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Qual o Discurso Dominante No Capitalismo Financeiro?

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 124-132)

3. A SOLIDARIEDADE COMO SINTHOMA DO CAPITALISMO FINANCEIRO

3.2 Qual o Discurso Dominante No Capitalismo Financeiro?

Lacan ([1969-1970] 1992, p. 97) observa que “o progresso .[...] faz surgir como dominante um saber desnaturado em sua localização primitiva.” Para nossos propósitos, vamos analisar o estágio atual do capitalismo, considerando as modificações que ele sofreu ao longo da história, com o objetivo de definir qual é o seu agente na contemporaneidade. Lacan ([1969-1970] 1992, p. 84) nos chama a atenção para uma mudança de discurso advinda do progresso da ciência moderna, destacando como o saber do mestre se produz como saber inteiramente autônomo do saber mítico.

O próprio ideal de uma formalização onde tudo é conta – a própria energia nada mais é do que conta .[...] faz surgir uma articulação eminentemente nova do saber, completamente redutível formalmente .[...] do trabalhador como sendo apenas unidade de valor. (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 76).

Já vimos que o capitalismo mercantil, também nomeado como capitalismo de produção, quando se inicia a acumulação do capital, marca a saída de um mundo tradicional, no qual o mestre fazia intervir sua autoridade como elemento de sabedoria indispensável à transmissão do conhecimento, para um mundo em que a ciência se apoia exclusivamente sobre a evidencia do saber formulável. Com ela, vimos acontecerem as grandes revoluções sociais e tecnológicas, fazendo cair o mestre antigo para aparecer uma nova modalidade do DM, tendo o saber científico como agente. Tal como vimos acima, o discurso que tem S2 no lugar de agente é o do Universitário. O mestre da ciência é um saber que nada pode detê-lo, mesmo quando os comitês de ética tentam colocar-lhe um freio para fazer uma regulação das

suas pretensões totalitárias. No DU tudo que é tratado pelo saber é considerado um objeto (a), mesmo quando se trata de pessoas. A ciência moderna não admite nenhuma sabedoria para além do discurso fundado sobre a pura coerência da demonstração matemática. Apoiada sobre os prodígios de seus efeitos, ela ultrapassou o domínio da física, estendendo-se à esfera do direito e da política. Lacan ([1968-1969] 2008, p. 38; [1969-1970] 1992, p. 86) nos diz que o fato de a ciência estar atrelada à realidade capitalista “altera completamente o sentido de nosso materialismo.”

É por isso que Lacan ([1968-1969] 2008, p. 37) se pergunta se a mais-valia existe antes da absolutização do mercado e responde que “não”, que ela “é fruto dos meios de articulação que constituem o discurso capitalista. É o que resulta da lógica capitalista.” A mais-valia aparece somente em um jogo de escritura, sua descoberta é científica.

Marx parte da função do mercado. A novidade é o lugar onde ele situa o trabalho. Não que o trabalho seja novo, que lhe permita sua descoberta. É o fato que seja comprado; é que haja um mercado de trabalho. É isso que lhe permite demonstrar o que há de inaugural em seu discurso e que se chama mais-valia. (LACAN, [1968- 1969] 2008, p. 17).

Foi só depois que a força de trabalho entrou no sistema como uma nova mercadoria que o trabalho conseguiu afirmar seu caráter social na forma-mercadoria de seu produto. Quando o trabalho cai na contabilidade e começa a ser pago por um preço definido pelo mercado é que se pôde ter a noção do valor de uso do trabalho humano. É nessa via que Lacan diz:

A mais-valia é o memorial do mais-de-gozar, é o seu equivalente do mais-de-gozar. A sociedade de consumidores adquire seu sentido quando ao elemento, entre aspas, que se qualifica de humano, se dá o equivalente homogêneo de um mais-de-gozar qualquer, que é o produto de nossa indústria, um mais-de-gozar – para dizer de uma vez – forjado.” (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 76).

Lacan ([1969-1970] 1992, p. 76) observa que Marx denuncia a descoberta da mais-valia como espoliação, mas pontua que ele se esquece de que é no próprio saber sobre isso que está o segredo.

