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HISTÓRIAS EXTRAÍDAS DO ANTIGO TESTAMENTO

AS HISTÓRIAS DO NOVO TESTAMENTO

HISTÓRIAS EXTRAÍDAS DO ANTIGO TESTAMENTO

Parece claro que um dos principais objetivos dessa narrativa é explicitar a diferença entre a verdadeira adoração e a falsa. Estêvão diz que Deus os entregou ao seu pecado, e eles se tornaram escravos das próprias escolhas.

Estêvão não está interessado em focalizar a linhagem dos reis. A história de Davi e Salomão é mencionada apenas de passagem, e somente quando a adoração e os locais de culto fazem parte dela. Davi pediu para construir uma habitação para Deus, mas não teve permissão para isso. Salomão, entretanto, não é criticado por construir um templo para Deus. Nesse ponto, temos uma citação direta de Isaías 66.1, 2. O cerne do argumento não é que a presença de Deus não pode ser encontrada num templo, mas sim que é impossível mantê-la confinada ali e, além disso, que Deus não pode ser manipulado por meio da construção de templos e da oferta de sacrifícios. O que é criticado nessa prolixa recontagem da história de Israel não é apenas a rejeição dos mensageiros e da mensagem de Deus por parte de Israel, mas um tipo de teologia que tenta colocar Deus numa caixa, achando que ele pode ser confinado, controlado e manipulado por meio de templos e sacri­ fícios. Idolatria é a tentativa de moldar e controlar Deus com mãos humanas, usando meios humanos. Tudo isso leva Estêvão a acusar seus ouvintes, que, para ele, repetem o padrão negativo de muitos de seus antepassados.

Lucas utiliza as histórias do AT em Atos como forma de ajudai- seus leitores a se lembrar do passado e, em alguns casos, fazer o mesmo — porém, na maioria das vezes, seu intuito é provocar uma mudança de comportamento. As histórias geralmente são contadas em forma mais floreada ou ampliada, e sempre tendo em vista o final, que é a história de Jesus e sua continuação. É interessante que as histórias de Abraão, Moisés e Davi entram em cena repetidamente, em maior ou menor proporção, mas são utilizadas de modo muito diferente do que vemos nas cartas de Paulo. Abraão, por exemplo, não é usado como o paradigma da justiça pela fé.

O evangelho de Lucas usa as histórias do AT mais ou menos da mesma maneira que Atos, exceto pelo fato de que, nos evangelhos, a ênfase maior é dada em mostrar Jesus como a consumação ou o cumprimento de profecias; portanto, ela é menor em sua ligação com histórias do AT (em oposição aos oráculos — observe a ênfase sobre o que os profetas disseram, em Lc 24.25-27, embora Moisés seja mencionado, assim como todos os profetas). Apesar disso, um pouco pode ser dito aqui.

Em primeiro lugar, podemos observar a influência das histórias do AT sobre o modo como Lucas conta a história de Zacarias, Isabel e João, em Lucas 1. O autor quer nos fazer ouvir ecos da história de Ana e Samuel. A hipótese subjacente a esse tipo de narrativa é a de que Deus lida com seu povo segundo um padrão determinado, e o modo como eles podem e devem responder a Deus também é padronizado.

Mas observe que Lucas tem em mente um profeta ainda mais notável, quando pensa em João. Lucas 1.17 diz que João irá adiante do Senhor no espírito e poder de Elias. Mas isso não é tudo. João também personifica a profecia de Isaías 40

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sobre a voz do que clama no deserto, preparando o caminho do Senhor (v. Lc 3.4). Jesus confirma ser João o homem a quem aquela passagem se refere, e, portanto, ela se cumpre em seu ministério (Lc 7.27). Do mesmo modo, Jesus confirma a João, em Lucas 7.21, 22, que ele mesmo é o cumprimento de Isaías 61. Mais adiante, em Lucas 4.18,19, esse texto é indicado como o versículo predileto de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar boas novas aos pobres; enviou-me para proclamar libertação aos presos, e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e para proclamar o ano aceitável do Senhor” (Is 61). Observe que aqueles que não estão a par do assunto tentam aplicar a história de Elias a Jesus (por ele ter ressuscitado uma criança, como fez Elias [cf. Lc 7.1 1-17];28 Herodes, o tetrarca, fica confuso porque já havia mandado decapitar o homem que ele achava que era a figura de Elias [Lc 9.7-9]; v. tb. Lc 9.19).

