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A Virada do Sintoma no Ensino Lacaniano

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 119-124)

3. A SOLIDARIEDADE COMO SINTHOMA DO CAPITALISMO FINANCEIRO

3.1 A Virada do Sintoma no Ensino Lacaniano

Na teoria lacaniana, o campo da psicanálise é concebido como o do discurso, de maneira que o próprio inconsciente é definido como “o discurso do Outro.” No seminário “O avesso da Psicanálise”, Lacan ([1969-1970] 1992) deu uma versão definitiva a sua teoria do discurso por meio da matriz dos quatro discursos (do Mestre, da Universidade, da Histérica e do Analista), ou seja, dos quatro tipos possíveis de ligação social, das quatro articulações possíveis das relações do sujeito com o Outro e com seu objeto. Eis os matemas formalizados por Lacan ([1969-1970] 1992) para escrever os quatro discursos. Elementos: $, S1, S2, a. $ designa o sujeito, a o objeto perdido, S1 será o significante mestre (índice de comando) e S2 a rede de significantes (o saber, que S1 tenta dominar).

De acordo com Soueix (1997, p. 40), embora os matemas dos quatro discursos inscrevam uma lógica coletiva, a categoria de discurso em Lacan não faz laço entre os sujeitos, pois um discurso é a maneira como um sujeito se situa em relação ao seu ser, é uma regulação de gozo. O que faz laço, portanto, é colocar um mesmo elemento num mesmo lugar, de maneira que basta que um determinado termo esteja no comando para que se dê uma ordem lógica a ocupar os lugares. Para isso, Lacan valeu-se de uma estrutura algébrica denominada “semi-grupo de Klein”,74 com rígidas leis de composição, que foi sendo trabalhada desde a década de sessenta (GOLDEMBERG, 1997, p. 16).

74 Felix Klein (1849-1925) foi um matemático nascido em Düsseldorf, antiga Prússia, atual Alemanha, que ficou conhecido por suas pesquisas na geometria não-euclidiana. Herdeiro do trabalho de Plücker, colega de Engel e contemporâneo dos fundadores da Topologia (De Morgan, Jordan e Poincaré), Klein deu uma importantíssima contribuição às teorias do Grupo e da Função. As primeiras descobertas matemáticas importantes de Klein foram feitas em 1870, em colaboração com Marius Lie. Klein desenvolveu a geometria de Riemann e a teoria das funções. Além da teoria dos Grupos, Klein inventou a garrafa de Klein. Ele também desenvolveu uma teoria de funções automórficas, conectando resultados algébricos e geométricos, em seu livro de 1884, sobre o icosaedro. O Grupo de Klein é uma função de transformação. Transformações jogam um papel fundamental na matemática moderna. Klein mostrou como as propriedades essenciais de uma geometria poderiam ser representadas por grupos de transformações, em que dois elementos jogam entre si para formar um terceiro. Os grupos de Klein estão presentes na maioria das elaborações de Lacan, desde o “diamante” do Seminário “Os escritos técnicos de Freud”, no qual as três “paixões do sujeito” (amor, ódio e ignorância) são postas nos lados de um primeiro triângulo, que vão se desdobrando em uma análise, até o tratamento que ele deu ao cogito de Descartes. A lógica lacaniana observada os esquemas L, R e I; o sistema α, γ, θ, δ, o Grafo do desejo, a fórmula da metáfora, os quatro discursos e a lógica da sexuação, que é uma lógica quaternária devido à influência de Klein (VICTORA, [2006] 2011). a S $ S1 2 2 1 S S a $ → 1 2 S $ S a → $ a S S 1 2

Lugares Campo do Sujeito

(agente) (outro) (produção) (Verdade) Discurso do Universitário (educar) Discurso do Analista (analisar) Discurso da Histérica (fazer desejar) Discurso do Mestre (governar) Campo do Outro

O ponto de partida de Lacan foi o Discurso do Mestre (tal como apresentado acima), no qual certo significante (S1) representa o sujeito (S/) para outro significante, ou, mais exatamente, para todos os outros significantes (S2). O problema evidentemente é que a operação da representação significante nunca se dá sem produzir um excesso irritante e incômodo, um resto, designado como pequeno a. A novidade e o interesse desse seminário, no ponto que nos interessa, liga-se ao fato de que Lacan situa o sintoma como objeção ao “desejo do Mestre”, que é o desejo de “que as coisas andem”, que funcionem, que avancem (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 21).

