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CAPÍTULO 4. O ESTATUTO DO ESTRANGEIRO

4.2. Anistia, Expulsão e Deportação

A entrada do estrangeiro no território brasileiro é extremamente dificultada pelas normas do Estatuto. Ademais, o excesso burocrático não facilita a regularização das pessoas que entraram clandestinamente no país e nele se encontram irregulares. O art. 24 do Estatuto estabelece que nenhum estrangeiro procedente do exterior poderá se afastar do local de entrada e inspeção sem que seu documento de viagem e o cartão de entrada e saída do Brasil sejam visados pelo órgão competente do Ministério da Justiça, que é a Polícia Federal. Ao mesmo tempo, o art. 38 veda a legalização da estada do imigrante clandestino ou irregular, como também proíbe a transformação do visto de trânsito, de turista ou temporário em permanente. Em caráter transitório, todavia, o Estatuto possibilitou a regularização de imigrantes com entrada no Brasil até 20 de agosto de 1989, desde que requisitassem um registro provisório em cento e vinte dias contados após essa data. Além

dessa previsão, várias anistias foram editadas para regularizar os imigrantes em situação irregular.

A anistia é um instituto paliativo, que serve para abrir exceções de tempos em tempos dentro da política migratória do país sem romper com o tratamento autoritário e restritivo da lei vigente. Aliás, ela é um instrumento cuja essência está em oferecer às pessoas que cometeram ilícitos o perdão do Estado. Ou seja, para que se permita a anistia, é necessário reconhecer um ilícito e que seu agente receba o perdão do Estado. O termo anistia deriva do grego amnestía, cujo significado se aproxima de "esquecimento" e caracteriza-se pelo ato estatal em declarar impuníveis todos quantos, até certo dia, perpetraram determinados delitos, fazendo cessar as diligências persecutórias, ou tornando nulas e de nenhum efeito as condenações recebidas.

Ao anistiar o imigrante irregular o Brasil não reconhece na prática o direito humano de migrar, pois o instituto da anistia não observa esse direito em primeiro plano, mas sim o ato que fere a lei nacional. Assim, apenas para proteger a segurança e a integridade do Estado, esse ato é perdoado. A anistia não muda a política migratória, não altera e nem facilita a entrada e a permanência do imigrante no país, apenas representa uma liberalidade do Estado brasileiro para com quem feriu suas leis.

O art. 26 do Estatuto, por sua vez, estabelece que o visto concedido a estrangeiro pela autoridade consular configura mera expectativa de direito. Dessa maneira, a entrada, a estada e o registro dele podem ser obstados se ocorrer algum dos casos do art. 7° ou se o Ministério da Justiça julgar inconveniente sua presença no Brasil. O impedimento do estrangeiro é possibilitado, portanto, pela natureza da concessão do visto, que é mera expectativa e não um direito. O parágrafo segundo do art. 26 dispõe que o impedimento de qualquer dos integrantes da família poderá estender-se a todo o grupo familiar.

O art. 26 fere os direitos humanos dos estrangeiros, porque além de remitir-se ao já criticado art. 7° em seu caput, desrespeita frontalmente o princípio da reunificação familiar em seu parágrafo segundo. Ademais, a previsão de extensão do impedimento a familiares fere também o princípio de individualização da pena, pois mesmo que não configure um tipo penal, o impedimento é uma sanção e como tal não poderia ser estendida para nenhuma pessoa senão o agente que lhe deu causa.

No mesmo diapasão restritivo e autoritário, o art. 65 do Estatuto prevê ser passível de expulsão o estrangeiro que de alguma maneira atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranquilidade ou a moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais. O parágrafo único desse artigo também define ser passível de expulsão o estrangeiro que praticar fraude a fim de obter sua entrada ou permanência no Brasil, entrar no país infringindo a lei e não se retirar do território nacional no prazo que lhe for determinado para fazê-lo, entregar-se à vadiagem ou à mendicância e desrespeitar proibição especialmente prevista em lei para estrangeiro. Trata-se de normativa autoritária e repleta de termos amplos e abstratos. O que seria atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social? O estrangeiro que se encontra no mercado de trabalho informal poderia atentar contra a economia popular? O imigrante que procura emprego e tem dificuldade em encontrar, poderia ser considerado vadio ou mendicante? Além dos termos abstratos, expulsar o estrangeiro de acordo com a conveniência e o interesse nacional é uma previsão anacrônica, de um Estatuto construído ao largo do Direito Internacional dos Direitos Humanos e dos direitos humanos em amplo sentido. Não se considera a pessoa humana em primeiro lugar, tampouco o direito de migrar, mas novamente a defesa e a proteção do Estado.