A opção pelos textos proféticos no terceiro evangelho também se reflete em Lucas 11.29-32, mas dessa vez não são os oráculos, e sim a história de Jonas, que é vista como um paralelo à história de Jesus. Jonas foi um sinal para os ninivitas de que o juízo viria sobre eles se não se arrependessem. Mas eles se arrependeram. Essa narrativa é acoplada com a história da rainha de Sabá, que veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. Essas duas testemunhas, os ninivitas e a rainha, testemunharão no dia do juízo contra os que se recusaram a ouvir a Jesus. A comparação aqui é por contraste. Esses pagãos da antiguidade se arrependeram; o público predominantemente judaico de Jesus, não.

O AT é usado mais uma vez em Lucas 11.50 para ressaltar a responsabilidade moral de Israel e o juízo que viria sobre a nação por ter rejeitado Jesus — “esta geração” será responsabilizada pelo derramamento do sangue de todos os profetas, desde Abel até Zacarias! Essa passagem pressupõe o conhecimento das diversas histórias que contam o modo como tantas dessas personagens destacadas foram mortas ou rejeitadas pelo povo de Deus. Em Lucas 13.34, recai sobre Jerusalém o mesmo lamento ou acusação feita a “esta geração”. Como Jesus conta muitas histórias em forma de parábolas nos evangelhos, fica claro que ele está mais interessado em contar suas próprias histórias do que em reutilizar ou reiterar as do AT. Esse detalhe, em parte, reflete o verdadeiro ministério de Jesus, mas também revela o modo como Lucas periodiza a história da salvação: “A lei e os profetas vigoraram até João; a partir daí é anunciado o evangelho do reino de Deus...” (Lc 16.16). Sim, agora é hora de reconhecer o cumprimento das profecias do AT, mas para proclamar, não as velhas histórias, e sim as boas novas. Mais uma vez vemos o mesmo padrão de recurso às histórias do AT para alertar a respeito do juízo vindouro sobre os distraídos e despreparados, em Lucas 17.26, 27: “Como aconteceu nos dias de Noé, também

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acontecerá nos dias do Filho do homem. Comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca, e veio o dilúvio e os destruiu a todos”. Segue-se, em Lucas 17.28-34, um uso similar da história de Ló e sua mulher, e do juízo que caiu sobre Sodoma e Gomorra. Jesus vive na era do cum­ primento, mas isso significa não só o cumprimento das boas novas como também o das histórias que prefiguravam o juízo.

O episódio da purificação do templo, conforme registrado em Lucas 19.45-48, inclui a citação de dois textos do AT: Isaías 56.7 e Jeremias 7.11. Ao usar o segundo texto, Jesus menciona a destruição do templo pelos babilônios, como profetizou Jeremias (v. tb. Mc 11.17, que Lucas está seguindo). Aquilo era um pesadelo que praticamente todo judeu sabia de cor. Não é de surpreender que a menção desse fato e a ação no templo tenham deixado Jesus em maus lençóis com o sumo sacerdote e sua turma.

Utilização ainda mais surpreendente da história de Moisés e a sarça ardente é encontrada em Lucas 20.37, 38 (seguindo Mc 12.26), em que a referência de Moisés ao Deus de Abraão, Isaque e Jacó é aproveitada para mostrar que esses três homens ressuscitarão dos mortos, visto que Deus é Deus dos vivos e não dos mortos, “porque para ele todos vivem”. Poderiamos dizer que este é um exemplo de uso de uma história com sentido oculto ou mais amplo.

Em certos aspectos, não é surpreendente que Lucas não gaste muito tempo recontando histórias do AT. Em primeiro lugar, ele acredita estar escrevendo sobre a era do cumprimento de todas as profecias, não uma época de recontar velhas histórias. Em segundo lugar, ele crê que a ênfase deve recair sobre as boas novas, a novidade que está acontecendo. Assim, mesmo quando há alusões a velhas histórias ou quando são parcialmente recontadas, elas estão a serviço das boas novas e, às vezes, servem para alertar sobre o que acontece com os que rejeitam essas boas novas — acabam como a mulher de Ló ou os vizinhos de Noé. Observe, também, que Lucas, o historiador da salvação, não gasta muito tempo citando ou mencio­ nando histórias do AT nem mesmo na narrativa da Paixão. Ele quer que a história de Jesus fale por si, embora tenha prazer em moldar a história do início ao fim para que ela tenha ressonância “bíblica”. Isabel não é Ana, João e Jesus não são realmente Elias, mas usar a história do AT como material de modelagem, cenário ou subtexto é uma das técnicas de Lucas.

