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Os limites dos modelos lineares cognitivos perante a necessidade de mudança

I.3. A perspectiva da Teoria das Práticas: uma forma de olhar o lixo

I.3.1. Os limites dos modelos lineares cognitivos perante a necessidade de mudança

Desde os anos 70, em especial na área da psicologia ambiental, tem vindo a perdurar uma abordagem que procura a identificação dos factores determinantes do comportamento humano de modo a poder direccioná-los em prol do ambiente. A reciclagem, em particular, é objecto de muitos destes trabalhos, tal como refiro noutro ponto. Estes modelos focam-se no estudo das crenças, atitudes e valores enquanto determinantes de comportamentos e por isso, têm a ambição de ser modelos capazes de prever comportamentos4. Baseiam-se na acção racional dos indivíduos, com uma visão de processo linear e directa entre valores e comportamentos, nas tomadas de decisão dos indivíduos. Destes, o modelo mais amplamente usado é o de Ajzen (1991), designado como a Teoria do Comportamento Planeado, uma extensão desenvolvida a partir da Teoria da Acção Racional, de Fishbein e Ajzen (1975).

Estes modelos, que remetem para noções de racionalidade e de planeamento no comportamento humano, são “atraentes” na medida em que tratam as atitudes (e valores, motivações, etc.) como uma “situação invariável de padrões de orientação”. Ou seja, se os componentes cognitivos necessários forem identificados e modificados, a mudança de comportamento acontecerá, em cascata, em todas as áreas que constituem um estilo de vida individual.

No sentido de colmatar o défice de informação da população em termos de ambiente e de educar as pessoas para uma eco racionalidade de atitudes, valores e crenças, várias campanhas de informação foram realizadas (Burgess et alia, 1998 e Owens, 2000). Incluem-se nesta perspectiva de acção racional dos indivíduos as intervenções de marketing social, que pretendem identificar e remover barreiras reais, ou percepcionadas, e de ajustar as mensagens a públicos-alvo bem segmentados, de forma a criar uma nova norma social, que se espera que motive os indivíduos a adoptar comportamentos ambientalmente desejáveis ou correctos (Barr, 2008).

No entanto, cada vez mais se tem vindo a reconhecer a importância do contexto social de envolvimento dos indivíduos, que muitas vezes se sobrepõe aos factores cognitivos. Quando o que está em causa é uma mudança de comportamento, a questão não se restringe apenas a mais informação e mais conhecimento. Stern (2000) é um dos autores que chama a atenção para este “efeito do contexto” sobrepondo-se ao efeito da informação.

As criticas aos modelos baseados numa lógica linear de acção racional, apontam sobretudo o facto de se tratarem de abordagens excessivamente individualistas e que falham por não

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apreciarem os efeitos das relações sociais, das infra-estruturas materiais e dos contextos em que estão inseridos e que são intrínsecos à performance/desempenho das práticas sociais. Estas críticas emergem a partir de pesquisas que mostram como o processo de tomada de decisão face à mudança não é tão individual como parece à primeira vista, remetendo para a importância dos efeitos da interacção social e reforçando a ideia de que o todo não é igual à soma das partes (Nye e Hargreaves, 2010, Shove, 2003, Southerton et alia., 2004; Spaargaren e Van Vliet, 2000).

No cenário actual, em que já se constatou que as campanhas centradas em modelos cognitivos lineares, baseados na lógica “mais informação ambiental, mais comportamentos ambientais”, não atingem os resultados politicamente esperados e ambientalmente necessários, torna-se evidente que é necessário investir em estudos que vão no sentido de compreender a gradual incorporação de vários contextos de proximidade - normas sociais, redes sociais, infra- estruturas envolventes - como variáveis no processo de mudança (Valente, 2001; Schmidt e Martins (coord.), 2006 e 2007; Schmidt e Valente, 2009; Hargreaves, 2011).

Nesta perspectiva, para que se aprofunde o conhecimento é necessário deixar cair um certo moralismo implícito num discurso ambientalmente correcto que coloca ênfase na ideia de que os comportamentos estão errados e que precisam ser corrigidos. Uma perspectiva mais prática e menos culpabilizante, em que os comportamentos se alteram ao longo do tempo histórico, pode conduzir a uma mudança mais proveitosa e profunda.

Segundo Hargreaves, a persistência de modelos lineares de correcção de comportamentos deve-se, provavelmente em parte, à resposta política relativamente directa que proporcionam, apontando a existência de um sistema montado, em que a ciência produz instrumentos para dar respostas às necessidades políticas. Talvez seja preciso por em causa este sistema de forma mais profunda.

Estas reflexões emergem de vários estudos desenvolvidos, em particular no âmbito do consumo da energia no contexto das Alterações Climáticas, como é o caso, por exemplo, do trabalho que Shove desenvolve. A autora considera que o que tem sido feito, nomeadamente numa linha de marketing ambiental, tem um conjunto de falhas de base e acaba por servir para legitimar uma série de convenções sociais insustentáveis, mais do que as desafiar e as solucionar de forma sustentável (Shove, 2003, 2004, 2010). Os factos falam por si: tudo o que tem envolvido a promoção do consumo sustentável não tem resultados em termos de redução nem de consumo, nem de lixo produzido. Uma visão que se alinha por outras vias com a perspectiva crítica à reciclagem desenvolvida por Schnaiberg (1992 e 1994).

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comportamentos, conduziu os estudos sociológicos do consumo a interessarem-se pela Teoria das Práticas, cuja abordagem encontra um crescente reconhecimento na Sociologia sobre as mudanças ambientais na vida quotidiana (Spaargaren, 2011).

Originalmente a Teoria das Práticas foi desenvolvida no contexto da Filosofia, com aprofundamentos mais recentes por Schatzki, 1996, 2001 e 2002 e Reckwitz, 2002. Na Sociologia, a referência a “práticas” (no sentido distinto de “comportamento”), encontra-se já presente em Goffman (1959) quando se refere ao conceito de “práticas de rotina” desempenhadas pelos actores. As práticas sociais são alvo de uma abordagem aprofundada e ampla por Bordieu (1972,1979 e 1990) e também em Giddens (1984), mas ainda que ambos reflictam sobre a importância das práticas, fazem-no negligenciando de alguma forma a sua materialidade, no sentido em que remetem os materiais, as infra-estruturas e os produtos que elas implicam para um segundo plano (Shove e Pantzar, 2005; Rophe, I. 2009).

Será a Alan Warde (2005) que mais recentemente se reconhece um papel crucial ao trazer esta abordagem de uma forma inovadora para os estudos do consumo, articulando-a a questões de ambiente e sustentabilidade, abordagem que desde logo cativou Shove e Pantzar (2005)5.