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Compostores em espaço privado

Por seu turno, a existência de animais domésticos, permite uma alternativa ao destino de uma parte do lixo orgânico - na maior parte dos contextos vai para o caixote do lixo do indiferenciado. Assim, apesar da tendência para a ração ser dominante na comida dos animais domésticos, sobretudo cães e gatos em zonas urbanas, os restos da comida muitas vezes vai acabar nas suas gamelas e taças.

“Cá em casa há muito pouco lixo orgânico, porque tudo o que sobra os cães ou a gata comem.” (33, integral, rural).

Na zona rural é ainda frequente, para quem têm um espaço exterior mais amplo, ter ovelhas, galinhas, patos, porcos e ovelhas, para os quais se encaminha parte do lixo orgânico da casa, ou até mesmo dos vizinhos - “os restos das cascas de fruta mando aqui para o lado para a

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horta do vizinho que tem galinhas” - e o restante vai para o composto.

Este contexto de destinos finais ainda dentro da esfera doméstica articulam-se, em grande medida, com uma atitude bastante transversal nas entrevistas em relação ao desperdício, como algo a evitar sempre que possível, havendo aqui um princípio ético latente. Para as pessoas que revelam uma maior sensibilidade a várias temáticas ambientais, a reutilização apresenta- se como uma forma de reduzir o desperdício a vários níveis.

“Eu não desperdiço nada, nem água. É engraçado que ontem dei comigo a pensar nesta história da água, que a água também é um lixo porque as pessoas deitam fora a água, as pessoas lavam os dentes com a água a correr, completamente desperdiçada na casa das pessoas e elas tratam a água como se fosse lixo ao deita-la fora. Devia ser reutilizada.”(53,separa, rural).

VI.2.1. O lixo que se reutiliza

Existe um certo imperativo social em “não desperdiçar”, “em não deitar fora coisas que

ainda estão boas”, que “podem servir para alguma coisa”. Verificou-se frequentemente, em

particular por parte de quem é separador, um ênfase na ideia de que “nada é lixo, acredito que

tudo é reaproveitável”, listando uma quantidade de formas de reutilização, ainda dentro do

espaço doméstico, desde as cápsulas de café da Nespresso – o mais recente lixo doméstico – aos frascos de vidro. Com base nas entrevistas, percebe-se uma relação frequente entre as práticas de separação e uma tendência para a diversidade de objectos sujeitos a práticas de reutilização indoor, como destino para certos objectos:

“guardo os frascos de compotas para a minha mãe” “os frascos para guardar chás”

“as garrafas de vinho nunca se deitam fora, vão para a quintinha onde fazemos vinho” “tudo o que é caixas de cartão utilizo para secar plantas”

“as caixas utilizo para voltar a encher com coisas”

“as podas de alecrim e da alfazema para aromatizar a casa”

“para mim não é lixo as caixas de madeira ali da Frutaliça, dá para arrumar qualquer coisa” “os sacos de papel costumo guardá-los”

“as caixas dos ovos, isso dá para guardar” “ papeis de embrulho, revistas, caixas de cereais”

“faço trabalhos manuais com os meus netos, quando eles estão por cá”

“ela gosta de brincar aos supermercados e usa embalagens limpas como brinquedos” “utilizo algumas garrafas para pintar e oferecer”

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Verifica-se que os frascos e as garrafas de vidro são embalagens guardadas de forma mais sistemática para reutilização, mesmo por quem não é separador. Há uma certa “nobreza” neste material que o torna bem visto como uma embalagem higiénica e que vale a pena guardar para reutilizar, em especial os frascos para compotas e conservas de vários tipos, para fazer germinados, ou as garrafas para engarrafar produções caseiras de vinho e licores, ou para colocar o azeite “da terra”.

“Há coisas que só compro vidro em vez de plástico. Tenho uma ligação estranha com o plástico, eu não compro garrafas de água por causa das temperaturas que podem apanhar, porque o plástico liberta uma dioxina qualquer, li isso em qualquer lado, e isso incomodou-me um bocado, enquanto os pacotes de leite têm aquele metal que é o suficiente para não ser libertada a dioxina. Pode ser uma ignorância enorme que eu posso pensar mas dá-me uma certa de confiança as embalagens de vidro.”(48, integral, rural qualificado).

Por seu turno, é bastante frequente, em agregados familiares com crianças com menos de 10- 12 anos, tanto os pais como os avós, recorrerem a embalagens para fazer trabalhos manuais com elas. Por vezes assumem que procuram incutir nas crianças um olhar sobre o lixo como algo que “ainda está bom”, que se pode aproveitar, para contrariar a tendência geral do

“comprar, usar e deitar fora”.

“Reaproveitamos porque fazemos imensos trabalhos cá em casa, eu e a Maria, com os mais pequenos, aqui em casa e também com uma amiga que tem um ATL. É já um hábito. (…) Acho que é importante para as próprias crianças saberem aproveitar, saberem economizar no sentido de nos tornar práticos, dá-nos uma abertura, não nos limita, dá um pouco de liberdade. A loja está fechada mas arranja-se qualquer coisa se usarem a imaginação.”(48, integral, rural qualificado).

“As embalagens de iogurte com a miudagem cá, vão para fazer pinturas ou fazemos o que chamamos modelagem de lixo. (...) para eles usarem um bocado de imaginação porque os brinquedos que os miúdos vem tudo com instruções. É uma das razões pelas quais eles gostam de brincar aqui com a avó é que vamos sempre fazer coisas diferentes...”(69, suprema, rural qualificado).

Noutros casos, são as próprias crianças que incentivam os adultos a guardar embalagens para trabalhos manuais, seja nos seus tempos livres, seja para levar para a escola.

