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Os espaços quotidianos das interacções

I.2. Orientações da Sociologia do Quotidiano para uma investigação no terreno para práticas

I.2.5. Os espaços quotidianos das interacções

Para além do “alcance efectivo”, para além das diferentes temporalidades do quotidiano, para além do tempo que corre, do tempo que se repete, do tempo que se lembra..., também o espaço é um cenário imprescindível para a acção, para as práticas. Sem paisagem não há passagem nem de tempo, nem de actores... (o espaço como dimensão de base, o palco). A mesma paisagem, o mesmo tema, também muda, com a luz, com as estações, com o tipo de pessoas e objectos presentes e passageiros. Isto é, tal como há vários “tempos”, também o espaço não é uma categoria homogénea e estática, existindo uma dispersão espacial que se pode diferenciar, por exemplo, entre “centro” e “periferia” (Balandier in Pais, 2009: 91), em que o “centro” é o lugar de relações de forte intensidade, quotidianamente vividas, duráveis como por exemplo, a casa, à qual se associa um afecto ao espaço e à maneira de viver o presente nos variados gestos do quotidiano; por contraste, por “periferia” entende-se a envolvente mais distante em relação a esse centro.

O quotidiano aparece, portanto, definido em termos de limites espaciais. E ao mesmo tempo, o espaço é uma constelação de espaços, no sentido em que “o que tem importância social não é o espaço, mas as vivências sociais que nele decorrem e que o convertem de um vazio em algo com significado sociológico.” (Pais, 2009: 91-92).

No seu modelo dramatúrgico, Goffman sugeriu que grande parte da vida social se pode dividir em ‘regiões da fachada’ – encontros de actores em cena desempenhando papéis formais – e as ‘regiões de retaguarda’ – bastidores onde os actores se preparam para os encontros na região da frente, como uma região de descanso de certos papeis de fachada que lhe exigem um desempenho mais exigente e sem necessidade de dissimulações, porque vedada à audiência, através de barreiras e vias de acesso reservadas. Os bastidores também são um lugar onde se armazenam os acessórios e elementos que se usam na fachada.

A fachada pessoal é o “equipamento expressivo de tipo padronizado empregue intencionalmente ou inconscientemente pelo indivíduo durante o seu desempenho” (Goffman, 1993:34). É uma fachada móvel, na medida em que a aparência e modo acompanham o actor

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Por seu turno, o cenário é um elemento mais constante e imóvel da fachada, um lugar geográfico demarcado, onde existem um conjunto de dispositivos cénicos manipuláveis. A interacção passa-se portanto numa região - “todo o lugar de algum modo limitado por barreiras à percepção” (Goffman, 1993:129) - à qual se somam limites temporais determinados.

A vida social está dividida em zonas de tempo-espaço e uma casa é um bom exemplo para mostrar a diferença entre várias ‘regiões’, em particular, a ‘região da frente’, a fachada e a ‘região de retaguarda’, os bastidores. “Em todas as classes da nossa sociedade existe a tendência para se estabelecer uma linha divisória entre a fachada e as traseiras na configuração exterior das casas de habitação. A fachada tende a ser relativamente bem arranjada, decorada e arrumada; as traseiras tendem a ser relativamente pouco atraentes.” (Goffman, 1993:148).

A região da fachada é uma região de exposição da acção, enquanto a região dos bastidores é onde reaparecem os aspectos suprimidos da fachada. São as coisas que vão para as garagens, caves, sótãos, porque já não ficam bem, não são adequadas à impressão que se pretende projectar no cenário quotidiano vivido da casa. Também o lixo tem o seu lugar, mais resguardado e quase sempre na parte de trás, numa zona não exposta. Mesmo quando na zona da frente, está dissimulado (Goffman, 1963).

“Podemos verificar, nas comunidades de agricultores, como o estábulo dos animais, situado outrora nos bastidores da cozinha e ligado a esta por uma pequena porta junto ao fogão, acabou por ser colocado a uma certa distância de casa, e como a própria casa, anteriormente deixada ao desabrigo no meio do jardim, dos equipamentos da lavoura, do lixo e do feno, se orienta agora, de certo modo, segundo uma lógica de relações públicas, com um pátio fronteiro cercado e mantido em condições de relativa limpeza, ostentando uma face composta voltada para a comunidade, enquanto os entulhos se amontoam ao acaso na região das traseiras.” (Goffman, 1993:289).

Outro exemplo ilustrativo da diferenciação de regiões é um centro comercial, cujo corredor central iluminado e brilhante de acesso público, rodeado de montras, as fachadas das lojas, no sentido literal. Dentro das lojas encontramos portas de acesso reservado, restrito apenas a quem faz parte da equipa que trabalha no centro. Para lá dessa porta, que por vezes se consegue vislumbrar com a passagem de alguém a quem é permitido aceder, percebe-se uma luz mais apagada, uma zona mais escurecida de armazém de stocks e também de lixo, com menos preocupações estéticas. Corresponde a um conjunto de actividades que são

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dissimuladas ao público, mas que estão paredes-meias com a fachada.

Continuando em torno do exemplo das regiões duma casa, para além desta diferenciação dicotómica, distinguem-se pelo seu uso diferenciado, seja no tempo (ao longo do dia), seja com interacções específicas (diferentes actores e papéis desempenhados). Às suas divisões estão atribuídas funções específicas como dormir no quarto ou no sofá, comer na cozinha ou na sala de jantar, brincar no quarto ou no quintal, ler na sala ou no quarto, receber vistas na sala, estender roupa nas traseiras da casa, colocar o caixote do lixo na cozinha,...). Torna-se, assim, visível como o cenário define o desempenho dos próprios actores.

Vale a pena ainda mencionar que, a diferentes papéis correspondem diferentes acessos a regiões. Os actores em desempenho acedem à fachada e aos bastidores, a audiência para quem é feito o desempenho, apenas acede à fachada e os estranhos não têm acesso a nenhuma das regiões da interacção. Mas, se assim tudo parece muito evidente, a realidade social da interacção é mais complexa e é nesse contexto que Goffman distingue um conjunto de papéis discordantes, que baralham por vezes esta “ordenação” e que criam relações inesperadas entre papel desempenhado, informação detida e regiões de acesso. O autor identifica diferentes tipos de papéis discordantes, como os de informador, de mediador, de denunciante, de especialista, de confidente, de supervisor, de cúmplice...

Na região da esfera doméstica, há que fazer uma referência especial ao papel da empregada doméstica ou “mulher a dias” que tem, pelo papel que desempenha, um acesso privilegiado aos bastidores. Apesar de ser inicialmente uma estranha, e portanto à partida sem acesso à região-residência, a sua “especialidade” profissional implica o desempenho de um papel de cúmplice em relação ao agregado familiar, contribuindo de forma cooperativa para a manutenção da fachada do agregado familiar, sendo muitas vezes parte da sua função lidar com o lixo produzido, despejando-o, fazendo-o desaparecer de cena. O seu acesso à esfera doméstica implica uma confiança cúmplice a ao mesmo tempo espera-se uma deontologia profissional marcada por uma grande discrição. Em certas circunstâncias podem mesmo ser tratadas com “não pessoas”, ou seja, como se não estivessem presentes, ignorando a sua presença (à semelhança de um empregado de mesa de um restaurante).