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A Philia e a Polis

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 149-152)

4. SOBRE O AMOR E SUAS DIMENSÕES NA FILOSOFIA E NA PSICANÁLISE

4.3 A Philia e a Polis

Philia amplia os efeitos do amor a um número maior de pessoas, de maneira que se perde em intensidade, mas se ganha em extensão. No início da tradição cosmológica, Eros e

sobretudo, a busca de algo com que se tem afinidade. É, por exemplo, como lembra Marcondes (2008), a Philia e não o eros que une os guerreiros hoplitas88 das falanges gregas, de que os 300 de Esparta são o grande símbolo, em laços de amizade que os fazem lutar juntos em defesa da cidade. É o companheirismo e a camaradagem que explicam a união daqueles que se identificam com os mesmos ideais, possuem uma origem comum, compartilham os mesmos objetivos, vivem sob a mesma lei.

O locus classicus da discussão platônica sobre a Philia é o diálogo Lysis, que tem como subtítulo, precisamente, “sobre a amizade.” Platão começa por se perguntar o que entendemos usualmente por Philia e, através do desenvolvimento dialético do texto, passa a explorar os diferentes aspectos do conceito. A amizade deve ser sempre um sentimento recíproco? Ou é possível sentir amizade por alguém que não corresponde a esse sentimento? Platão examina em seguida um aspecto aparentemente paradoxal do sentimento de amizade e de seu valor moral. Se só desejamos a amizade de alguém porque consideramos que vamos nos beneficiar disso, o indivíduo verdadeiramente feliz (satisfeito consigo mesmo) não precisaria de amigos? Nesse sentido a amizade seria um sentimento egoísta que depende do interesse daquele que busca amigos. Platão examina em seguida a reciprocidade do sentimento de amizade, supondo uma identificação entre os amigos. Mas, nesse caso, só sentiríamos amizade por aqueles com quem nos identificamos, e não podemos ser amigos daqueles que são diferentes de nós? E se só somos amigos daqueles que são como nós, se já são como nós, porque precisaríamos deles? Essas perguntas ficam sem resposta e Platão admite não ter avançado na definição, mas faz Sócrates se despedir de Lysis e Menexeno reiterando sua amizade por eles, mesmo que não saibam ainda defini-la (223b).

No diálogo “Protágoras”, em que consta o discurso de Protágoras sobre Prometeu e a criação do homem, Platão (322d) apresenta o grande sofista dizendo que, vendo que os homens não conseguiam viver em sociedade devido ao conflito, Zeus encarregou Hermes de dar-lhes o senso de justiça e os laços de amizade que são os fundamentos da cidade. A Philia é assim um princípio central da vida social, e Platão mostra como para Protágoras a Philia é, sobretudo, um conceito político, um pressuposto da própria possibilidade da vida em comum.

88 Hoplita (do grego ὁπλίτης, transl. hoplítes, pelo latim hoplites) era um soldado de infantaria pesada na Era Clássica da Grécia antiga. Seu nome provém do grande escudo levado para as batalhas: o hóplon. Os exércitos de hoplitas lutavam corpo-a-corpo em densas colunas, formação em falange, com a ponta das lanças de várias fileiras se projetando para fora da formação e golpeando na altura do peito. Apresentavam um formidável bloco de lanças sustentado acima dos ombros. Na batalha, avançavam sobre o inimigo como se fossem uma parede de escudos, golpeando com suas lanças sobre os escudos. Os homens posicionados na parte de trás empurravam os que estavam na frente e golpeavam sobre eles. Essas aterrorizantes batalhas corpo a corpo normalmente eram curtas, mas fatais. Lutar em curta distância nessa formação requeria treinamento e disciplina, o que acabou por se tornar um estilo de vida. Disponível em: http://pt.wikipedia.org.

É em Aristóteles, em seu texto Ética a Nicômaco (VIII-IX), que aparece o trabalho de definição do que seja Philia. Para Aristóteles a amizade é um sentimento recíproco que une os membros de uma comunidade, considerando-os hetairos, ou seja, “aquele que pertence ao grupo.” É o laço de afeição que une os irmãos e os companheiros em um sentido estendido de “irmão.” Em uma sociedade, ou em uma união qualquer, mesmo familiar, a quebra desses laços gera a tirania, a relação baseada no exercício da força em que um indivíduo subjuga o outro, o rei os seus súditos, o marido a sua esposa, o pai os seus filhos, um irmão o outro.

A ruptura mais forte desses laços corresponde à própria definição aristotélica de tragédia, “violência entre membros de uma família ou clã”, como nos casos de Édipo, Orestes ou Ifigênia. A Philia é, portanto, um sentimento recíproco, mesmo entre desiguais, por exemplo, entre pai e filho, esposo e esposa, soberano e súdito, proposta de uma ética eudaimônica, ou seja, que busca a felicidade.

Ao final do cap. IX, Aristóteles conclui que é a Philia e não propriamente o Eros que é um pressuposto fundamental da ética, tal como já havia anunciado Platão. Há uma sabedoria na amizade, e é significativo que o filósofo dê à amizade um lugar central em sua principal obra sobre ética, o texto que propriamente introduz esse termo em nossa tradição.

Na observação de Comte-Sponville (1997, p. 268), em Aristóteles a falta não é a essência do desejo, ela é seu acidente ou seu sonho. A privação é o que o irrita ou é o fantasma que ele inventa para si. O amor que tem tudo o que deseja é diferente de Eros, pois

Philia só deseja o que existe.

Um exemplo desse amor é o de um pai que só é pai quando tem um filho. Quando um pai ama o filho é porque ele não lhe falta. Quando o amava antes, o desejava, tinha paixão em gerar. Mas quando o filho vem, não deixará de amá-lo. Passar do amor ao filho sonhado ao amor ao filho real é passar do amor Eros ao amor Philia que não acaba quando se tem o objeto. Não há amor ao filho real se não houver um luto pelo filho imaginário. Quando o pai deseja o futuro de um filho, eis o pai no terreno da paixão! Nós amamos nossos filhos porque nos amamos através deles. O amor a si é primeiro, a amizade é sua projeção/extensão.

Comte-Sponville (1997, p. 274) faz mais algumas diferenciações entre Eros e Philia dizendo que amar o que falta está ao alcance de todos, enquanto amar os amigos que não faltam, os que nos fazem bem ou os que nos amam, é mais difícil, mas parece possível. O desafio está em vencer as limitações do amor de Eros e de Philia e amar independente dos objetos. É possível amar os inimigos, os indiferentes e o que não nos alegram?

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 149-152)