Em nossa análise, o capitalismo financeiro que se instalou desde 1973, quando a paridade do dólar com o ouro acordado em Bretton Woods foi implodida e o sistema monetário e as taxas de câmbio de cada país passaram a flutuar livremente tendo seu valor determinado dia a dia, está regido pela formalização abstrata da ciência. É importante notar que a economia sofreu uma mudança estrutural após a queda da ultima referência física para as trocas

comerciais. A partir de então a expansão financeira se tornou ainda mais incontrolável, a dívida passou a ser um tipo de capital porque há na sua financeirização, uma possível extinção da moeda em favor do “dinheiro eletrônico”, reduzido a meras informações armazenadas em discos magnéticos de computador.

Podemos dizer que esse corte no funcionamento da economia segue “par e passo” o funcionamento do Discurso do Mestre moderno, aquele do saber universitário. De acordo com Lebrun (2006, p. 65), há três gerações na história da ciência que podem nos fazer entender a passagem do mestre antigo para o mestre da ciência moderna. Na primeira geração temos o exemplo do cientista trabalhando em seu laboratório, onde se depara incessantemente com o impossível, pois não é porque é cientista que perde sua relação com o mundo. A segunda geração se constitui quando sua descoberta é considerada exitosa, por produzir um enunciado que possa dispensar sua enunciação, ou seja, quando exclui-se completamente como sujeito daquilo que produziu. Esse estágio recalca, apaga a dimensão da enunciação de sua descoberta em proveito da produção apenas de enunciados.

Aqueles que se beneficiam do trabalho do cientista são os mais inclinados a tomar esses enunciados como favas contadas, porque não têm mais que assumir a própria exclusão como sujeitos, já que não pagaram verdadeiramente o preço pelo trabalho realizado.

Por fim, a terceira geração da ciência está no nível do discurso tecnológico, onde o vestígio do apagamento da dimensão da enunciação já desapareceu, deixando a via aberta para a utilização dos enunciados, ou melhor, para seu consumo.

Lebrun (2004, p. 62-63) identifica nosso tempo contemporâneo como regido pela égide desse terceiro momento, momento este que desvelou seu paradoxo com a experiência funesta de que seus progressos não se revelam unívocos e nem irão a uma mesma direção, pois os benefícios dos quais lhe podíamos dar o crédito não andam mais livres da avaliação dos perigos e das ameaças que comportam. O terceiro momento da ciência moderna traz, portanto, dois traços essenciais. O primeiro é a elisão da categoria do impossível, e o segundo a perda de uma relação espontânea com o mundo. Lacan se pergunta:

Quem pode em nossa época, sonhar sequer por um instante em deter o movimento de articulação do discurso da ciência em nome do que quer que possa acontecer? [...] as coisas já mostraram aonde vamos, de estrutura molecular a fusão atômica. Quem pode pensar sequer por um instante que se poderia deter aquilo que, do jogo de signos, de inversão de conteúdos a mudança de lugares combinatórios, provoca a tentativa teórica de pôr-se à prova do real da maneira que revelando o impossível, faz dele brotar uma nova potência? (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 97).

O afastamento da economia real de uma realidade material encontrou suas garantias nas matemáticas, porque esta independe da percepção dos fatos. Antes desse estágio da ciência o Real e o Simbólico estavam intrincados. Mas o que o simbólico matemático instala é um simbólico que sozinho (iludindo a enunciação) pretende dar conta do Real. Seguramente não pode chegar a isso, é uma impossibilidade estrutural, mas pode posicionar-se como esperando que isso venha a se afirmar futuramente, tratando a impossibilidade como impotência temporária. Essa é uma característica que faz com que a ciência e por homologia o próprio capitalismo tenham uma pretensão totalizadora, e que seja preciso o contrapeso do discurso da psicanálise para manter o espectro totalitário a distância.

Quinet (2006, p. 20) nos lembra que o sujeito do Discurso do Universitário é a crença, coincidindo com a afirmação de Walter Benjamim de que o capitalismo é a religião moderna universal. Eis a divinização do saber promulgada pela idealização desse discurso no qual Deus é o cúmulo do saber. A ciência tem como finalidade a conquista do real, colonizando-o com os aparelhos simbólicos que as fórmulas matemáticas representam.