“Quando faço trabalhos com a Mariana [5 anos] utilizo muitas vezes embalagens, às vezes ela vê no Art Attack e fica com vontade e lá vamos nós ao ecoponto amarelo buscar coisas.” (34, suprema, rural qualificado).

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“Às vezes na escola pedem alguns materiais e nessa semana guardo o que for preciso. Limpo-as e ficam ali na bancada da cozinha arrumadas para ele [filho] levar para a escola.”(41, não separa, urbano consolidado).

Ao longo das entrevistas, surgem de facto diversas referências a reutilizações indoor, revelando a capacidade interna do agregado tem de evitar deitar fora certas coisas que podem ser utilizadas de novo ou “adaptadas” criativamente para outros fins. Inclusivamente vários sites foram indicados durante as entrevistas, assim como revistas com ideias de reaproveitamento de embalagens, seja com fins decorativos, seja com fins práticos.

O lixo revela-se, assim, um material criativo, com o qual até se fazem peças “artísticas” com estatuto para serem expostas em galerias locais, como será referido mais adiante. Mas neste ponto a referência são as reutilizações dentro da esfera doméstica; isto é, coisas que “costumam” ir para o contentor do sistema de recolha, eventualmente como “lixo separado”, mas que são resgatadas desse estatuto e destino (imediato), “deixa de ser lixo a partir do

momento em que lhe dou outra funcionalidade.”.

Essa “outra funcionalidade” pode ser encontrada também fora de casa. Sobre esse tipo de reutilização outdoor, dedica-se um ponto específico sobre o “lixo que circula”, no capítulo IX.

VI.2.2. O lixo que se acumula

Por definição o lixo é aquilo que “se deita fora”, porque é inútil, já não serve, já não se usa. Mas o que se veio a constatar é que, chegando a este ponto da definição, vários dos entrevistados remetiam para uma quantidade de coisas e objectos, que apesar de já não serem usados e não terem utilidade, não tinham ido “para fora” de casa, ficando guardados, à espera de uma definição de destino.

“Lixo é tudo aquilo que já não usamos, já não vamos reutilizar e que portanto temos de tirar da nossa casa, entre aspas. Digo entre aspas porque eu acumulo muito lixo. Eu tenho dificuldade em me desfazer das coisas, em me aperceber desse prazo de validade das coisas. Os prazos de validade são prolongadíssimos comigo.”(35, integral,rural).

Contra a lógica “óbvia” do deitar fora o lixo, “guarda-se o lixo em casa”. “Eu ponho-me a

pensar, mas porque é que eu estou a guardar isto? Mesmo sem nenhuma razão guardo, não tem muita lógica. Custa-me deitar certas coisas fora.”(34,casal+filha,separa, urbano qualificado).

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Verifica-se uma tendência generalizada para a acumulação, com graus diferenciados e também dependente da tipologia do próprios espaço da casa38. Sendo o lixo considerado algo que é “desordenado” (Douglas, 1966), a tendência é retirá-lo das zonas de fachada do espaço privado, salvaguardando a sua ordem, remetendo-o para os bastidores (Goffman, 1959), cujo acesso é restrito aos elementos familiares da casa, incluindo a mulher a dias, que se torna cúmplice desse espaço fora da fachada, onde se permite alguma desordem.

“Esses dossiers de coisas da faculdade ocupavam uma parede inteira da arrecadação e nós precisávamos de espaço para por as coisas do bebé que está a chegar, para arrumar algumas cosias que não podemos ter lá em cima à vista no quarto.” (34,suprema, rural qualificado).

Os lugares onde se guarda o “lixo” dentro de casa são, portanto, habitualmente fora da vista e fechados. São lugares próprios para pôr “as coisas que não têm um sitio certo” e que estão a mais ou aqueles que não se tem tempo para seleccionar. O “sujo” é uma matéria fora do lugar e o lixo só é visível quando está no lugar errado (Thompson, 1979). E por isso, ao querer-se livrar destas coisas que são lixo por estarem no lugar errado, a acumulação nestes sítios é a tentativa de manter a ordem arranjando-lhes ou criando um lugar apropriado.

A importância do lugar (placing) das coisas que não já não se querem é bastante enfatizado por Gregson (2007), na medida em que o lugar que elas ocupam mostra o que se quer fazer com elas. Assim, as coisas que já não são usadas ou amadas ou cuidadas, têm tendência para serem colocadas e guardadas em lugares que lhes conferem invisibilidade. “Incomoda

quando vou lá a baixo à garagem e vejo que aquilo está um grande caos.”

No decorrer das entrevistas, foi frequente a referência a lugares onde se colocam coisas a que não se sabe o que fazer nem quando, mas sabem que no presente não têm lugar nem utilidade. Ficam então num lugar à parte, testemunhando-se esta necessidade humana de armazenar, pouco “racional”.

“Tenho a garagem, está repleta das tais coisas, porque tínhamos duas casas que temos a dobrar, o micro ondas a dobrar, o esquentador, os candeeiros e eu não me livrei dessas coisas. Os candeeiros já estão dados mas lá está, tenho um sitio para os guardar e não interfere no meu espaço de visão. São coisas que estão guardadas para um dia... (ri) e depois chega esse dia e depois vai para o lixo. Entretanto vão ficar lá, porque dão sempre jeito, o frigorífico já deu jeito, quando este está muito cheio ou quando temos pessoas cá. Lá em casa dos meus pais tínhamos o sotão, há sempre um sitio. É fácil acumular coisas na garagem, não se vê.” (34, não separa, rural qualificado).

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Não se está a referir à acumulação patológica dos “hoarders” (acumuladores), que são inclusivamente objecto de séries televisivas produzidas nos EUA, emitidas no canal TLC.

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