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A formação como um processo de auto(trans)formação

Capítulo II. Formação de professores: tendências atuais

2.4. A formação como um processo de auto(trans)formação

Inseridas num contexto controverso, são confusas as representações acerca da figura do professor. Por um lado, mantém-se o frágil status de sua profissão, associado ao histórico de escassos investimentos na área – tanto em termos de remuneração quanto de políticas sistemáticas de valorização da carreira docente (GATTI, 1997) – e, por outro, a escola permanece no discurso político e no imaginário social como um veículo de transformação social e os seus educadores como principais atores nesse processo.

As políticas e as práticas atuais de formação de professores definem-se em um palco de disputas em cujas “pontas” localizam-se forças mercantilistas e ideais democráticos. No entremeio, confundem-se os projetos político-pedagógicos em oposição pela convergência dos jargões de uns e outros (PRETI, 2003). E, no limite, o excesso de discursos que colocam os professores no centro das preocupações políticas e sociais da atualidade oculta a pobreza das práticas que o envolvem (NÓVOA, 1999).

O papel fundamental que se atribui aos professores na construção da sociedade do século XXI é marca fundamental dos discursos circulantes a respeito da atuação e da formação desses profissionais. No entanto, a retórica abundante sobre o porvir educacional que esconde o “déficit de presente” precisa ser superada para que seja possível imaginar o futuro do trabalho do professor, conforme assinala Nóvoa (op. cit.). São necessários, portanto, novos entendimentos a respeito das políticas educativas, das práticas pedagógicas, do

associativismo docente e da própria formação de professores (ibid., p. 19). As possibilidades para a construção de um novo paradigma de formação são tão numerosas quanto forem as formas de compreensão da função social e histórica da escola e, por conseqüência, dos próprios professores. Assim, tanto é possível que certas medidas propostas venham a colaborar para a consolidação de um “mercado de formação”, quanto podem os professores encontrar modelos que recriem a escola como espaço de formação individual e de cidadania democrática (ibid., p. 20).

Nesse sentido, o excesso de discursos para o qual Nóvoa chama a atenção só poderá ser superado se os próprios professores ocuparem um espaço mais dinâmico nas mudanças em curso. A formação ocupa um papel importante, nesse caso, desde que “situe o desenvolvimento pessoal e profissional dos professores, ao longo dos diferentes ciclos de sua vida” (ibid., p. 18). Na corrente das histórias de vida, esse autor não é o único a apontar mudanças na concepção da formação de professores como ponto nevrálgico das necessárias transformações na educação. Entretanto, a força dessa linha de investigação, de ação e de formação específica reside, principalmente, na valorização tanto teórica quanto prático- metodológica da experiência do formando em cada etapa de sua história pessoal e profissional.

Nóvoa (1995) relata que foi em meados de 1980 que a literatura pedagógica foi invadida por estudos que recolocaram os professores no centro dos debates educativos e das problemáticas de investigação, contra a atenção exclusiva que se deu, nas décadas precedentes, às práticas de ensino (p. 15). Foi nesse movimento que se passou a pensar a vida e a pessoa do professor – sua identidade – como inseparável de sua atuação profissional. Segundo o autor, é impossível, de fato, separar o eu profissional do eu pessoal (ibid., p. 17). A explicação para a mudança de foco seria uma “mutação cultural que faz reaparecer os sujeitos face às estruturas e aos sistemas, a qualidade face à quantidade e a vivência face ao instituído” (ibid., p. 18). Assim, para esse autor, o “auto” e o “hetero” são dificilmente separáveis. O que está fora, o instituído, não se separa do que acontece internamente ao sujeito: não o determina, mas de forma alguma o exclui. É nesse sentido, inclusive, que a formação passa a ser vista como autoformação, ou seja, como um processo que acontece de dentro para fora e não de fora para dentro.

Desta maneira, torna-se essencial a valorização da experiência profissional do professor, bem como de sua experiência pessoal. Os saberes docentes legitimados corresponderiam a uma forma de desescolarização da formação. O papel da universidade, nesse caso, transforma-se, pois o abandono das formas “escolarizadas” de formação refere-se

justamente à superação dos discursos da academia que deslegitimam o professor como produtor de saberes, co-autor de sua formação. Note-se: não se trata da renúncia da universidade como espaço formativo, mas do estabelecimento de um diálogo, de fato, entre o coletivo docente forte e os universitários22.