O discurso do Universitário não tem a ciência como fruto da percepção, de maneira que o estatuto da verdade é puramente lógico. No capítulo XI do seminário XVII, Lacan inventa dois neologismos: “aletosfera” e “latusas.” O primeiro é uma condensação da palavra atmosfera e alétheia, esta última significa verdade, no sentido de desvelamento. Lacan vai dizer que a ciência produziu a aletosfera que não é apreensível pelos aparelhos sensoriais, mas que “ex-siste” no ar. Latusas, por outro lado, se referem aos objetos que encontramos no mundo aqui embaixo. Em francês latusas rima com ventosas (lathouse – ventouse), e é por isso que, para Lacan ([1969-1970] 1992, p 153) esses gadgets que inundam nossas vidas e nos colocam a trabalho para consumi-los, nada mais são do que vento. “[...] no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora é a ciência que os governa, pensem neles como latusas”.

Os inúmeros objetos que nos seduzem no mundo capitalista atual poluem o ar produzindo montanhas de lixo que vão contaminando nossos ares, mares, solo. Se no DM o a é o ser do sujeito que cai como resto que sobra de seus laços com a cultura, estamos cientes de que algo desse ser sempre resiste, pela própria impossibilidade de se escrever ou dar formas ao real.

As latusas (objetos que nada mais são do que vento) adquirem a consistência de objetos de desejo, escamoteando a falta estrutural. Em vez da queda do a, este é agora administrado pela mídia, pela publicidade, por um mercado que nos promete a felicidade. O

que decorre daí é que o próprio ser do sujeito é que passa a ser consumido. As pessoas se consomem para consumir. A perda de gozo que condiciona a inscrição simbólica do sujeito, da qual o discurso do mestre nos dá a estrutura, se vê no mundo contemporâneo refém das manhas do capitalismo, nos forçando a criar novos sintomas.

De acordo com Safatle (2005, p. 124-127), diferentemente da sociedade de produção, na qual a racionalidade econômica dependia fundamentalmente da disposição das pessoas de renunciarem a todo o gozo espontâneo da vida visando à acumulação de capital, na sociedade de consumo o que vemos é o contrário, ou seja, uma ética de direito ao gozo, pois o que o capitalismo financeiro precisa é de um gozo incondicional, encontrado na infinidade plástica da forma-mercadoria.

Miller (1998/2003) faz uma associação entre o caráter de uma sociedade e o discurso que a domina. Onde o discurso do mestre e da autoridade é dominante o caráter na sociedade é masculino. A virtude máxima do caráter masculino é a prudência, o equilíbrio, a boa medida, a virtude. Ele nos chama atenção para a afinidade de estrutura existente entre este tipo de sociedade e a experiência analítica tal como ela se estruturou: o sujeito se interroga, se questiona, se pergunta sobre o que é verdadeiro ou falso, sobre o que ele deve fazer ou não. Isso nos possibilita dizer que em uma sociedade na qual o discurso do mestre é forte, a coisa mais simples do mundo é instalar o sujeito suposto saber. O sujeito acredita em Deus, acredita que há uma verdade em algum lugar, que há um sentido último, que a ciência descobrirá a verdade toda sobre a vida e o ser. Ele se pergunta o que deve fazer, o que esperar, do que não pode duvidar, todas perguntas filosóficas clássicas.

Não podemos deixar observar que, quando Lacan apresenta o discurso do capitalista em 1972, deslocando a sequência das letras (S1, S2, $ e a) - que determina a lógica do discurso inconsciente - ele já havia percebido que elas já não estavam mais funcionando no ordenamento discursivo do discurso do mestre, ou seja, em torno do eixo: o Nome-do-Pai no lugar de agente. Era esse primado do S1 que propiciava que o sujeito se colocasse ora como histérico, ora no lugar do gozo, ora no do saber. Essa circulação estava assegurada pelo ponto fixo situado no lugar do agente.

De acordo com Miller (2004), a difusão da ciência e inclusive da própria psicanálise como um produto consumível na cultura estimulou a produção de sujeitos à deriva no campo das identificações, e contribuiu definitivamente para o mascaramento da verdade de que o poder está esvaziado do peso da coerção. Na verdade, é que quando o saber toma a posição de agente e radicaliza-se na cultura, logo, logo veremos as providências da sociedade de consumo para que a oferta dos objetos tome o lugar do agente anteriormente ocupado pelo

saber. Miller conclui que, em consequência disso, o que parece estar no lugar do agente do discurso é o objeto da pulsão.