Enquanto tal, é um discurso da ordem, do comando, da injunção, da presunção. Do lado do assujeitado é requisitado somente obediência, submissão. Somente a obediência absoluta a um comando tão absoluto é incompatível com a categoria do sujeito do inconsciente, enquanto que a operação de sua causação encontra sua realização no processo da separação, pelo qual se fecha a circularidade da relação do sujeito com o Outro. Dessa separação, com efeito, resulta para o sujeito um estatuto fundamentado de insubmissão e de objeção.

Se a isso nós acrescentarmos o fato da fantasia estar abaixo da barra como forma constitutiva do Discurso do Mestre (DM), podemos entender por que Lacan ([1969-1970] 1992, p. 101) diz que tal discurso é cego. É a fantasia que induz o sujeito tornando necessário que ele assuma uma função alternativa para gozar de seu inconsciente: é a função do sintoma. O discurso da histérica começa, por assim dizer, do lado oposto do mestre e resulta de que a posição de agente é ocupada por aquele que interroga toda a mestria ($). A histérica sempre pergunta “o que isso quer dizer?”, como alguém que dissesse, por exemplo, “quem é Freud?”, “Por que é que você se autoriza em Freud?”, “Que autoridade tem Freud para dizer isso ou aquilo?” Essa pergunta emerge como uma reação do sujeito ao que Lacan, no início da década de 1950, chamava de “fala fundadora”, que é o ato que confere uma missão simbólica ao sujeito, porque ao se nomear, define, estabelece seu lugar no laço social. A propósito dessa fala fundadora, a pergunta formulada é sempre: “O que, em mim, me faz ser o pai, a mulher, o filho, etc.?” Em outras palavras, a pergunta histérica articula a experiência da fenda, do abismo irredutível entre o significante que me representa (a missão simbólica que determina meu lugar na rede social) e o excedente não simbolizado de meu ser-aí. Há um abismo a separá-los, e a missão simbólica nunca poderá ser fundamentada, justificada de acordo com minhas “propriedades efetivas”, na medida em que seu estatuto é, por definição, o de um “performativo.” A histérica encarna essa “questão do ser”: seu problema básico é como justificar sua existência (aos olhos do grande Outro).

O discurso da histérica é também o discurso da ciência moderna, porque acabou colocando em questão os significantes da tradição. Se tomarmos a filosofia até certa época, veremos que ela se autoriza em nome de Aristóteles, de Platão, “em nome de.”. A filosofia se construiu completamente apoiada no discurso do mestre, na tradição e na herança filosófica. O discurso da ciência veio desbaratar tudo isso, colocando todos esses nomes próprios em questão, interrogando o valor de verdade para além da autoridade do mestre. Isso nós conhecemos bastante porque, depois de 1968, ninguém fez outra coisa senão interrogar todas as modalidades possíveis e imaginárias de mestria. Como consequência da radicalização do declínio da metáfora paterna, vimos aparecer os sintomas herméticos e resistentes ao tratamento pelo sentido, colocando questões ao discurso analítico com os casos de difícil classificação.

Para nos mostrar o funcionamento de um mundo dominado pelo saber cientifico, Lacan ([1969-1970] 1992, p. 174) nos apresenta o “Discurso Universitário” como um “discurso do mestre pervertido.” Ele é designado dessa maneira porque nele o significante mestre (S1) se esconde sob o saber (S2); não aparece claramente, mas mesmo assim, nessa forma desmentida, ele está lá. Esse é o ponto mais doloroso, pois aqui o modo de exercício do poder parece – e de fato é – esvaziado de poder. O saber em posição de agente age, essencialmente, por persuasão, e não por coerção. No entanto, a verdade do poder é a coerção. Portanto, temos um modo de regulação da vida que se apresenta para o sujeito como uma opção, uma escolha, uma indicação, uma sugestão, disfarçando que isso não é possível, disfarçando que, no limite, o que efetivamente produz efeito no sujeito é da ordem do imperativo. Esse disfarce, essa persuasão mascara permanentemente o lugar do S1, o lugar do agente, do significante mestre. Esse mascaramento do significante mestre é o que faz com que tenhamos sempre a sensação de que o poder é impotente. S2 como agente não diz “Faz!.” Ele diz: “Você faz se você quiser. Isso é apenas um conselho, uma orientação que você pode seguir ou não. É você quem decide.”

