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O papel do espaço público e do local na estratégia metodológica

Tendo como base os objectivos acima referidos, a tese contém em si uma orientação de partida para a pesquisa que se coloca da seguinte forma: mais do que das características sociais e económicas dos indivíduos (como sexo, idade, escolaridade, classe social, condição perante o trabalho, profissão, etc.), a adesão à prática da separação de lixo depende em grande medida de dois factores que se articulam entre si: (a) da caracterização do espaço público envolvente da residência e da própria satisfação residencial; (b) da relação de confiança que se consegue estabelecer no espaço público entre instituições oficiais e cidadãos.

Parte-se um conjunto de dados obtidos no âmbito do projecto Separa®, sugerindo a importância do espaço público, não só enquanto esfera pública no sentido em que Habermas a refere em termos comunicacionais e de relação entre actores, mas também, e de forma muito

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particular, enquanto espaço público de carácter mais material e físico que constitui a envolvente do quotidiano vivenciado à escala local pela população residente (Schmidt e Valente, 2009).

No âmbito da recolha bibliográfica não foram identificadas pesquisas internacionais que coloquem com factor de adesão à prática da separação a satisfação residencial ou a relação com o espaço público que envolve a residência, no sentido em que se articula com a participação, o espírito comunitário e identitário com o local. Eventualmente estes factores prendem-se com aspectos específicos histórico-culturais da sociedade portuguesa (alguns dos quais são apresentados no IV Capítulo, onde se enquadra a questão dos resíduos no contexto nacional).

De forma breve apresenta-se a evidência do espaço público no âmbito da temática do lixo, de modo a justificar a opção metodológica que assumi em termos de escala geográfica.

O conjunto dos dados que resultam do Separa® aponta para a importância de nos focarmos no local (ou lugar) (Speller, 2005) quando se estudam percepções e práticas em relação ao lixo: o depositar do lixo é uma prática que corresponde a um foco de observação do encontro e da transição entre a esfera privada e a esfera pública, em que se assiste a uma mudança relativa à propriedade do lixo - deixa de ser de quem o produziu (privado) para ser de todos (público) (Pierre (coord.), 2002; Gollwitzer et alia, 2009).

Desde logo, o lixo destaca-se como sendo uma das questões mais transversais à escala da envolvente da residência, seja qual for o tipo sócio-económico e urbanístico (INE, 2004), sendo uma prática presente no quotidiano das pessoas, tanto na sua produção como na sua deposição. Acresce a esta importância o facto de ser um dos problemas à escala local em relação ao qual os residentes não só se revelam mais sensíveis – seja pelo cheiro, seja pelo mau aspecto – como se sentem mais capacitados para fazer a diferença; isto é, por contraste com um conjunto vasto de problemas ambientais em que as pessoas se sentem sem capacidade para intervir perante a complexidade e a distância sentida, o caso do lixo produzido na esfera doméstica apresenta-se como próximo e passível de ser alvo de uma mudança em termos de práticas que está ao seu alcance concretizar (Schmidt e Martins (coord.), 2006).

A importância da escala local traduz-se também quando a prática de depositar o lixo é a mais citada quando se abordam questões de vivência quotidiana com e no local. Isto é, mesmo naqueles contextos em que a vivência com o espaço envolvente da residência vai pouco além de um momento de transição do carro para a residência, depositar o lixo é por vezes a única ocasião em que certos residentes percorrem o espaço público envolvente da sua residência –

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mesmo que não ultrapasse os 100 metros – no intuito de concretizar uma prática (Schmidt e Martins (coord.), 2006).

O local afigura-se, assim, incontornável na definição da escala e estratégia metodológicas do presente projecto, justificando-se uma abordagem comparativa das percepções e práticas em relação ao lixo que tenha em conta diferentes tipos de espaços residenciais, que implicam e reflectem no quotidiano e nos estilos de vida de quem neles reside (Speller, 2005).

No sentido de operacionalizar o estudo da relevância das características do espaço residencial ao nível das práticas em relação ao lixo, em especial a prática da separação, optou-se por centrar a pesquisa no concelho de Sintra, um dos 4 concelhos que integrava o Separa®. O concelho de Sintra conta com um conjunto de características que fazem dele um contexto laboratorial único do ponto de vista sociológico para o estudo de questões ambientais e do ordenamento do território no país. Trata-se de um concelho que concentra em si mesmo património mundial, parque natural, zona costeira, subúrbios dormitório de elevada densidade populacional, zonas rurais afectadas pelo despovoamento e envelhecimento, áreas de habitação de luxo, etc. A escolha do concelho de Sintra prende-se também ao facto de assegurar uma diversidade sócio-económica e urbanística, factor que tem uma importância essencial para a análise proposta nos objectivos, sobretudo no que respeita a questão do espaço público. Esta diversidade tem como referência a Tipologia Sócio-Económica da AML, do INE (2004) a que temos vindo a fazer referência (Quadro III.1).