Isso começou com um discurso que dizia às pessoas: “Não há coerção em lugar algum. Você é livre para escolher o que ser e o que quiser.” Aliviado do lastro de suas identificações, o sujeito fica à deriva e vem ser capturado secundariamente por uma sociedade que oferece aquilo que poderia lastrear para ele a sua existência, isto é, a como agente. Isso acontece como uma sutil reviravolta: “Você escolhe o que quiser porque é livre, mas eu providencio a oferta de algumas soluções.”

De fato, a difusão da psicanálise efetivamente levou as pessoas a não mais pensarem em termos de identificações ideais, tanto geracionais quando de gênero. A única identificação que as une vem do mercado e é a de que somos todos consumidores. A ciência tem verdades muito provisórias e uma coisa que é dita hoje pode ser desmentida amanhã. Um sujeito diz uma coisa, enquanto outro pode dizer outra que lhe seja oposta. Cada um adota sua verdade. E o que aparece, de forma desnudada, quando o saber está na posição de agente é que nós não passamos de joguetes na mão de uma máquina discursiva louca que trata tudo pelo saber, que supõe que teríamos um saber para tudo, e você se vê realmente na posição de resto, numa posição de objeto sobre o qual todos esses saberes incidem. Tudo se reduz a uma perspectiva entre outras. Quando tudo é verdadeiro, então, nada é verdadeiro. Quando as verdades fracassam e chegam a esse ponto, vemos mais claramente que pouco importa se o que se diz é verdadeiro por oposição a alguma outra coisa que seria falsa. Verdadeiro ou falso, isso serve ao gozo. A oposição desaparece completamente.

Não podemos, a partir de agora, deixar de antecipar aqui uma discussão que será mais aprofundada a partir do item seguinte, quando apresentaremos a distinção entre sintoma e

sinthoma, questão emergente no último ensino de Lacan ([1972-1973] 1985), após o O

Seminário, livro 20. O objeto a no discurso do mestre é um gozo entrópico porque ainda não há na teoria um real que esteja fora do campo do significante. O gozo produzido pela máquina discursiva é sempre procrastinado, é o gozo do sintoma, é o gozo como Marx o descobriu – como mais valia. Não se trata do gozo que será obtido aqui e agora. Ele só será obtido ao término de muitos passos e procedimentos, sempre amanhã. O sintoma é isso: o sujeito goza amanhã. Em contrapartida, o sujeito contemporâneo é aquele que diz que não quer saber o que acontecerá amanhã. Ele quer saber de gozar hoje. Ele tem que resolver isso hoje, já, agora.

De acordo com Coelho dos Santos ([2005] 2006, p. 88-89), embora Lacan tenha dito em 1970 que toma o objeto a como real do gozo, ele não tem em termos lógicos como provar isso, porque tudo o que é do campo do gozo em O Seminário, livro 22 está submetido ao

discurso. Como a fórmula do discurso do mestre é igual à fórmula do discurso do inconsciente, o lugar do objeto a que é de uma perda de gozo é em um o mesmo que no outro, ou seja, o objeto a é do campo do inconsciente. Sabemos que a formalização dos discursos não dava conta de abordar o que Lacan já estava antecipando na tentativa de teorizar em O

Seminário, livro 20 um real fora do inconsciente, que justificasse um “gozo do corpo” que não é sabido, mas vivido.

A consequência lógica disso é que quando o objeto a ocupa o lugar do agente no discurso do analista, está ocupando ainda assim o lugar de significante mestre (S1), tal como o próprio Lacan ([1969-1970] 1992, p. 33) admite. Isso significa que aquela crítica de Lacan ([1962-1963] 2005, p.143) em O Seminário, livro 10 de que Freud nunca saiu do lugar do mestre, de que ele ficava no lugar do ideal, e que o lugar do analista não é o do ideal, nem o do mestre, essa crítica passa a não se sustentar muito bem.

