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98 •!* A HISTÓRIA DO NOVO TESTAMENTO

R seleçÃo, colelA e rejeiçÃo

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em larga escala dos antigos manuscritos, produzindo um NT muito diferente daquele que os escritores da versão original tinham elaborado. A evidência histórica também não dá suporte a essa afirmação.

É aconselhável, primeiramente, falarmos um pouco sobre o cânon das Escrituras Hebraicas. Essa coletânea de textos sagrados que era, na verdade, a Bíblia dos primeiros cristãos, parece ter chegado ao seu ponto final durante a era do NT, embora já fosse uma coleção fechada muito antes desse período. Parece ter havido ainda algum debate no primeiro século sobre a autoridade e inspiração de alguns textos (p. ex., Ester) e se eles deveríam ser incluídos na terceira divisão das Escrituras Hebraicas (os Escritos). Porém, de modo geral, o cânon hebraico, especialmente a Lei e os Profetas, já estava definido na época em que foi feita a tradução do texto para o grego (a Septuaginta [LXX]), no segundo século antes da era do NT. Entretanto, não se pode afirmar que o cânon do AT estava realmente fechado antes de cerca de 90 d.C., quando ocorreu o sínodo judaico em Jâmnia. Pode ser que as informações sobre as deliberações do sínodo e o reconhecimento de que os cristãos também precisavam de uma coleção de textos sagrados tenham servido de incentivo para a elaboração de um cânon cristão paralelo, no final do primeiro século.

Uma vez que todos os autores do NT eram judeus, talvez com exceção de um, é compreensível que eles não só conhecessem e aceitassem os conceitos de cânon e escritos inspirados, como também acreditassem estar, pelo menos, oferecendo escritos inspirados a seus leitores — precisamente porque acreditavam que o Espírito Santo tinha sido derramado em abundância sobre os seguidores de Jesus, e que pessoas de todo tipo desempenhavam as funções proféticas descritas por Joel e reiteradas por Pedro como se tivessem ocorrido no dia de Pentecostes, no ano 30 de nossa era (v. At 2). Não era só porque Jesus era visto como o cumprimento das esperanças e profecias do AT, mas também pelo fato de que essas esperanças encon­ travam fruição na comunidade dos seguidores de Jesus. Esse senso de inspiração e autoridade surge particularmente forte na conclusão de Apocalipse 22, mas também está presente no modo como os escritos de Paulo são citados em 2Pedro 3. Não foi só no quarto século que a igreja passou a reconhecer esses documentos como textos inspirados por Deus e úteis para a correção e a educação na justiça.

Parece que já na época em que 2Pedro foi escrita ou um pouco depois (por volta do ano 125) existia uma coleção de quatro evangelhos que circulavam juntos — os quatro evangelhos que conhecemos hoje como canônicos.3 O impulso de criar tal coleção deveu-se, em parte, à proliferação do uso do códice em lugar do rolo, prática que os cristãos adotaram avidamente, como sugerem as evidências do segundo século. A crônica de H. Gamble sobre esse assunto será muito útil para nós:

A SELEÇÃO, COI.ETA E REJEIÇÃO DE TEXTOS + 9 9

Quase sem exceção, os primeiros livros cristãos conhecidos não foram produzidos na forma de rolo de papiro, mas sim como códice de papiro, ou livro de folhas, que é o modelo do livro moderno. A evidência desse fato foi fornecida por descobertas arqueológicas do século 20 [...]. O texto cristão mais antigo data do segundo século. O privilégio da idade pertence a P52, um pequeno fragmento do evangelho de João, datado paleograficamente como da primeira metade do segundo século. Vários outros fragmentos de papiro cristãos têm datas não muito posteriores [...] P64 + P<>7 de um códice de Mateus e Lucas; P de um códice de Mateus; P66 e P90 de códices de João e P32 de um códice das epístolas paulinas. Todos eles, para não mencionar algumas cópias cristãs das Escrituras judaicas, podem ser datadas no segundo século.

