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CAPÍTULO 2. O SER HUMANO COMO CENTRO DE PROTEÇÃO DO DIREITO

2.2 O Ser Humano e a Proteção do Direito Internacional

A Convenção sobre Nacionalidade, adotada na Haia em 1930, fixou em seu art. 1º que "cabe a cada Estado determinar, por sua legislação, quais são seus nacionais. Essa legislação será aceita por todos os outros Estados, desde que esteja de acordo com as convenções internacionais, o costume internacional e os princípios de direito geralmente reconhecidos em matéria de nacionalidade". Na mesma Convenção, o art. 5º dispôs que o Estado pode "em seu território, reconhecer exclusivamente, entre as nacionalidades que tal indivíduo possua, tanto a nacionalidade do país, no qual tenha a residência habitual e principal, quanto a nacionalidade do país ao qual, segundo as circunstâncias, ele, de fato, pareça mais ligado". Essa norma foi reafirmada após a Segunda Guerra Mundial pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento do caso Nottebohm, em 06 de maio de 1955. O caso ilustrou o fato de que, para a nacionalidade produzir efeitos no Direito Internacional, era necessário haver um vínculo efetivo entre aquele ato do Estado de outorga da nacionalidade e a pessoa que desejasse ostentá-la e ser protegida diplomaticamente. Esses vínculos poderiam ser uma residência, domicílio ou ainda negócios habituais nos país.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, a seu turno, define a nacionalidade como o elo político e jurídico que vincula uma pessoa a determinado Estado, que a compromete para com este pelos laços de lealdade e fidelidade e que lhe confere o direito à proteção diplomática daquele Estado.5

Todavia, a clássica acepção do Estado nacional como centro e único sujeito do Direito Internacional vem sendo erodida pelas vertentes de proteção internacional da pessoa humana. O Direito Internacional Humanitário, o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional dos Refugiados buscam colocar a pessoa humana como centro e sujeito do Direito Internacional. Cançado Trindade (2006, p. 3-28) aponta que no século XXI os direitos humanos devem ser o fundamento do Direito Internacional. Para ele, o direito das gentes do Direito Romano, ao transcender suas origens de direito privado, transformou-se por completo ao associar-se com o direito das gentes emergente, com o qual contribuíram decisivamente os escritos dos chamados "fundadores" desse último, em

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especial F. Vitória, F. Suárez, A. Gentilli, H. Grotius, C. Bynkershoek, S. Pufendorf e C. Wolff, dentre outros (2006, p. 7). O novo jus gentium, a partir dos séculos XVI e XVII, passou a ser associado à própria humanidade, empenhado em assegurar sua unidade e a satisfação de suas necessidades e aspirações, em conformidade com uma concepção essencialmente universalista. Porém, as reflexões e a visão dos chamados fundadores do Direito Internacional, que o concebiam como um sistema verdadeiramente universal, vieram a ser suplantadas pela emergência do positivismo jurídico, que personificou o Estado dotando-o de "vontade própria", reduzindo os direitos dos seres humanos que o Estado a estes "concediam". O consentimento ou a vontade dos Estados tornou-se o critério predominante no Direito Internacional. Esse fato, para Trindade, dificultou a compreensão da comunidade internacional e enfraqueceu o próprio Direito Internacional, reduzindo-o a um direito estritamente interestatal, não mais acima, mas entre Estados soberanos.

De acordo com Trindade, a personificação do Estado todo-poderoso, inspirada na Filosofia do Direito de Hegel, teve uma influência nefasta na evolução do Direito Internacional em fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. De acordo com Celso Lafer (2009) a Filosofia do Direito buscou um saber confiável em matéria de Direito, provocada pela fratura na crença do Direito Natural.

