• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5. OS BOLIVIANOS EM BUENOS AIRES

5.2. A Presença Boliviana no Espaço Público da Cidade de Buenos Aires: Espaços de

5.2.4 As Crianças Bolivianas nas Escolas Públicas

Um espaço público de grande importância na vida dos imigrantes bolivianos e de seus filhos, nascidos ou não em Buenos Aires, é a escola pública argentina. As crianças bolivianas86 convivem com crianças argentinas dentro das escolas e das salas de aula, que se apresentam como espaço de construção e negociação de identidades, interação, mas também discriminação.

De acordo com Novaro e Diez (2011), dados oficiais de 2007 do Departamento de Estadística del Ministerio de Educación de la Nación informaram que havia na Argentina um total de 21.125 alunos bolivianos nas escolas primárias e 8.111 nas secundárias. Os autores ressalvam, todavia, que esses dados não eram confiáveis, uma vez que a contagem

86

A expressão "crianças bolivianas" é usada para englobar tanto as nascidas na Bolívia quanto as nascidas na Argentina. Quando for necessária a diferenciação entre os filhos de imigrantes bolivianos nascidos ou não em Buenos Aires, isso será feito expressamente.

dos imigrantes matriculados nas escolas não é feita seguindo a divisão pelo grau escolar, sendo tomado apenas o número total. Ou seja, são números imprecisos, pois algumas instituições computam alunos do grau secundário no primário e vice-versa. De qualquer maneira, a cifra indica que ainda há um número baixo de crianças bolivianas matriculadas nas escolas públicas argentinas, embora não inexpressivo.

A escola é um espaço não somente de aprendizado, mas também de construção de identidade e socialização. No caso das crianças bolivianas esse processo de construção não é simples, pois envolve significativa carga de estigmatização e preconceito. Muitas escolas rebaixam automaticamente o grau escolar de alunos bolivianos logo no ato de matrícula, nivelando a criança por baixo. As instituições apresentam o argumento de que a carga de conhecimento delas é baixa, o que justificaria seu rebaixamento. Há escolas, entretanto, que chegam inclusive a recusar a matrícula do imigrante boliviano (NOVARO; DIEZ, 2011).

Além disso, não há um modelo escolar pleno e dominante que fomente a interação entre as diversidades culturais existentes e que considere a particularidade de cada uma das crianças. Apesar de atualmente existirem, de acordo com Novaro e Diez (2011), inúmeros documentos educativos e escolares que afirmam a necessidade de se atender a cultura dos alunos, além da própria cultura que a escola transmite, ainda há forte presença de um modelo normalizador, reducionista e nacionalista.

La coexistencia del discurso nacionalista y del respeto por la diversidad no debe ocultar el hecho de que durante mucho tiempo la escuela fue implícitamente expulsora de aquellas poblaciones “portadoras” de rasgos considerados incompatibles con los que, en el imaginario social, conformaban la “identidad” o la “cultura nacional”. En la política “de reconocimiento y reparacíon” que ha comenzado a definirse en los últimos años, el riesgo más bien consiste en diluir la desigualdad en una revisión histórica no siempre articulada con los nuevos contextos económicos y socioculturales; en ocasiones, esto lleva a valorar los grupos por su pasado pero no por su presente. Así, mientras se recuperan elementos y concepciones más o menos folklorizados de las cosmovisiones de los distintos pueblos, se producen nuevas situaciones de desigualdad cuando se questionan sus capacidades y posibilidades de aprendizaje, tanto como sus supuestos, sus representaciones, y sus formas de expressión y comunicación. (NOVARO; DIEZ, 2011, p. 45).

Esse modelo nacionalista e normalizador reflete no corpo docente, que apresenta dificuldade em lidar com a criança imigrante. A imagem que muitos docentes possuem a

respeito das crianças bolivianas é associada ao estereótipo de que são caladas e retraídas, e consequentemente, apresentam dificuldade em se relacionar e expressar. Essa imagem coloca as crianças bolivianas em uma suposta posição de desvantagem cultural natural em relação aos seus pares argentinos (NOVARO; DIEZ, 2011).