Miller ([1991-1992] 2002, p. 178-179) nos mostra que a formulação do discurso do analista é ainda dependente da lógica viril, mesmo tendo como agente o objeto a. O fato de ele estar posicionado no lugar do mestre faz com que se mantenha como mestre e agencie o discurso tal como sugere que acontece na contemporaneidade. Para Miller, não se foge da determinação da lógica do discurso do mestre só porque se mudou o elemento que ocupa o lugar do agente, porque o lugar do mestre é o lugar do “ao menos um”, e nesse lugar, como consequência da castração, o pai pode surgir como semblante, depois o professor, depois o presidente, o médico, etc. Esse é, portanto, um lugar passível de substituição em consequência de que todos estão submetidos à castração, porque há “ao menos um que não está.” Se o analista vem nesse lugar enquanto objeto a, ele perde de saída a característica de ser agalma ou dejeto, de ser um objeto de luxo, de brilho ou um lixo, para ser essencialmente um mestre. Isso significa que, querendo ou não, o analista está no lugar que estruturalmente pertence ao ideal do eu.76

Como o plano da identificação é estrutural, é difícil pensar como se sai disso para alguma outra coisa. Coelho dos Santos ([2004] 2005, p. 90) diz que no axioma de Lacan “não há relação sexual” dita explicitamente, O Seminário, livro 22 parece nesse momento carente de sustentação, porque a relação sexual ali é perfeitamente articulada entre um $ e um objeto a e, assim, há relação sexual na fórmula da fantasia.

76 Todo o problema é saber como se pode ir além da identificação do paciente com o analista e da suposição de saber o que o paciente faz ao analista. Como ir além e não aquém quando se trata de atravessar o plano da identificação, que está resumido aqui, é o assunto de nosso último capítulo.

Em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, Lacan ([1969-1970] 1992) está prenunciando o caos, mas o caos ainda não é ali. O complexo de Édipo ainda transporta eficientemente a autonomia do simbólico, transmitindo a castração, a identificação, o lugar da mulher com a sua inveja do pênis, o lugar do homem com o seu desejo de objeto a. Ainda está tudo no lugar, tudo perfeito, e as letrinhas ainda estão todas arrumadas.

Depois dos movimentos de maio de 1968, muitas mudanças sociais se deram com a emancipação da mulher, com a igualdade entre os sexos, com o enfraquecimento da autoridade parental no dispositivo familiar e com o crescimento da previdência (privada ou pública) devido ao aumento do numero de idosos na sociedade, cuja consequência foi a destituição das obrigações das gerações mais jovens com seus velhos.

O dispositivo “família” foi atacado de todos os lados pelo discurso da ciência. O capitalismo, por sua vez, remontou corpos, almas e sexos numa outra configuração que prescinde largamente do dispositivo edipiano na família. Esse “admirável mundo novo” faz com que, progressivamente, encontremos na clínica indivíduos fora do discurso, ou seja, fora no sentido de que essas “letras” – S1, S2, a e $ – não se arranjam mais da maneira como Lacan as ordenou em O seminário, livro 17.

Por isso, Miller ([2004] 2005)77 trata a civilização contemporânea como a civilização do objeto a. Ele mostra que o discurso edipiano familiar, o dispositivo de aliança e de sexualidade que Foucault estudou tão bem – a articulação entre contrato conjugal, matrimonial e sexualidade do qual dependeu todo o ensino de Freud e de Lacan – começa a não funcionar exatamente do mesmo modo. Não se consegue mais encontrar as letras ordenadas na mesma sequência, porque já não se consegue mais prever uma sucessão de lugares: mestre (S1), o saber (S2), o $ e o a.

Coelho dos Santos ([2005] 2006, p. 92) destaca que, em nossa contemporaneidade, o que efetivamente vemos é uma disjunção, uma ruptura entre o inconsciente e o real no discurso dos sujeitos que nos chegam para análise. Como tudo parece completamente desordenado, muitas vezes é pela via da análise que se começa a colocar essas letras no seu

77 “Hoje, se isso for verdade, se minha fantasia conduz a algum lugar – o que ainda está para ser visto -, o discurso da civilização não é mais o avesso da psicanálise. É seu sucesso. Bravo! Bela jogada! Mas, de saída,

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 124-132)