A prova por comparação é instrutiva. Dos restos de livros gregos cuja data pode ser definida como anterior ao terceiro século, mais de 98% são rolos, enquanto, no mesmo período, os livros cristãos remanescentes são quase todos códices [...]. Os dados juntos evidenciam que os primeiros cristãos tinham uma preferência quase exclusiva pelo códice como instrumento para seus escritos e que, portanto, se afastaram cedo, e bastante, das convenções bibliográficas vigentes.

Para podermos avaliar quão peculiar foi esse passo, é preciso saber que o códice não era reconhecido na antiguidade como um livro apropriado. Ele era visto como um mero caderno de notas, associado estritamente ao uso privado e utilitário. A origem humilde do códice está preservada em seu nome: a palavra latina caudex significa “bloco de madeira” e referia-se a uma tábua de madeira usada para escrever [...]. Nos tempos antigos, era comum atar duas ou mais dessas tábuas, passando um fio ou uma tira de couro pelos orifícios feitos num dos cantos para formar um conjunto de folhas soltas. O nome latino dado a esse conjunto de tábuas de madeira era coclex.4

Na minha opinião, o que fez a igreja adotar o códice foi a necessidade de fazer circular grupos de textos dos primeiros autores cristãos. Sabemos de Clemente e Inácio, bem como de 2Pedro 3, que circulavam antigas coleções das cartas de Paulo. Mas, e quanto aos evangelhos? É provável que os títulos nos dêem uma pista. Temos em P66 um papiro que tem como título “Evangelho segundo João”, um documento com data não superior ao ano 200. Ora, não há razão para usar a expressão “segundo”, a menos que houvesse evangelhos muito conhecidos em circulação na mesma região que eram “segundo” outro autor. Por isso, M. Hengel argumenta que, desde o início do segundo século, havia uma coleção dos quatro evangelhos e que o título “Evangelho segundo...” tinha se tornado costumeiro.5 Portanto, parece que agora esses manuscritos nos fornecem claras evidências da existência da coleção de quatro evangelhos, já no segundo século.6 Para que houvesse uma coleção de cartas ou de evangelhos circulando na igreja no início do segundo século, a forma de apresentação do códice se fazia necessária. G. N. Stanton talvez

4 Books and Readers in the Early Church: A History of Early Christian Texts. New Haven: Yale University Press, 1995, p. 49-50.

5 Studies in The Gospel ofM ark. Philadelphia: Fortress, 1985, p. 64-84.

6 V., de T. C. Skeat, “The Oldest Manuscript of the Four Gospels?” New Testament Studies 43 (1997): 1-34.

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esteja parcialmente certo quando insiste em que os quatro evangelhos circulando juntos precipitaram a disseminação do uso do códice nos círculos cristãos, pois nenhum rolo poderia conter nem mesmo dois evangelhos. Da mesma forma, nenhum rolo poderia conter uma coleção com mais de duas das epístolas mais longas de Paulo. Isso demonstra que a igreja da era pós-apostólica estava muito preocupada em preservar e fazer circular seus documentos basilares da forma mais conveniente e econômica possível.

No que se refere ao conjunto dos quatro evangelhos canônicos, é importante ter em mente que Ireneu atesta e defende a idéia de que só existia um evangelho, em apenas quatro apresentações específicas (Contra as heresias 3.11.8, escrito por volta de 180). Ele havia percebido com precisão existirem certas implicações na circulação desses quatro evangelhos em conjunto, tais como o fato de que, ao con­ trário da opinião de Marcião, um evangelho não era considerado suficiente. Igualmente era rejeitada a idéia de que uma harmonia desses quatro evangelhos (e outros?) era suficiente. Também havia a indicação implícita de que outros evangelhos não eram igualmente válidos e valiosos. Esta suposição é explicitada em Ireneu.