A posição equivocada dos docentes demonstra uma limitada reflexão do ensino público argentino em relação aos imigrantes e à própria necessidade de alterar o discurso nacionalista. Essa inalteração de paradigma apenas estimula a desobrigação em provocar o rompimento do aparente silêncio das crianças bolivianas. O silêncio é fruto da falta de diálogo intercultural, da mudança de um paradigma estritamente unilateral e nacionalista que não pode mais perdurar. Nesse sentido, Novaro e Diez (2011) argumentam que

Su identificación como “bolivianos” los desautoriza como interlocutores y como demandantes en distintas instituciones sociales. La escuela es una más de ellas, donde las relaciones de poder son desiguales para este grupo de alumnos y alumnas: en tantos niños, en tanto bolivianos y en tanto pobres. Es válida por ello la pregunta sobre si se trata de silencio o de silenciamento. Tal vez lo que falte en la escuela no sean solo palabras, sino vivencias que sostegan la expectativa de las palabras serán escuchadas […] más que reconhecer la ignorancia o el desconocimiento sobre los outros, en muchas escuelas se hacen afirmaciones taxativas sobre grupos que supuestamente carecerían de las condiciones para socializar “normalmente” a sus hijos, afirmaciones donde nuestros parámetros se presentan como incuestionables y universales. En estos esquemas, “los otros” aparecen como los depositarios y responsables de los problemas que padecen, como si hubieran podido elegirlos, y como si sus privaciones no fueran condición de los beneficios de algunos, sino producto de fallas proprias de su raza, de sus mentalidades, de su cultura. (NOVARO; DIEZ, 2011, p. 47).

O pré-julgamento feito às crianças bolivianas é fruto da visão de uma sociedade receptora que se coloca em uma posição culturalmente superior ao imigrante que recebe. A ideia de que o imigrante deve aprender a cultura do novo país unilateralmente e somente ele deve se familiarizar com ela, consiste em um paradigma normalizador, unificador e nacionalista que deve ser superado. O espaço público, em especial a escola, deve ser aberto para o diálogo e a negociação e não para a redução. A integração do imigrante à sociedade receptora apenas pela assimilação implica na estereotipização, favorece a não compreensão do outro e fomenta a discriminação e a xenofobia. Se apenas a sociedade receptora tem algo a ensinar para o imigrante, então sua cultura coloca-se prontamente como superior. A mera

assimilação funciona semelhante a um processo de redução do próprio "eu" do imigrante, pois ela implica que este deixe de lado suas origens, sua cultura, tudo que contribuiu na construção de sua pessoa, na sua identificação como ser humano, para assimilar os costumes e modos da sociedade onde se encontra.

A escola, no papel de produtora de conhecimento e responsável por importante parte da formação da pessoa, não pode ser reprodutora de estereótipos e nem fonte de preconceitos. Ela deve desde o primeiro momento trabalhar com a tolerância e a necessidade de dialogar com o outro, não somente para conhecê-lo, mas também para com ele aprender.

[…] la llegada al grupo, que en los niños migrantes suele coincidir con la llegada a la ciudad y a la escuela, parece constituir uno de los momentos de mayor tensión: “cuando venís las primeras veces a veces te tratan mal, porque aquí nos dicen de todo, y entonces antes me quería yo ir a Bolivia ya”. Los niños migrantes suelen expresar las dificuldades que han tenido en su integración al grupo al descubrir que su procedencia, su lugar de origen o su nacionalidad constituye un atributo negativo para la población de alumnos. La percepción de esta carga negativa incide en los intentos por silenciar su identificación: “No les diga a las otras chicas que soy boliviana porque me molestan.” (NOVARO; DIEZ, 2011, p. 49).

O silêncio das crianças bolivianas pode ser entendido como um mecanismo de defesa dentro desse contexto. Trata-se de um silêncio eloquente que deve ser contraposto às palavras, aos gestos e à diversidade comunicativa que apresentam quando estão fora da escola. Esse silêncio não pode pertencer a um processo de silenciamento. Isto é, para que o silêncio das crianças bolivianas, sua quietude na escola, não seja nenhum mecanismo de defesa ou autopreservação, mas apenas uma ação oriunda de uma decisão volitiva, ele deve ser compreendido.

Nesse sentido, a língua falada pelas crianças bolivianas não pode funcionar como estigma de uma cultura considerada inferior pelos argentinos. Seja o quéchua, o guarani ou o aymará, a criança deve identificá-las como parte de si mesma, sem internalizar a compreensão do castelhano como idioma superior, pois quando falado lhe poupa de situações de desrespeito e negação. O castelhano merece ser compreendido como a língua da sociedade receptora, mas que em nenhum momento é superior ou inferior à língua

materna. Trata-se apenas da língua mais falada na sociedade que agora o imigrante vive, a qual ele aprenderá para comunicar-se e não para ser aceito.

