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A reciclagem como objecto de estudo e de intervenção

A questão da separação de lixos para reciclagem na esfera doméstica é o ponto de partida para esta tese e, por isso, é importante tratar o levantamento bibliográfico dos vários estudos que se dedicam à problemática da mudança de comportamento dos indivíduos que a prática da separação para reciclagem implica.

Foi em países desenvolvidos e com um PIB elevado que o problema do excesso de resíduos urbanos e as dificuldades de implementação de soluções de gestão e tratamento se colocaram inicialmente. É nesse contexto que surgem estudos que analisam a participação da população em programas de reciclagem e que procuram identificar os factores mais relevantes para a adesão à separação, o que implicava uma mudança nos comportamentos instalados.

Os primeiros estudos que abordam a questão social da reciclagem, datam dos anos 70 e prolongam-se pelas décadas seguintes, sendo desenvolvidos especialmente no âmbito da Psicologia Social, nos EUA. São estudos que colocam o seu foco de análise nas questões articuladas à identificação dos factores que influenciam o comportamento, numa lógica de causa-efeito, onde se enquadram os modelos cognitivos, referidos noutros pontos deste trabalho.

Estes primeiros estudos referem-se a programas de reciclagem de papel e analisam os efeitos da proximidade dos contentores e das recompensas relativamente ao sucesso medido em termos de adesão da população a esses programas (Reid et alia, 1976; Witmer e Geller, 1976; Humphrey et alia, 1977; Luyben e Bailey, 1979)7.

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Estes estudos citados in Derksen e Gartrell, 1993, são publicados sobretudo na revista Environment and Behavior e também no Journal of Applied Behavior Analysis, clarificando a predominância da Psicologia Social e da Psicologia Ambiental no arranque de estudos académicos sobre esta temática, articulados à implementação

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Durante as duas décadas seguintes, as publicações de estudos sobre esta temática multiplicam-se, procurando identificar e colocar em evidência os principais factores que determinam, motivam ou constituem barreiras à adesão à reciclagem, quase sempre enquadrados em momentos de avaliação de programas de reciclagem (Jacobs e Bailey, 1982; DeYoung, 1990; Simmons e Widmar, 19908; Hopper e Nielsen, 1991; Derksen e Gartell, 1993; Shultz et alia, 1995; Porter, Leeming e Dwyer, 1995; Gardner e Stern, 1996; Tucker, 1999)9.

Vários são os factores apresentados (e testados) nestes estudos como, por exemplo, a aplicação de incentivos e/ou penalizações; o envolvimento de líderes locais e da comunidade; a elaboração e distribuição de informação; o efeito de campanhas de informação através de diversos meios; o impacto do feedback dos resultados à população participante; o papel desempenhado pelas condições logísticas objectivas, nomeadamente a existência e o tipo de infraestruturas disponíveis (destacando as revisões sobre o tema de Porter et alia, 1995; Gonçalves e Paínho, 1998; Barr, 2002)10.

Mais recentemente, no âmbito disciplinar da Geografia, destaca-se o trabalho de Barr (2002) e Barr et alia. (2003). Na sua revisão de literatura (Barr, 2002) distingue três grandes grupos de variáveis envolvidas no que diz respeito ao comportamento ambiental em geral, e que se podem aplicar à questão específica dos resíduos: valores ambientais, factores situacionais e variáveis psicológicas.

As que dizem respeito aos valores ambientais estão articuladas aos estudos de escalas quantitativas de valores onde se localizam os estudos pioneiros de Dunlap e van Liere (1978) e mais recentemente Dunlap, van Liere, Merting e Jones (2000), o esquema de valores ecocêntricos-tecnocêntricos de O'Riordan (1985) e ainda o trabalho desenvolvido por Thompson e Barton (1994) sobre as atitudes ecocêntricas e antropocêntricas em relação ao ambiente (referências in Barr, 2002).

Quanto aos factores situacionais, que dizem respeito a variáveis da situação em que a pessoa se encontra e que constituem os contextos mais ou menos favoráveis ao comportamento

de programas de política pública que envolvem a participação da população. Estes trabalhos coincidem com a emergência da Sociologia do Ambiente, com as primeiras publicações de Catton e Dunlap (1978, 1979) onde propõem o NEP - New Ecological Paradigm – que se distingue do paradigma anterior (HEP) pela sua visão ecocêntrica, a que faço referência no Capitulo I.

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Estudos citados in Derksen e Gartrell, 1993.

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Estes estudos são sobretudo publicados em revistas como Environment and Behavior; Journal of Environmental Psychology; Journal of Environmental Systems, continuando a ser notório a predominância da Psicologia Social e Ambiental.