Entretanto, havia também certos fatores históricos negativos que estimulavam a canonização. A morte das testemunhas oculares e dos apóstolos era um fator importante, mas é preciso citar outros elementos ainda mais prementes no segundo século. Certamente, o primeiro alerta veio na metade desse século, quando Marcião, que chegara a Roma por volta de 144, vindo do Ponto, juntou-se à igreja romana, depois se separou dela por causa de suas crenças e elaborou sua própria lista de livros inspirados e autorizados do NT. Ele rejeitava as Escrituras Hebraicas sob a alegação de que proclamavam um Deus vingativo, e argumentava que o evangelho de Lucas e as cartas de Paulo (exceto as pastorais) deveriam ser o modelo ou o padrão da crença cristã. Mas isso não foi o bastante. Marcião decidiu que até mesmo esses textos precisavam ser editados para expurgar os elementos provenientes das crenças judaicas anteriores sobre Deus e a Lei. Ele eliminou, por exemplo, Lucas 1 e 2 por causa de seu caráter excessivamente judaico e ligado ao AT. A igreja de Roma (assim como outras igrejas) teve o mérito de não rejeitar esses livros com base numa linha de pensamento do tipo “culpado por associação”. Em vez disso, ela continuou a afirmar o valor daqueles textos. “A comunidade cristã, portanto, não criou a chamada literatura canônica para combater Marcião. Ela simplesmente reafirmou que sua base de autoridade era mais ampla do que apenas um evangelho e um apóstolo e reiterou a autoridade dos escritos da comunidade de fé judaica (i.e., o AT)”.7 8

Porém, não foi apenas Marcião que estimulou a criação de um cânon; os movimentos montanista e gnóstico também tinham suas próprias coleções de textos

7 “The Fourfold Gospel”, New Testament Studies 43 (1997): 317-46.

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reconhecidos (p. ex., os evangelhos de Filipe e de Tome). Esses documentos nos recordam, porém, que o movimento cristão inicial não se empenhava em produzir documentos suficientes para formar um cânon. Em vez disso, eles tinham de descartar alguns possíveis candidatos. Evangelhos, epístolas e outros tipos de documentos (como o Pastor, de Hermas) já eram produzidos antes do final do primeiro século de nossa era e durante o segundo. Alguns deles continham as mesmas linhas de pensamento que encontramos nos 27 documentos do NT, en­ quanto outros continham idéias que eram a antítese do que ensinavam os documentos basilares. Alguns textos foram considerados irrepreensíveis, mas não imprescindíveis para inclusão no cânon da Escritura. Na verdade, havia dezenas de documentos — evangelhos, epístolas e outros tipos de textos — circulando entre as igrejas dos séculos segundo e terceiro. “Dado o volume de literatura que circulava e até mesmo era produzida durante o segundo século e nos anos seguintes, é surpreendente a rapidez com que se chegou a um acordo a respeito do corpo de escritos com autoridade reconhecida.”9 O problema, afinal, não era decidir se os nossos evangelhos canônicos deveriam ser incluídos no cânon ou não, mas sim se havia outros que deveriam ser acrescentados à coleção (p. ex., o Evangelho d e Pedro).10 11 Justino Mártir insinuou, já no segundo século, que a coleção dos quatro evangelhos era considerada pela maioria dos cristãos de mesmo valor que as Escrituras Hebraicas.

Provavelmente, foi também no segundo século que a lista do chamado Cânon Muratoriano foi composta.11 Falta o início do documento, mas parece ter relacionado Mateus e Marcos. Depois disso, temos os outros dois evangelhos canônicos, Atos, as cartas de Paulo (incluindo as pastorais), 1 e 2João, Judas e Apocalipse. Em outras palavras, estão incluídos 22 dos 27 documentos relacionados mais tarde como canônicos. Também estão incluídos o documento judaico chamado Sabedoria de Salomão, muito popular na igreja primitiva, e Apocalipse d e Pedro (embora com a advertência de que nem todos concordam que este deva ser lido na igreja). O

Pastor, de Hermas, é discutido, mas a opinião consensual é a de que ele não faz parte dos escritos dos apóstolos e profetas. Ele poderia ser lido pelos crentes, mas não em voz alta na igreja. “Com isto, vemos que o fator-chave para a canonização não era se os documentos podiam ser lidos ou usados por um crente, individual-

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