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As possibilidades técnicas dadas e roubadas: apropriações

Capítulo V. A questão dos usos

5.2. As possibilidades técnicas dadas e roubadas: apropriações

Tal como visto anteriormente, o ato do consumo não supõe somente a reprodução, mas também formas diversas de criação, e é assim que o uso pode ser entendido tanto como um procedimento estereotipado, de imitação, quanto uma forma de (re)apropriação. O termo apropriação, por sua vez, pode ser compreendido tanto como o estabelecimento de propriedade sobre algo (e, neste sentido, é uma tentativa de controle) quanto como uma forma de invenção, de criação e de produção dos indivíduos a partir do que recebem: “Desta maneira, o conceito de apropriação pode misturar o controle e a invenção, pode articular a imposição de um sentido e a produção de novos sentidos” (CHARTIER, 2001, p.67).

Chartier (2001), assim como Certeau (op.cit), propõe o conceito de apropriação no sentido de fazer algo com o que se recebe, de pluralidade de usos, da multiplicidade de

interpretações. O autor também observa que o processo de apropriação é desigual: as relações de poder não se anulam, e as apropriações são situadas nas relações sociais. Uma apropriação não é equivalente a outra, e elas não se dão por si mesmas, mas como resultado de um conflito, de uma luta. As apropriações, enfim, provém de uma tensão entre as vontades de conquista e as vontades de controle e monopólio (CHARTIER, 2001, p.116). O autor, desta forma, chama a atenção para a necessidade de manter a idéia de que cada apropriação tem seus recursos e suas práticas que dependem da identidade sócio-histórica de cada comunidade. Indo um pouco além, entretanto, Chartier se preocupa ainda com os recursos materiais por meio dos quais as apropriações se dão. Mantendo sua atenção nas práticas de leitura, o autor destaca o vínculo essencial entre o texto em sua materialidade – o objeto que lhe dá suporte – e as práticas de apropriação, que são as leituras (id., p.29). Assim, ele defende que todos os elementos materiais, corporais ou físicos, pertencem ao processo de produção de sentido (id, p.30) e que mudanças na estrutura do suporte, na materialidade do texto, refletem em mutações nas maneiras de ler. Há, portanto, uma terceira consideração a ser feita em torno dos usos, que não mais diz respeito a determinações macrossociais ou a ações cotidianas astuciosas, mas a possibilidades do próprio objeto (ou produto) de que se faz uso. Em outras palavras, é preciso analisar a dimensão técnica dos usos que, no caso do presente trabalho, é relativa às possibilidades técnicas das NTIC no PEC – Formação Universitária/Municípios.

É possível valer-se das idéias de Chartier a fim de trabalhar a questão da relação entre o objeto técnico e as formas de apropriação na medida em que, para ele, os artefatos condicionam as formas de recepção da mensagem, ou seja, os usos também dependem do suporte. Estudando transformações históricas da leitura e da estrutura do livro – chegando ao texto digital –, o autor mostra que, contrariamente ao que se imaginava, houve continuidade e não ruptura entre a estrutura do texto manuscrito e do texto impresso. Ao que tudo indica, a revolução estaria acontecendo agora, com o surgimento do texto digital, pois “a revolução do livro eletrônico é uma revolução das estruturas do suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler” (id., p.13). De fato, o surgimento das novas tecnologias possibilita mutações sem precedentes, tanto nas formas de emissão e recepção de textos quanto de material audiovisual. Nesse sentido, a preocupação com a materialidade da mensagem ganha contornos inéditos a partir do momento em que, inclusive, às novas tecnologias atribuem-se características que vão além do suporte (KENSKI, 2003).

A esse respeito Lévy (1993) defende que os novos meios estão entre as tecnologias intelectuais (ou da inteligência), dispositivos informacionais que reorganizam, de uma forma ou de outra, a visão de mundo de seus usuários e modificam seus reflexos mentais (p.54).

Porém, Lévy ainda lembra que não há essência na tecnologia e que, de fato, importam as ecologias cognitivas45 onde estão inseridas. A questão gira, mais uma vez, em torno dos usos. Para ele, o uso é “o prolongamento do caminho já traçado pelas interpretações precedentes; ou, pelo contrário, a construção de novos agenciamentos de sentido. Não há uso sem torção semântica inventiva, quer ela seja minúscula ou essencial” (id., p.58). O autor defende que os usos, as interpretações, estão em toda parte:

O uso do ‘usuário final’, ou seja, do sujeito que consideramos em determinado instante, não faz nada além de continuar uma cadeia de usos que pré-restringe o dele, condiciona-o sem contudo determiná-lo completamente. Não há, portanto, a técnica de um lado e o uso de outro, mas um único hipertexto, uma imensa rede flutuante e complicada de usos, e a técnica consiste exatamente nisto” (id., p.59).

Portanto, se há uma possibilidade técnica e ela está condicionada pela natureza da tecnologia e, sem dúvida, pelo seu suporte, também o está por essa cadeia de usos. E por esse motivo, todas as expectativas positivas que se venham agrupar sobre uma determinada mídia só se realizam em “ecologias cognitivas ideais”. Nesse sentido, é preciso considerar que “a forma contribui para o sentido” (CHARTIER, 2001, p.148) e que, contudo, o usuário final trabalha com as possibilidades técnicas dadas, mas não pode estabelecer práticas a partir das possibilidades que lhes forem roubadas. Toda potencialidade dada, é só uma potencialidade que pode ou não se realizar. No caso específico de propostas de educação, sempre é bom lembrar que não é a tecnologia que forma, ou que transforma as intenções pedagógicas. Ao contrário, são as intenções educativas subjacentes aos usos que têm a força de os limitar ou os expandir.

45 As ecologias cognitivas, segundo o autor, envolvem os espaços cognitivos das organizações e dos indivíduos,

com suas particularidades sensoriais e intelectuais, hábitos adquiridos, práticas que se cristalizaram em torno de agenciamentos semióticos diversos. Envolvem, enfim, modos de interação em vigor nas organizações, que diferem de acordo com os locais de as culturas. (LÉVY, 1993, p.53)

Capítulo VI. Novas Tecnologias de Informação e