Marcos está ainda menos interessado do que Lucas em ver seus personagens centrais recontando ou evocando histórias do AT. Em Marcos 2.25, 26, temos a resposta de Jesus aos fariseus: "... Acaso nunca lestes o que Davi fez quando ele e seus companheiros estavam em necessidade e com fome? Como ele entrou na casa de Deus, no tempo do sumo sacerdote Abiatar, e comeu dos pães consagrados, dos quais não era permitido comer senão aos sacerdotes, e deu também aos com­ panheiros?”. A história encontra-se em 1 Samuel 21, e existe certa dúvida se Jesus contou a história direito ou não. O sumo sacerdote naquela época era Abiatar ou

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Abimeleque?29 Para nossos propósitos, o que importa é que a história é usada para fornecer um precedente que justifique o comportamento dos discípulos de Jesus no sábado.

A história de Elias vem à baila, como era de esperar, em vários momentos oportunos envolvendo João Batista e Jesus (v. Mc 6.15; 8.28), mas Marcos 9.11- 13 desperta um interesse especial. O que importa ao autor aqui não é a narrativa sobre o Elias histórico, mas o personagem escatológico que foi profetizado em Malaquias 4.5. Porém, é preciso notar, também, que Isaías 40 é reutilizado em Malaquias 3.1, que faz a preparação para o que será dito em Malaquias 4.5, 6. Obviamente, a descrição de João em Marcos 1 evoca Isaías 40, mas fica claro, no decorrer da narrativa de Marcos, que João suscita a questão sobre o Elias escatológico e se ele (ou Jesus) poderia estar completando aquela história. Portanto, quando diz que Elias vem primeiro e restaura todas as coisas (antes que o Filho do homem sofra muito, seja morto e ressuscite), Jesus coloca o manto daquela história de Elias sobre os ombros de João, e não sobre si mesmo. E ele diz que a história não tem um final feliz: “e fizeram-lhe tudo quanto quiseram, como dele está escrito”. Este trecho pode ser uma alusão à ameaça de morte feita por Jezabel, em IReis 19.1-3, contra o Elias histórico. Mas existe algo muito agressivo com relação a essa nova narrativa da história de Elias. O Elias histórico escapou das garras de Jezabel e viveu até ser arrebatado por Deus. Mas o Elias escatológico de então teve morte horrível, decapitado por ordem de uma rainha Jezabel atual: Herodias.

Em Marcos 10.6-8, a história de Adão e Eva, narrada em Gênesis é abordada rapidamente. São citados Gênesis 1.27 e 2.24. O propósito dessas citações não é exatamente fazer referência ao primeiro casal, mas sim ao primeiro casamento e às intenções de Deus de que houvesse união permanente, numa só carne. Aqui temos a noção de que, na era escatológica, o plano de Deus para a ordem da criação antes do pecado original não deveria ser apenas relembrado, mas posto em prática. A história é contada de modo a deixar bem claro que não se levaria mais em conta a dureza do coração humano. O divórcio não deveria ocorrer com aqueles que Deus juntou, embora a narrativa reconheça que a interferência de uma terceira pessoa podia separá-los.

A citação do início do salmo 22 em Marcos 15.34 entra em nosso contexto, porque, nesse salmo, o autor conta sua história de angústia e pesar, e clama pelo socorro divino. Não está claro se devemos pensar que Jesus está conjurando o salmo inteiro, que termina de um modo mais feliz do que começou. Porém, é certo que a citação e alusão parcial à história contada nesse salmo são importantes. Jesus se identifica com o sofrimento injusto ou injustificado do salmista. Observe, porém, que mesmo aqui uma traditio de Elias entra em cena. Os ouvintes pensam

29 V. a discussão em meu livro The Cospel o f Mark: A Socio-Rhetorical Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2001), p. 130-1.

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