Na história do pensamento ocidental os Lineamentos Fundamentais da Filosofia do Direito, de Hegel, que datam de 1821, marcam não apenas o início da maior difusão da nova denominação, mas também uma importante etapa da dissolução do paradigma do Direito Natural. Com efeito, a superação do antagonismo entre ser e dever-ser, entre aquilo que está absolutamente certo e aquilo que a arbitrariedade faz passar por Direito, é, para Hegel, precisamente o que explica a necessidade do estudo dos fundamentos do Direito. Na sua obra, este dualismo dicotômico entre Direito Natural e Direito Positivo dissolve-se através da identificação entre o real e o racional. É por isso que em Hegel desaparece a razão-de- ser da disputa clássica entre vontade (Hobbes) e razão (Grócio) enquanto fundamentos distintos do Direito, pois no sistema hegeliano, como lembra Bobbio, a lei é racional pelo fato de ser lei, vale dizer, a autoridade (a vontade) faz a lei porque é sabedoria (razão). Esta identificação entre o real e o racional, promovida pelo idealismo hegeliano, que conduz à ontologização do Direito Positivo, encontrou ressonância na realidade e em outras correntes de pensamento na medida em que a lei posta pelo Estado foi se tornando, praticamente, a fonte exclusiva do Direito. Esta tendência em prol da legislação foi uma reação inspirada pela ideia de sistema enquanto ideal do saber científico, proposto pelo jusnaturalismo moderno ao particularismo jurídico, ou seja, a falta de unidade e coerência

no conjunto de normas vigentes em quase todos os países da Europa [...] A codificação surge, neste contexto, como um processo de simplificação e racionalização formal que correspondia a um duplo imperativo socioeconômico: o primeiro era a necessidade de pôr ordem no caos do Direito Privado para garantir a segurança das expectativas, e atender, desta maneira, às necessidades do cálculo econômico-racional de uma economia capitalista em expansão. O segundo era o de fornecer ao Estado, através da lei, um instrumento eficaz de intervenção na vida social. (LAFER, 2009, p. 41-42).

Essa linha resistiu com todas as forças ao ideal de emancipação do ser humano em relação à tutela absoluta do Estado. A ideia da soberania estatal absoluta – com que se identificou o positivismo jurídico, subserviente ao poder – levou à irresponsabilidade e à pretensa onipotência do Estado, cúmplice de sucessivas atrocidades cometidas contra os seres humanos, identificadas na análise de Hannah Arendt. Em razão disso, Cançado Trindade (2006) aponta que o ser humano deve ocupar a posição central que lhe corresponde, como sujeito do direito, tanto interno quanto internacional, em meio a um processo de humanização do Direito Internacional. A titularidade jurídica internacional do ser humano deve ser uma realidade inegável, cabendo consolidar sua plena capacidade jurídica processual no plano internacional.

Assim, no Direito Internacional do século XXI, o ser humano deve emergir como sujeito de direito, como ator jurídico dotado de capacidade processual para vindicá-los. O Parecer nº 18, de 17 de dezembro de 2003, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobre a Condição Jurídica e os Direitos dos Imigrantes Indocumentados, ratifica o entendimento quanto à formação de um jus gentium universal. O parecer sustenta, de maneira histórica, o dever dos Estados em respeitar e assegurar os direitos humanos dos imigrantes à luz do princípio básico da igualdade e da não discriminação, acrescentando que qualquer tratamento discriminatório atinente a esses direitos deve gerar a responsabilidade internacional dos Estados. Ademais, os Estados não podem subordinar ou condicionar a observância do princípio da igualdade ante a lei e não discriminação aos objetivos de suas políticas migratórias. Esses princípios, antes sem força coativa, agora estão situados no domínio do jus cogens e geram obrigações erga omnes.

Se as causas dos deslocados, dos marginalizados e excluídos, dos imigrantes indocumentados e das crianças abandonadas nas ruas já alcançaram um Tribunal

internacional, por exemplo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, como tem ocorrido efetivamente de modo sistemático a partir da sentença de 1999 no caso paradigmático dos "Meninos de Rua" (Villagrán Morales e Outros) (TRINDADE, 2006, p. 28), tendo força de jus cogens, então, a concepção humanista do Direito Internacional deve superar a posição positivista, como forma de assegurar um sistema de proteção cogente que garanta uma hospitalidade universal.

2.3 O Segundo Nascimento: Apátridas, Refugiados, Asilados e Imigrantes