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A Vertente Simbólica de Philia

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 152-154)

4. SOBRE O AMOR E SUAS DIMENSÕES NA FILOSOFIA E NA PSICANÁLISE

4.4 A Vertente Simbólica de Philia

Freud não deixou de sustentar que o amor é dom fundante das estruturas de parentesco e das trocas sociais, embora isso tivesse um preço. No texto “Totem e tabu”, de 1913, Freud nos ensina que uma comunidade de irmãos, ou seja, uma sociedade fraterna só poderia ter início mediante um ato de violência: o assassinato do pai déspota. Freud conclui que só há sociedade com base na cumplicidade de um crime comum a seus membros ([1913] 1996, p. 174) e que a função social do sacrifício reside no estabelecimento de “um vínculo sagrado que cria e mantém ativo um elo vivo de união entre os adoradores e seu deus.”

A partir de então, a sociedade fraterna se sustentaria na sublimação da libido homossexual. Mas essa vicissitude da pulsão sexual estaria fadada a fracassar de tempos em tempos. Por isso, de forma análoga ao que acontece com sujeitos paranoicos, o fracasso da sublimação daria livre curso às manifestações da pulsão de morte (pulsão agressiva ou de destruição) que, por sua vez, se estenderiam das ideias e fantasias persecutórias de um Outro gozador, às passagens ao ato mais violentas e/ou cruéis.

Esse mito expressa o esforço de Freud em posicionar o pai como Um da exceção, sua vontade de forçar a lógica e, quiçá, impor um tempo de pacifismo. Pois “as energias que empregamos em sermos todos irmãos provam bem evidentemente que não o somos.” (Idem,

ibidem).

Lacan ([1959-1960] 1991, p. 217) assevera que “Totem e tabu” é o único mito de nossa era, demonstrando que, como todo mito, ele tem a natureza de uma criação simbólico- imaginária destinada a dar conta de uma emergência do real. O mito freudiano não nos ensina propriamente como se dá a humanização dos seres falantes, mas como nós nos asseguramos dos fundamentos de nossa humanidade passando pelo assassinato do pai e pelo complexo de Édipo. No mito, salienta Lacan ([1959-1960] 1991, p. 218), o pai morto nada mais é do que um operador estrutural, uma advertência contra o possível retorno de um pai capaz de sacrificar o próprio filho.

Em “Psicologia das massas e análise do Eu”, de 1921, Freud teoriza o que está na base da formação dos grupos analisando a formação das massas, tendo como paradigma a igreja e o exército. Ele destaca a existência de dois eixos estruturais: um eixo vertical segundo o qual se organiza a relação dos membros da massa com o líder, e um eixo horizontal que representa o laço entre os membros. Os grupos se constituem a partir das identificações egóicas de cada membro com o ideal encarnado no líder, que pode ser substituído por uma ideia ou um sentimento negativo e unificador quanto ao objeto externo à massa, pois na

verdade ele representa o ideal de eu para os componentes da massa. A relação de cada indivíduo com o líder é idêntica em sua estrutura à hipnose e, desse modo, fica estabelecida uma confusão entre o objeto e o ideal do eu.

Lacan ([1964] 1985, p. 257), quando comenta o capítulo de Freud sobre o estado amoroso e a hipnose, é para dizer que há uma diferença entre um e outro. Como “não há uma diferença essencial ente o objeto definido como narcísico, o i (a), e a função do a. As coisas são assim ao ponto de que só a vista do esquema de Freud dá a hipnose, dá ao mesmo tempo a fórmula da fascinação coletiva”, de maneira que quando cada um sacrifica uma parte de si mesmo pelo amor ao líder, temos o insucesso do inconsciente. O fanatismo religioso e as organizações totalitárias demonstram a possibilidade de despertar na humanidade, a partir da afirmação de um amor sem limite, uma culpabilidade infinita sobre a base da qual se obtém a submissão e os mais insensatos sacrifícios. Essa perda de si, o sacrifício ao Outro idealizado fascina ainda mais quando é assegurada uma função redentora. Gozo de se oferecer ao desejo deste Outro, chamado por Lacan ([1964] 1985, p. 259) de Deus obscuro. Aí encontramos no sacrifício o último testemunho.

Lacan em “Televisão” ([1973] 2003, p. 536) cita a amizade tal como a teoriza Aristóteles para dizer que “é justamente por onde se desequilibra esse teatro do amor na conjunção do verbo amar, com tudo que se segue de devoção à economia”, e sabemos que ele está se referindo ao custo da sujeição amorosa que conflui na servidão voluntária e naquilo que podemos chamar “o campo das perversões políticas.”

Lacan, embora retome Freud a partir dessa vertente simbólica, não compartilha da concepção do amor do pai como um sistema. E se a metáfora paterna permite um tratamento da lei simbólica no plano do significante, Lacan opõe ao amor do pai, da primeira identificação, a má relação consigo mesmo, mostrando que não é o amor ao pai o que aparece primeiro, mas o ódio a si mesmo. É isso que a hiância irredutível do espelho evidencia: o ódio a si e o ódio ao Outro.

Lacan ([1972-1973] 1985, p. 135) nos mostrou em Santo Agostinho que o gozo do ódio que o sujeito experimenta diante da imagem do outro que possui o objeto invejado antecipa logicamente tanto o amor quanto o ódio ao Pai, de maneira que o Nome-do-Pai já se apresenta como um véu para mediatizar essa relação. O Nome-do-Pai e a significação fálica introduzem o amor no registro simbólico e vem dar limite à presentificação da pulsão de morte. Essa perspectiva dá a Lacan um grande ceticismo com respeito ao amor como saída para a harmonia entre os homens, e sua releitura do amor no pai freudiano culmina em uma releitura do amor à luz do gozo feminino. Chegaremos aí.

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 152-154)