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No levantamento também se encontram trabalhos que se dedicam especificamente a diferenciar perfis de recicladores e não recicladores (DeYoung, 1988; Vining e Ebreo, 1990 in Derksen e Gartrell, 1993).

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ambiental, em geral, e a separação doméstica do lixo para a reciclagem, em particular, destaca-se o acesso a infraestruturas e serviços adequados no sentido da sua “conveniência” (Derksen e Gartell, 1993; Gardner e Stern, 1996) ou factores sócio-demograficos como a idade, género, escolaridade, rendimento (Shultz et alia, 1995), ou ainda a influência no comportamento do grau de informação, conhecimento e experiência dos indivíduos (Daneshvary et alia, 1998 in Barr, 2001). Por fim, as variáveis psicológicas, incluem factores de personalidade altruísta (Hopper e Nielsen, 1991 in Barr, 2002) ou a motivação intrínseca para agir, como a satisfação que advém de certo comportamento (DeYoung, 1986).

Barr identifica na sua revisão outras variáveis, como a criação de normas de conduta subjectiva que tem um efeito de pressão social para agir de acordo com essa norma, tendo a reciclagem essa potencialidade. Outra questão envolvida no comportamento ambiental da reciclagem está relacionada com a percepção de uma ameaça ambiental que é preciso combater de forma eficaz; as pessoas acreditam (ou não) que a sua acção individual vai fazer a diferença na solução e a sua capacidade de agir terá de ser um factor a ter em conta na questão da adesão à reciclagem (Tucker, 1999). Por fim, faz referência a factores de cidadania que se relacionam com a procura de equilíbrio entre os direitos do ambiente e as responsabilidades ambientais dos cidadãos.

A investigação desenvolvida por Barr apresenta um modelo global, que se apresenta de seguida, com uma perspectiva sobre os valores, atitudes e o contexto da situação em relação ao lixo, em que se identificam os factores que mais influenciam os comportamentos de gestão de lixo nos agregados familiares, com base em estudos realizados em locais específicos em Inglaterra. Por se tratar de um trabalho mais recente (pós 2000) e enquadrado nas medidas políticas da União Europeia, numa altura em que também Portugal procurava desenvolver processos de implementação de reciclagem no cumprimento de metas nacionais explícitas no seu Plano Estratégico para o Resíduos Sólidos Urbanos (1997), pareceu oportuno apresentar com mais detalhe o trabalho desenvolvido por Barr, que no fundo é uma aplicação de um conjunto de conhecimentos nesta área que vem a ser desenvolvida desde os anos 70.

É precisamente num contexto de metas de políticas públicas ambiciosas, no que diz respeito à reciclagem de resíduos urbanos, balizadas por compromissos europeus, que Barr desenvolve a sua investigação. O ponto que se destaca, e que é de uma importância essencial, é que o alcançar dessas metas de reciclagem está dependente da decisão dos agregados familiares, de aderirem ou não ao sistema de recolha selectiva. Há aqui uma componente de “voluntarismo” e de cidadania com que os políticos estão a contar para que as metas nacionais e comunitárias sejam alcançadas, em termos de compromissos internacionais. Não se trata de algo que

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dependa de um controlo técnico e mecânico para ser alcançado, mas sim da vontade das populações. E isso é algo complexo e não garantido. E, nesse sentido, tanto a investigação académica, como a que tem um carácter de intervenção e operacional podem contribuir para a tomada de decisão politica relativamente a soluções, apresentando uma base de trabalho para as autoridades locais.

“Although the role of service provision is evidently vital, it is argued that many more factors are involved in the decision to recycle and that understanding these factors could increase recycling considerably more than at present. In essence, there needs to be a move towards a more intrincate understanding of values, attitudes, contexts and personal factors that influence recycling behavior.”(Barr et alia, 2003:408).

Os resultados principais apontam e reforçam a importância de infra-estruturas e sistemas de recolha adequados e facilitadores da participação dos agregados. Mas outros factores influenciam as suas atitudes e comportamentos em relação à reciclagem, incluindo a sua aceitação e percepção dos benefícios e problemas da reciclagem, como um todo.

De uma forma sucinta, os resultados do trabalho de Barr e da sua equipa são baseados numa combinação de dados qualitativos e quantitativos, que se enriquecem mutuamente e que permitem a criação do modelo que propõe.

As análises estatísticas revelam que a relação mais forte é entre intenção e comportamento e apontam para o facto de variáveis relativas aos valores ambientais terem pouco efeito, de apenas três variáveis situacionais serem importantes e de que nenhuma sócio-demografica ou baseada na experiência parece ter algum peso significativo. O acesso ao ecoponto tem grande impacto, assim como o conhecimento sobre os serviços locais de reciclagem, mostrando o efeito do conhecimento no comportamento.