O modelo educativo nacionalista e normalizador integra as crianças bolivianas e os demais imigrantes excluindo-os. Não é suficiente aceitar que se matriculem e ocupem as mesmas carteiras que as crianças argentinas sem uma mudança de paradigma, caso contrário essa inclusão física continuará marcada por exclusões. Vencido o primeiro obstáculo do aceite da matrícula, a criança boliviana depara-se com outros mais sutis, porém ainda excludentes. Nesse sentido, Novaro e Diez (2011) advertem que,

Si entendemos a la discriminación como la anulación o menoscabo del ejercicio de un derecho por motivos diversos (entre ellos, la nacionalidad o la pertenencia étnica), podemos afirmar que los derechos educativos de los niños bolivianos resultan en ocasiones anulados por ejemplo, cuando con variadas razones se les dificultan las vacantes o la matriculación en ciertas escuelas), y frequentemente menoscabados. Considerando los parámetros establecidos en el Plan Nacional contra la Discriminación (Decreto n° 1.086/2005), podemos afirmar que la experiencia de los niños y niñas provenientes de Bolivia en las escuelas incluye diversas situaciones discriminatorias: padecen la construcción de estereotipos, resultan frecuentemente hostigados por su pertencia nacional y étnica, y suelen tener problemas de acceso al sistema. (2011, p. 54).

O Plan Nacional contra la Discriminación,87 cuja aparição no ordenamento jurídico argentino se deu por meio do Decreto n° 1.086/2005, enfatizou a necessidade de diálogo entre a sociedade receptora e os imigrantes, no que toca à mútua compreensão das características individuais. Ou seja, mencionou-se a importância de não só compreender as características dos grupos discriminados, mas também as da sociedade que discrimina. Dessa maneira, seria possível identificar as razões da discriminação, por exemplo, o desconhecimento da história, das experiências, das tradições, dos modos e costumes do imigrante, uma vez que sobre o desconhecimento são construídos os estereótipos, tais como o silêncio das crianças bolivianas.

As escolas argentinas demandam um sistema educacional que também seja definido pela interculturalidade, que busque e reconheça a diversidade sociolinguística e as particularidades culturais das crianças. Novaro e Diez (2011) acreditam que:

87

Para maiores informações sobre o plano consultar o sítio <http://inadi.gob.ar/wp- content/uploads/2010/04/plannacional.pdf>, último acesso em 12 de dezembro de 2012.

[…] la interculturalidad debería traducirse en políticas de reconocimiento de los denominados otros (denominación que también debería problematizarse), así como en una reflexión crítica sobre los mandatos impuestos como “costumes”. Esto incluye reflexionar sobre la forma en que esos otros fueron construidos – en parte por la misma escuela. Por eso, debe ser al mismo tiempo una política hacia los considerados otros y una política hacia nosotros mismos. Así, advertiremos que las fronteras y límites entre unos y otros no son tales, o al menos, son permanentemente transitadas, cruzadas y alteradas. Los mismos niños, cuyas certeras palabras reiteramos, nos hablan de cómo vivencian estos tránsitos y cruces: “Si yo nací en Buenos Aires y mi mamá en Bolivia, yo qué soy?” Frente a un niño que dice: “No sé si irme o quedarme”, su compañero comenta: “que se parta a la mitad”. (2011, p. 55-56).

Somente com o reconhecimento da necessidade de compreender o outro levando em conta as características do próprio outro e não tomando como ponto de partida as próprias de quem recebe (o outro) é que haverá espaço para o diálogo, para o intercâmbio no espaço público, para que perguntas como as feitas pelas crianças bolivianas e seu silêncio sejam colocados fora dos estereótipos e transformados, para que se alcance real integração na sociedade portenha.

De qualquer maneira, a significativa presença das crianças bolivianas nas escolas argentinas e, mais especificamente, na cidade de Buenos Aires, demonstra que não há mais espaço para a não realização plena dos direitos desses imigrantes. Em outras palavras, a presença na vida pública é cada vez maior e intensa, portanto, a negociação cultural e o intercâmbio são inevitáveis. Assim, a negociação unilateral, que toma como partido as características da sociedade receptora, deve ceder lugar para a negociação bilateral, em que haja um diálogo de via dupla entre aquele que recebe e aquele que chega e se insere, permitindo o gozo pleno de direitos e, consequentemente, a formação plena de cidadãos portenhos, independente da nacionalidade que possuam.