O S1 é coercitivo porque é uma palavra oracular e a palavra oracular é aquela que é. Dizer “Deus disse” é suficiente. Ouve-se e não se discute se é ou se não é. Com S2 no lugar do agente, essa dimensão imperativa da linguagem desaparece, disfarçada e obscurecida por um discurso do poder fundado numa suposta permissão, persuasão, possibilidade de escolha. No mesmo contexto, o mais-de-gozar (a), por se encontrar no lugar do Outro, faz com que esse “lugar da exploração” se torne “mais ou menos tolerável”, à medida que se encontra cada vez mais povoado pelos objetos do gozo e consumo chamados “latusas.” (LACAN, [1969- 1970] 1992, p. 179).

Curiosamente, a única verdade é a de isso administra a vida e produz um sujeito dividido e permanentemente em vias de se transformar em outra coisa, um sujeito na caça ao mais-de-gozar, um sujeito que deriva de identificação em identificação. O sujeito ($) que aparece como um produto do discurso universitário não consegue alcançar o significante mestre (S1) que, de acordo com Lacan ([1969-1970], 1992, p.166), jamais se percebe “por um só instante como senhor do saber”, porque há uma barra que separa o saber (S2) do significante que designa o domínio (S1). Quanto mais o indivíduo tem a ilusão de que é livre para escolher, menos efetivamente ele é capaz de, como sujeito do desejo, fundar sua âncora na verdade. Ele deriva e, na verdade, não sabe onde está. Segue de identificação em identificação, completamente alienado em relação ao que efetivamente o determina, ao que efetivamente causa seu desejo.

Por fim o Discurso do Analista (DA) é o avesso do Discurso do Mestre. No lugar do outro está o sujeito dividido ($) pela linguagem e alienado de saber a verdade que o causa. Por isso encontramos o saber inconsciente (S2) no lugar da verdade.O significante mestre S1, por sua vez, é o produto desse discurso, obra do trabalho da transferência que busca livrá-lo da sobredeterminação significante. De acordo com Lacan ([1969-1970] 1992, p. 33), o analista é o mestre sob a forma de a, objeto excedente, resto da rede discursiva. O analista é, portanto, o representante por excelência desse objeto pulsional que é causa de desejo. Lacan assevera que “é lá onde estava o mais-de-gozar, o gozar do outro, que eu, na medida em que profiro o ato analítico, devo advir” ([1969-1970] 1992, p. 50). Nesse ponto se constitui a razão pela qual o Discurso do Analista é muito mais paradoxal do que parece à primeira vista: ele tenta atar um discurso, justamente, desatando-o do elemento que escapa à rede discursiva, que cai dela, que é produzido como seu “resto.”75

Antenado aos efeitos de Maio de 68 Lacan (1972) fez a proposição de um novo matema, em maio, na cidade de Milão, que ele chamou de “Discurso do Capitalista.”

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Muitos nomes foram dados a esse discurso em várias partes de sua obra: mutação, aberração, o que não faz laço, o imperativo de gozo, corruptela do discurso do mestre, discurso em curto-circuito, montagem discursiva, um discurso astucioso, o que leva à morte.

Nesse novo matema aprimora-se a apreensão lacaniana do funcionamento do mestre contemporâneo: o sujeito ($) se sobrepõe ao significante mestre (S2), é deslocado para o lugar do Outro porque, de fato, cada vez mais vivemos em um mundo em que o saber do sujeito não conta ou, como acontece com frequência nas teses universitárias, só conta quando repete o saber já reconhecido ou, com algum esforço e inovação, se mostra passível de ressoar os termos do Outro; por fim, o mais-de-gozar (a) desloca-se do lugar do Outro para o lugar da produção, porque os objetos de consumo são cada vez mais produzidos e desperdiçados.

Tendo apresentado os discursos analisaremos agora sobre qual discurso é o dominante para pensar a função da solidariedade no mundo atual.

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 119-124)