Quadro III.1.

Tipologias sócio-económicas Urbano

Consolidado

Núcleos habitacionais antigos: edifícios + de 50 anos. Idade média da população: + de 48 anos

(Sub)urbano Novo Núcleos habitacionais recentes junto de vias de comunicação rodo e ferroviárias, com forte dependência funcional de Lisboa, elevada densidade populacional. População em idade

activa, casais jovens com filhos, residentes recentes (- 5 anos)

(Sub)urbano Qualificado

Nível de vida acima da média, condições de habitabilidade com indicadores de conforto, habilitações académicas elevadas, ocupação sobretudo no sector terciário

(Sub)urbano Desqualificado

Junto às principais vias ferroviárias, acesso a Lisboa através de transportes públicos, primeira vaga suburbana nos anos 60, edifícios de meia-idade, má construção, em altura (+7 aloj.)

Precário Populações afectadas por processos de exclusão social, com profissões socialmente

desvalorizadas, edifícios degradados, pequena dimensão e baixos índices de conforto

Rural Edificado disperso, habitações unifamiliares, operários e trabalhadores do sector primário Fonte: INE (2004) Tipologia Sócio-Económica da Área Metropolitana de Lisboa (Censos 2001)11.

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Ainda não há uma publicação actualizada com os Censos 2011 para a Tipologia sócio-económica referida. De qualquer modo, a tipologia em si e os dados de 2001 são suficientes, como orientadores, no contexto da presente pesquisa.

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No Gráfico III.1 pode observar-se a distribuição dos diferentes tipos sócio-economicos nas freguesias do concelho de Sintra, que permitirá ajustar e garantir a diversidade na selecção dos lugares onde a pesquisa qualitativa incidirá.

Gráfico III.1.

Caracterização das Freguesias do Concelho de Sintra por tipologia sócio-económica

Fonte: INE (2004) Tipologia Sócio-Económica da Área Metropolitana de Lisboa (Censos 2001)12

Por fim, ainda gostaria de referir um elemento que se revelou bastante profícua em termos do trabalho de campo, nomeadamente o registo em de notas de observação das práticas de relação com o lixo por parte de residentes no concelho e de conversas informais que se proporcionavam ocasionalmente. Não se trata efectivamente de um “diário de campo”, mas se um “caderno de notas”(Emerson et. al., 1995).

Esta abordagem de carácter mais “etnográfico”, de terreno, tem uma componente de observação participante pelo facto de eu própria residir neste concelho, e ser também uma produtora de lixo e uma separadora que o deposita nos contentores disponíveis para o efeito; enquanto residente observo o sistema de recolha que me serve, assim como à minha vizinhança mais próxima. Acresce que sempre vivi neste concelho, ainda que em diferentes freguesias e tipologias e que, parte da minha família e amigos, também vivem no concelho de Sintra. Esta proximidade ao local tem vindo a ser capitalizada através de um olhar atento e 12 Idem. Concelho de Sintra 1 3 3 4 10 2 6 2 6 4 4 2 1 4 1 2 7 6 3 3 1 5 1 5 4 19 4 3 13 12 3 3 39 19 2 11 29 2 29 38 1 37 13 2 2 1 2 1 22 15 2 18 6 1 50 23 10 18 1 6 3 9 1 7 20 10 6 8 14 3 14 4 10 18 6 18 14 13 4 15 23 41 30 16 43 18 17 33 28 19 23 43 40 36 43 30 9 15 40 28 30 33 1 59 58 1 21 43 22 29 28 60 1 Agualva-Cacém Algueirão Mem Martins Almargem do Bispo Belas Casal de Cambra Colares Massamá Monte Abraão Montelavar Pêro Pinheiro Queluz Rio de Mouro São João das Lampas Sintra (Santa Maria e São Miguel) Sintra (São Martinho) Sintra (São Pedro de Penaferrim) Terrugem

Precário Urbano consolidado (Sub)urbano desqualificado Suburbano novo (Sub)urbano qualificado Espaços vazios Rural

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disponível para observar as práticas quotidianas de deposição do lixo privado no espaço público no seu carácter mais “invisível” e inconspícuo por ser algo muito incorporado nos gestos quotidianos, estando quase sempre ausente uma reflexividade sobre o impacto desses gestos.”