Inserindo a formação de professores num campo ainda mais amplo de discussões – a educação de adultos23 – reitera-se a lição de que é preciso dissociar a “lógica da escola” da “lógica de atuação profissional” em mais de um sentido, essencialmente quando se trata da formação contínua de adultos. Nem se pode pretender formar o adulto tomando-o como “tabula rasa”, como um indivíduo inexperiente que apenas consome (e não produz) saberes, nem se pode tomá-lo como um ser programável, na perspectiva da adaptação e do instrucionismo para o mundo do trabalho, pelo acúmulo de ações de formação (CANÁRIO, 1999). Segundo Canário (1999), tanto a teoria quanto a realidade evidenciam que não há relação direta e linear entre o mundo do trabalho e a formação, embora permaneça a idéia segundo a qual esta constitua o principal instrumento de emprego e mobilidade social (p. 39). Desmascarando a lógica que liga formação e sucesso profissional, o autor lembra que, na verdade, a formação faz parte de um quadro de mudanças deliberadas das sociedades em resposta às mudanças sociais e tecnológicas aceleradas:

A crença nas virtualidades da formação, por vezes encarada como uma condição não só necessária como, também, suficiente para o êxito de empreendimentos reformadores, tem alimentado a convicção, mil vezes repetida, segundo a qual, para mudar a educação, a saúde, a economia, é preciso... formar. Formar professores! formar médicos e enfermeiros! formar empresários! (ibid., p. 39)

Em contrapartida a essa visão, Canário defende o “regresso do ator”, “configurando os seus comportamentos como ações finalizadas, no quadro de estratégias racionais (ainda que de uma racionalidade limitada), no interior de sistemas de ação coletiva, construídos pela própria ação humana” (id., p. 40). Para ele, é preciso utilizar como principais recursos da formação a personalidade e a experiência e, portanto, há que se considerar a centralidade dos processos de autotransformação. Ao invés de descontinuar formação e atuação profissional (fazendo a primeira depender da segunda, ou vice-versa), propõe-se a busca de novas

22 Sobre essa questão, ver também BUENO (2003).

23 Já na década de 1980, Piérre Dominicé (1988) e o chamado Grupo de Genebra teorizavam sobre a formação de

adultos a partir da premissa de que “A formação depende do que cada um faz do que os outros quiseram, ou não quiseram, fazer dele” (p. 61).

metodologias e práticas que aproximem (e até façam coincidir) situação de trabalho e de formação.

Assim, as idéias de formação inicial forte e reciclagem na formação contínua, são substituídas pelos conceitos de trajetória profissional e percurso de formação (ibid., p. 42). Com a adoção desses conceitos, as situações formalizadas de formação são encaradas do ponto de vista do adulto que se forma. Ou seja, “as situações de formação, deliberadas, passam a ser encaradas como momentos formais de um percurso formativo, marcado por um processo de apropriação” (id., ib.). Sendo assim, esse novo modo de construir ofertas formativas pressupõe o adulto co-produtor da sua formação: “Em vez de procurar vender um produto pré confeccionado, torna-se necessário co-produzi-lo com o seu consumidor” (BOGARD, 1991 apud CANÁRIO, 1999, p. 43).

A partir de tal revisão dos princípios que regem a formação profissional do adulto e, portanto, a formação de professores, passa-se a valorizar a ação do indivíduo, mais do que as ações sobre ele. Entretanto, as particularidades da profissão docente (como um campo de atuação de interesse público com vistas à manutenção e à transformação da cultura e de valores sociais) exigem que se dê especial atenção, também, à ação do e no coletivo. Nesse sentido, a formação continuada de professores pode vir a definir uma nova profissionalidade docente24, desde que valorize o desenvolvimento pessoal (produzir a vida do professor), profissional (produzir a profissão docente) e organizacional do professor (produzir a escola), ou seja, desde que valorize o professor individual e o coletivo docente (NÓVOA, 1992, p. 24). Para Nóvoa, a formação continuada se define na inter-relação da produção da vida e da profissão docente, tanto quanto da produção da própria escola. Trata-se, para ele, de estabelecer um trabalho centrado na pessoa do professor e em sua experiência, mas que não se organiza em torno de professores individuais (aquisição de conhecimentos e técnicas), mas toma como referência as dimensões coletivas (autonomia com relação às lógicas administrativas e a regulações burocráticas e autonomia com relação à pedagogia científica) para produzir a profissão (p. 27).

Esta dissertação, portanto, está baseado na idéia de que a formação de professores, inserida no contexto mais amplo da formação de adultos, pressupõe um processo autoformativo em que o professor (adulto) co-produz a sua formação a partir da proposta

24 Segundo Nóvoa (1992, p.24), a profissão docente se define na tensão entre profissionalização (processo

através do qual os trabalhadores melhoram o seu estatuto, elevam os seus rendimentos e aumentam o seu poder/autonomia) e proletarização (degradação do estatuto, rendimentos e poder/autonomia pela separação entre concepção e execução, estandardização das tarefas, redução dos custos da aquisição da força de trabalho e intensificação das exigências em relação a atividade laboral).

formativa do PEC - Formação Universitária Municípios. Não se desvaloriza, desta forma, as propostas de formação, mas busca recontextualizá-las e rediscutí-las. Não se defende a autoformação no sentido de responsabilizar unicamente o professor por sua formação individual e solitária (como o fazem as teorias meritocráticas ou mesmo as propostas de EaD auto-instrucional), mas defende-se a idéia de que os cursos de formação precisam passar pela concepção de que toda formação é, na verdade um processo de transformação. A transformação profissional, sendo também pessoal, só ocorre se, de fato, envolver o principal interessado – o professor – nos processos decisórios. É nesse sentido, enfim, que se entende a formação como um processo de auto(trans)formação.