Ainda em relação à expulsão do estrangeiro do território brasileiro, o art. 75 estabelece que ela não poderá acontecer se o indivíduo for casado com brasileiro há mais de cinco anos ou se tiver filho brasileiro que esteja sob sua guarda e dependência econômica. A norma em questão visa proteger a nacionalidade brasileira e não o princípio da reunificação e manutenção familiar. Isto é, caso o imigrante venha irregularmente para o país em razão de familiares não brasileiros, mas regulares, que aqui estão, e der causa a algum dos motivos previstos na lei para a expulsão ou deportação, será retirado do Brasil, não importando se seus filhos ou esposa permanecerão em território brasileiro. Ademais, o prazo de duração de cinco anos para o casamento é demasiado. A própria lei não prevê prazo para o divórcio direto de pessoas casadas. Ou seja, o legislador brasileiro demonstra em sua lei civil que o tempo não é mais determinante para demonstrar se ainda há ou não uma relação conjugal. Dessa forma, se a lei não exige prazo para constatar o fim do casamento, não há sentido que faça o mesmo para constatar seu início e sua existência. A existência de uma união com o fim de constituir uma família reside subjetivamente na

vontade e nos atos dos cônjuges e não em critérios temporais. Assim, o prazo de cinco anos justifica-se apenas na intenção de dificultar a permanência do estrangeiro no território brasileiro.

Além disso, a lei fala em casamento, o que implica a existência de um casamento válido. De acordo com Cahali (2010), a simples sociedade familiar de fato não impede a expulsão de estrangeiro do território nacional, uma vez que a situação da companheira não é considerada na previsão legal. Esse entendimento, contudo, deve ser revisto, pois fere o princípio da igualdade entre nacionais e imigrantes no que toca ao regramento da união estável no direito brasileiro. Tanto o casamento quanto a união estável são entidades familiares, em conformidade com o art. 226 da Constituição Federal da República do Brasil de 1988, possuindo o mesmo status. Fato que deveria ser ponderado e receber o mesmo peso na legislação migratória.57

Em geral, o regramento da deportação e o da expulsão são justificados como direito que o Estado possui em assegurar sua conservação e segurança contra estrangeiros indesejados.

Com efeito, está definitivamente superada a pretensão daqueles que contestavam a legitimidade da expulsão, qualificando-a de contrária à liberdade humana e à ideia da comunidade internacional, para assegurar ao estrangeiro um direito sem restrições de se estabelecer e permanecer no país de sua escolha [...] Nos dias atuais, porém, o direito de expulsão do estrangeiro nocivo, como direito de se libertar dos indivíduos estranhos à nacionalidade, perturbadores da ordem social e prejudiciais às instituições internas, é reconhecido ao Estado em termos incontroversos na prática e pela doutrina; variam apenas as concepções que procuram fundamentá-lo: a) teoria da hospitalidade; b) ato de soberania; e c) doutrina da conservação. A teoria da hospitalidade não desfruta de maior expressão – terá sido sustentada por André Weiss, com o argumento de que o estrangeiro dentro do Estado goza da hospitalidade e se encontra sujeito a todos os direitos e deveres daí decorrentes. Ora, se um estrangeiro se torna

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É interessante nessa matéria anotar os seguintes posicionamentos jurisprudenciais, que evidenciam o objetivo da legislação migratória muito distante da proteção dos direitos humanos dos imigrantes: STF, Pleno, 12.04.1991: Não basta ter o expulsando cônjuge e filhas brasileiras – a lei exige casamento com mais de cinco anos e filho sob a guarda e dependência econômica do paciente. STF, Pleno, 13.11.1996, JSTF 228/275: Não obsta a execução do ato de expulsão o posterior casamento do estrangeiro, tampouco o nascimento, anos depois, de seu filho brasileiro. HC 56.822, 14.03.1979: Não basta, como fator impeditivo da expulsão, a simples prova de que o expulsando tenha filho brasileiro; é necessário, ainda, que fique provado depender esse filho da economia paterna. A dependência econômica, no caso, deverá ser examinada sob dois aspectos: a) não possuir o filho, ou seus ascendentes maternos, renda bastante para sua criação e educação; b) possuir o pai profissão ou renda que viabiliza essa prestação econômica.

nocivo ao Estado, ele violou os deveres que tinha, tornando-se sujeito à expulsão do território nacional. Como observa Albuquerque Mello, “esta concepção não pode ser aceita, uma vez que a hospitalidade não constitui um instituto jurídico; a hospitalidade gera apenas deveres morais”. Na realidade, essa teoria apenas explica o instituto, no sentido de que “a tolerância de permanência deve ter um limite, para cessar quando o estrangeiro se transforma em ameaça ao país que o acolheu, ou aos interesses gerais de sua coletividade”. A essa ideia de conservação liga-se a ideia da própria segurança e conveniência do Estado, quanto à presença do estrangeiro em seu território. Mas tais colocações não diferem substancialmente daqueles que pretendem que a expulsão do estrangeiro é direito, que tem o Estado, como efeito de sua soberania: da mesma sorte que pode impedir ou submeter a condição a entrada do estrangeiro, decretar regras sobre a sua localização, recusar-lhe o gozo e exercício de determinados direitos, não só políticos e públicos, mas ainda tipicamente privados, assim também lhe assiste o direito de excluí-lo da convivência nacional, obrigando-o a se retirar do seu território. A soberania do Estado manifesta-se, assim, nesse poder sobre os indivíduos que se encontram no território do Estado, inclusive com o poder de expulsar os estrangeiros que violem a sua ordem pública. (CAHALI, 2010, p. 195-196).

