que, no auge do expansionismo romano, as definições da cidadania romana, sobre quem podia obtê-la e quem não podia, sofreram extensões crescentes. Roma estendeu continuamente sua cidadania para os povos habitantes do Império. Consagrava-se a aquisição da cidadania pelo critério do jus sanguini, pois as relações familiares serviam como base para legitimar direitos e deveres de um indivíduo livre em relação ao seu próprio povo. Na Idade Média, o critério do jus sanguini deu lugar ao jus soli, ligado ao fenômeno do local de nascimento do indivíduo, sem referência à linhagem de sangue. Essa mudança de critério teve raízes na organização social e econômica do período Feudal, baseada no território.

Com a emergência dos Estados modernos europeus e a gênese da ordem marcada pelos Tratados de Paz de Westfália, de 1648, a nacionalidade adquiriu maior importância –

passou a caracterizar um elemento determinante de submissão do indivíduo a um ordenamento jurídico circunscrito a um território dominado por um soberano. Nesse sentido, serviu como delineador do tripé Povo-Território-Estado, indicando quem pertencia ao povo, quem teria o direito de estar no território e quem deveria obediência e lealdade ao Soberano. Desde a formação dos Estados modernos a nacionalidade tem exercido o papel de afirmação da existência do próprio Estado e dos motivos que justificariam o essencial dos seus comportamentos.

Pasquale Stanislao Mancini (2003, p. 35-86), ainda na segunda metade do século XIX, buscou fundamentar o direito das gentes por meio da nacionalidade. Para ele, o direito não poderia jamais ser um produto da nua vontade humana, mas sim de uma necessidade de natureza moral, da força aplicada a um princípio de ordem moral que procederia de uma região superior daquela em que os homens viveriam e desejariam. Ou seja, consistia um dever reconhecer a coexistência das nacionalidades como lei do Direito, como fato principal da ciência do Direito Internacional. Destarte, a nacionalidade deveria ser tomada como a primeira verdade e a teoria fundamental do Direito Internacional por razões naturalísticas. Cada povo era distinto em sua natureza, conjugando, porém, dentro de si, diversos elementos, por exemplo, a região, a raça, a língua, os costumes, a história, as leis e as religiões. Esses elementos introduziam nos membros do consórcio nacional uma intimidade material e moral que decorreria de uma comunhão de direito, impossível de existir entre indivíduos de nações diferentes. A raça, por sua vez, configurava um dos elementos constitutivos mais importantes da nação. Entre os homens haveria, então, uma evidente pluralidade de raças com caracteres mais ou menos distintos, das quais as mais afastadas seriam a branca e a negra.

Mancini defendia que de todos os vínculos formadores da unidade nacional, nenhum era mais forte do que a língua comum. Para ele, o grande número de línguas existentes no mundo indicava o providencial destino da sociedade humana em se compor de distintas nacionalidades, cada uma com vida e existência própria. Por outro lado, afirmava não haver a menor dúvida de que a unidade da língua manifestava a unidade da natureza moral de uma nação, pois dela nasciam suas ideias dominantes.

Apesar das condições naturais e históricas, do próprio território comum, da simultaneidade de origem e da língua, esse cenário não era suficiente para constituir

inteiramente uma nacionalidade. Mancini entendia que um complemento fundamental, exteriorizado pelo que chamava de consciência da nacionalidade, era determinante. Isso significa o sentimento que a nação adquiriria de si mesma e que a tornaria capaz de se constituir internamente e de se manifestar externamente. Tal consciência era uma espécie de unidade moral do pensamento comum, de uma ideia predominante no seio da própria sociedade. Dessa forma, a nacionalidade consistia em uma sociedade natural de homens em unidade de território, origem comum, costumes e língua comuns, configurados em uma vida comunitária embasada por uma consciência mútua de união nacional. Assim, o direito de nacionalidade seria a própria liberdade do indivíduo, estendida ao desenvolvimento comum do agregado orgânico dos indivíduos formadores das nações. O Estado, portanto, era em seu princípio oriundo da nacionalidade.

Diante das razões da gênese do Estado, a maior parte da literatura recente, na opinião de Hobsbawm (1990, p. 11-56), centrou-se na questão: o que é uma nação? As tentativas de se estabelecer critérios objetivos sobre a existência da nacionalidade, ou de explicar-se por que certos grupos se tornaram nações e outros não, foram feitas frequentemente com base em critérios como a língua ou a etnia, ou ainda em uma combinação desses com o território, a história, os traços culturais comuns etc. Além dos critérios objetivos, houve tentativas de se construir uma nação por meio de processos de conscientização, isto é, a consciência e a escolha são critérios de existência de nações, tal como Mancini.

Ao contrário de Mancini, para Hobsbawm o "nacionalismo" significou fundamentalmente um princípio sustentador de que a unidade política e nacional deve ser congruente. Ele não considera a "nação" uma entidade originária ou imutável, uma vez que ela pertence a um período particular e historicamente recente. A "nação" é uma entidade social apenas quando relacionada a certa forma de Estado territorial moderno, o Estado- nação, sendo que as nações não formam os Estados e os nacionalismos, mas sim o oposto. Ou seja, para Hobsbawm, o nacionalismo surge antes das nações. Da mesma maneira, as nações existem não apenas como funções de um tipo particular de Estado territorial ou da aspiração em assim se estabelecer, mas também no contexto de um estágio particular de desenvolvimento econômico e tecnológico. As nações e seus fenômenos associados – língua, por exemplo –, devem ser analisadas em termos das condições econômicas,

administrativas, técnicas e políticas. Elas são fenômenos duais, construídos em essência a partir do alto, mas que não podem ser compreendidos sem a análise de baixo, ou seja, em termos das suposições, esperanças, necessidades, aspirações e interesses das pessoas comuns, as quais não são necessariamente nacionais e menos ainda nacionalistas e que são muito difíceis de serem descobertas.

Hobsbawm afirma que, para compreender a "nação" da era liberal clássica, foi essencial ter em mente que a construção de nações, por mais que seja central à história do século XIX, aplicava-se somente a algumas nações. A demanda pelo princípio da nacionalidade não foi universal e atingiu um limitado número de povos ou regiões. Diferente, portanto, do fenômeno político do nacionalismo, que se tornou crescentemente central na era da política de massas e da democratização europeia. Hobsbawm relembra que Massimo d´Azeglio admitiu em sua famosa frase "nós fizemos a Itália, agora temos que fazer italianos" e o Coronel Pilsudski, libertador da Polônia, reconheceu que "é o Estado que faz a nação e não a nação que faz o Estado" (1990, p. 56).

Todavia, a clássica acepção de que os Estados são os atores soberanos e absolutos do Direito Internacional tem na nacionalidade sua grande base de sustentação. Além do mais, é a nacionalidade que embasa a concepção da divisão do mundo entre diversos povos, que se relacionam internacionalmente por meio dos Estados a que estão vinculados. No Direito Internacional Público atual não se encontra uma definição precisa do que seja a nacionalidade (SOARES, 2004, p. 175). Entretanto, duas regras importantes encontram-se estabelecidas: 1. a total liberdade dos Estados em determinar as regras sobre as pessoas que eles consideram seus nacionais, seja no momento do nascimento (nacionalidade originária, definitiva ou dependente de registro ou opção), seja em algum momento posterior (naturalizações, voluntárias ou não, pelo casamento, dentre outras possibilidades); 2. a atribuição da nacionalidade não pode ser resultante do exercício de uma competência discricionária total e injustificada por parte do Estado, pois deve estar baseada em vínculos efetivos entre o indivíduo e o Estado que lhe atribui a nacionalidade.