Em termos das variáveis psicológicas, realça-se o efeito da aceitação da norma de reciclar ou pelo menos de estar consciente dessa norma; é observável o efeito, directo ou indirecto, na intenção e no comportamento, de ter a noção dos hábitos dos outros em relação à reciclagem e aceitar estes hábitos como norma. O efeito da percepção de conveniência do contentor e da facilidade da prática espelha-se numa maior frequência da prática. Por fim, também se verifica o efeito normativo naqueles que estão mais preocupados com o estado do ambiente de uma forma mais activa e envolvida, que junta a obrigação moral de reciclar, responsabilidade e preocupação com assuntos relativos ao lixo).

Neste conjunto de resultados, as normas subjectivas apresentam um forte peso, com uma ligação às percepções de conhecimento e conveniência, que não se vêem tão importantes na Figura II.2., mas que estudos qualitativos podem revelar.

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Figura II.2 Diagrama do trajecto do comportamento da reciclagem

Fonte: Barr et alia, 2003:413

A opção por apresentar este quadro síntese de resultados de dados quantitativos, que no fundo sintetiza um conjunto de variáveis que ao longo do tempo têm sido estudas isoladas ou em diferentes combinações, prende-se com o facto de nele não surgirem nem o espaço público (no que diz respeito à sua qualidade e estado de limpeza) nem a satisfação residencial, sendo estas variáveis que no caso português têm vindo a destacar-se e às quais se dá um relevo especial no contexto deste trabalho (Schmidt e Martins (coord.), 2006, 2007; Schmidt e Valente, 2009).

As principais conclusões de Barr, Ford e Gilg (2003) apontam para a existência de indicadores preditores, que podem ser levados em conta pelos decisores e prestadores de serviços, já que reciclar pode ser caracterizado como um comportamento bem definido e estruturado a partir do entendimento sobre os serviços de reciclagem locais, acessibilidade a ecopontos, uma percepção positiva da conveniência de reciclar e, ainda, uma consciência e aceitação da reciclagem como uma norma de comportamento. Acresce ainda que as pessoas estão mais dispostas a reciclarem se estiverem preocupadas com problemas do lixo e se tiverem uma casa grande. Todos estes factores podem ser alvo de uma investigação aprofundada qualitativa que contextualiza a reciclagem em termos locais e culturais, mas o

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modelo é um quadro base de referência para os políticos (Figura II.3).

Figura II.3 - Enquadramento conceptual da pesquisa de Barr et alia

Fonte: Barr et alia, 2003: 411

“This approach can provide an effective and low-cost means of finding the information so often needed for policy-makers to make informed decisions at a local level that will affect local people. (…) The framework approach as outlined above provides a clear and holistic representation of human action that can be conceptualised at both a general and local level by quantitative and qualitative techniques.” (Barr et alia, 2003:418).

Em suma, no conjunto dos estudos desenvolvidos em torno dos comportamentos face à

reciclagem e à pesquisa de Barr, em particular, reconhece-se a importância de demonstrarem como os contextos físicos, nomeadamente o acesso a infra-estruturas de reciclagem, tanto no espaço público como no espaço doméstico, são relevantes para as práticas da separação, assim como um conjunto de factores sociais como as normas partilhadas, a gestão do tempo, o conhecimento sobre os serviços disponíveis, entre outros, são pontos críticos para os comportamentos em relação à reciclagem.

A esta abordagem contrapõem-se, recorro aos estudos que têm vindo a ser desenvolvidos no âmbito da Teoria das Práticas, que aplicam uma lógica de investigação bottom-up, isto é, partir das práticas e do que as compõe, não seguindo a lógica da atitude política top-down, na

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perspectiva da investigação, sobre um comportamento-guiado para a reciclagem.

Mas, no fundo, partem de tudo o que foi realizado, identificando os pontos que escaparam nestas abordagens, que se baseiam mais no comportamento individual e nas influências que o afectam, através da proposta num enfoque alternativo que se centra nas práticas. A conjugação de todos estes conhecimentos que se têm vindo a acumular é o que me parece mais interessante de reter para o presente trabalho.

Assim, para além de ter em consideração vários factores que influem nas predisposições para a separação, são pontos de partida na presente tese, outros factores que não foram alvo de atenção neste tipo de estudos. Nomeadamente, uma atenção analítica sobre os contextos sociais e espaciais dos locais da vivência quotidiana, o sentimento de satisfação residencial, a relação entre a população e entidades locais, o impacto da implementação de políticas no espaço público, nas rotinas e nas casas das pessoas – tudo questões levantadas ao longo do desenvolvimento do projecto Separa® (2006-2009), apresentado com mais detalhe noutro capítulo.