A mentalidade que embasa o direito do Estado em expulsar e deportar o imigrante é a mesma que, por todo o regramento do Estatuto do Estrangeiro, fere os princípios da universalidade, da indivisibilidade e da inalienabilidade da proteção dos direitos humanos. Essa fundamentação pautada na conveniência e na discricionariedade, na segurança e na soberania da normativa, orienta a política migratória e favorece a transformação de imigrantes que se encontram em situação irregular no país em figuras nocivas, ilegais, em pessoas que cometeram ilícitos contra a lei brasileira. Isto é, a mera irregularidade passa a configurar a ilegalidade. Nesse sentido, Farena (2012) adverte que:

Em quase todos os cantos do mundo, os imigrantes em situação irregular ou indocumentados são designados como “ilegais” principalmente por agentes policiais e funcionários de imigração, mas também pelas autoridades, a mídia e a sociedade em geral, que seguem essa tendência de conteúdo fortemente discriminatório. Aqui no Brasil, de forma insistente, inconsequente e estigmatizante, usa-se o termo “ilegal”, sem medir as desastrosas consequências de tal discriminação [...] O Relator da Conferência Internacional sobre Migração e Crime, levada a cabo em Itália, em 1996, observou, com sobrada razão, que “o termo migrante ilegal implica uma condição de criminalidade ipso facto antes de qualquer determinação judicial do status. Mais ainda, implica que um imigrante ilegal é um criminoso". (2012, p. 134-135).

Contudo, de acordo com o regramento do Estatuto do Estrangeiro e da legislação penal brasileira, a expulsão e a deportação do estrangeiro não são penas no sentido específico de sanção à conduta criminosa imposta por sentença judicial condenatória. Todavia, é inegável que mesmo não sendo uma pena em razão de delitos previstos na lei penal brasileira, ambos não deixam de ser provimentos sancionatórios gravíssimos impostos pela autoridade administrativa e não pelo Poder Judiciário.

O art. 66 do Estatuto prevê que caberá exclusivamente ao presidente da República do Brasil resolver sobre a conveniência e a oportunidade da expulsão ou de sua revogação. Dessa maneira, como já mencionado, é a autoridade administrativa quem decide sobre a expulsão, procedendo da mesma forma em relação à deportação. O órgão competente para promovê-la é o Departamento de Polícia Federal e não o Poder Judiciário, sendo que se a deportação for convertida em expulsão, a competência para tanto é do presidente da República.

O controle jurisdicional do ato que expulsa o estrangeiro somente pode ser feito por meio de habeas corpus dirigido ao Supremo Tribunal Federal. O entendimento majoritário da doutrina demonstra que o presidente da República só tem arbítrio para decidir se expulsa o estrangeiro dentro das causas legais que o Estatuto prevê.58 A arbitrariedade e a discricionariedade estão limitadas à previsão legal. Todavia, ressalta-se que as já mencionadas causas são abstratas e abertas e dão margem à ampla justificativa por parte de quem expulsa. Nessa perspectiva, a zona de intervenção do Poder Judiciário em um eventual habeas corpus é muito restrita, pois os termos amplos permitem diversificado leque de justificativas. Portanto, o controle jurisdicional da expulsão do estrangeiro é embasado simplesmente pela teoria do controle de atos administrativos, deixando de lado os direitos humanos e o respeito à dignidade da pessoa humana, uma vez que o que está em jogo é o destino de um ser humano.

Já o controle jurisdicional do ato que deporta um estrangeiro é feito por meio de habeas corpus ou mandado de segurança. A competência para conhecimento de ambos é da Justiça Federal de primeira instância. Ademais, o art. 109, X, da Constituição Federal

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Para maiores informações verificar Dardeau de Carvalho, Situação Jurídica do estrangeiro no Brasil, São Paulo: Sugestões Literárias, 1976.

dispõe que compete ao juiz federal decretar a prisão preventiva do estrangeiro em situação irregular para fins de deportação.59

Tanto na deportação quanto na expulsão do estrangeiro, o controle da legalidade deve partir do próprio estrangeiro. Ou seja, não há controle feito pelo Ministério Público, tampouco por órgão como a Defensoria Pública, que prescinda da ação ativa do estrangeiro, oferecendo-lhe proteção ex officio. Dessa forma, o imigrante que sofrer a sanção é quem deverá concretizar o controle jurisdicional do ato que lhe prejudica por própria iniciativa, impetrando habeas corpus ou mandado de segurança. Em diversas situações o estrangeiro não domina o idioma nacional e não possui orientação suficiente que lhe esclareça juridicamente como reivindicar o direito à revisão judicial do ato sancionatório. Destarte, há desrespeito ao princípio da igualdade entre nacionais e estrangeiros, pois este está em evidente desigualdade em relação àquele desde o princípio, sendo maior o aprofundamento desta desigualdade quando a possibilidade de proteção via controle jurisdicional é baseada em instrumento jurídico, cujo uso se apresente da mesma maneira para ambos.60