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Interacções e componentes das práticas

I.3. A perspectiva da Teoria das Práticas: uma forma de olhar o lixo

I.3.3. Interacções e componentes das práticas

Todos os autores que desenvolvem os seus trabalhos na linha da Teoria das Práticas identificaram o nível intermédio entre agência (indivíduo) e estrutura, localizando esse nível na rotina performativa do quotidiano das práticas sociais, como cozinhar, conduzir, lavar, jogar futebol...deitar o lixo fora.

Assim, acções anti ou pro-ambientais ou padrões de consumo mais ou menos sustentáveis, não são vistos como um resultado de atitudes, valores e crenças individuais constrangidas por várias barreiras contextuais, mas enquanto acções “embebidas em” e “ocorrendo como” parte das práticas sociais (Warde, 2005). A performance / desempenho de várias práticas sociais é vista como parte do cumprimento da rotina que consideram “normal” como forma de vida (Shove, 2004) e nesse enquadramento a prática de gerir o lixo dentro da esfera doméstica ou o deitar o lixo fora no contentor da rua, faz parte da rotina “normal” do dia a dia, tão normal que é dotado de um certo automatismo, e por isso, quase invisível, remetendo para as práticas de rotina de Goffman. Ao mesmo tempo, proporcionam uma segurança ontológica (Giddens,

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1997), algo com o qual se pode contar, o que constituem elemento fundamental para o dia a dia, num contexto mais amplo de riscos e incertezas (Beck, 1992).

A Teoria das Práticas enfatiza que é através das relações que estabelecem com as práticas que os indivíduos entendem o mundo à sua volta e desenvolvem um sentido do self mais ou menos coerente (Warde, 2005). Isso não significa que os indivíduos sejam passivos e fiquem à mercê das práticas, são antes agentes com competências que activamente negociam e desempenham um largo espectro de práticas do decurso da rotina “repetitiva” e dos “acontecimentos” que fazem parte do quotidiano.

Este enquadramento centrado nas práticas segundo estes autores, torna visível que conduzir a padrões de consumo pró-ambientais, não depende tanto de educar e persuadir indivíduos a tomar diferentes decisões, mas antes em transformar as próprias práticas de modo a torná-las mais sustentáveis (Southerton et alia., 2004). Ou seja, a fonte da mudança de comportamento reside do desenvolvimento das práticas em si.

O que está descrito até aqui é a base comum da Teoria das Práticas, co-existindo, no entanto, diferentes posicionamentos na abordagem ao que é uma prática. Hargreaves (2011) distingue 3 grupos de autores: os que se focam nos vários componentes ou elementos que compõem uma prática (Reckwitz, 2002, Shove e Pantzar, 2005), os que se focam nas conexões entre estes elementos (Schatzki, 2002 e Warde, 2005), e por fim, os que se focam na posição das práticas como uma ponte entre estilos de vida e os sistemas sócio-tecnológicos de provisão (Spaargaren e Van Vliet, 2000).

No caso presente, recorro ao conjunto destas abordagens às práticas na análise das entrevistas, consoante os temas a abordar, embora de forma mais sistemática à perspectiva de Shove e Pantzar (2005) que aborda as práticas por componentes, sendo considerada uma abordagem que facilita a sua aplicação do ponto de vista heurístico (Ropke, 2009 e Hargreaves, 2011). Segundo esta perspectiva, as práticas são compostas por três componentes: a material (stuff), as competências (skills) e os significados (meanings).

A componente material (ou as coisas) inclui objectos, equipamentos e corpos (partes de corpos) envolvidos no desempenhar da prática. Podem ser objectos genéricos ou específicos. O corpo, surge não apenas em relação com a componente material, semelhante a um instrumento, mas também relacionado com outras componentes incorporadas como as competências, os significados e as emoções.

As competências (skills) referem-se às capacidades e aos conhecimentos necessários para levar a cabo uma determinada prática e são frequentemente aprendidos pela experiência e formação, passando a estar incorporados no praticante. Estas competências podem ser

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codificadas em regras formais, princípios, preceitos e instruções e/ou podem estar tacitamente presentes sob a forma de know-how (aprendido através de praticar uma prática). Umas são genéricas e usadas em muitas práticas, como ler e escrever e outras são específicas. Ainda que as competências sejam em parte incorporadas pelo praticante, a perspectiva da prática implica que as competências sejam vistas como uma parte das práticas, que só manifestam a sua existência através da performance. Além disso, são competências sociais no sentido em que são partilhadas (há uma noção colectiva do que é realizar uma performance competente). Por fim, os significados (ou imagens) são o que dá sentido às actividades, para que servem, em que medida podem ser problemáticas, que emoções e entendimentos estão relacionados com elas (por exemplo, uma prática que se associa ao ambiente ou à saúde).

Estas três componentes das práticas estão integradas dinamicamente pelos praticantes através de uma performance repetida e regular que, por sua vez, também integram e ligam as práticas umas às outras. São uma configuração de elementos heterogéneos, um conjunto de actividades mentais e físicas (bodily-mental) que estão agregadas pelo material, pelo significado e pela competência.

Algumas práticas são individuais (como ler um livro) mas muitas envolvem uma determinada interacção com outros (como jogar futebol). Shove e Pantzar não incluem explicitamente esta interacção, porque se focam nos elementos e não nas actividades. No caso da presente análise, para além de considerar os elementos, considero também a importância da interacção, o que se articula como o modelo dramatúrgico de Goffman e a importância da interacção nas práticas de rotina, mas também com o sistema sócio-tecnológico (Spaargeren, 2011).

Nos estudos desenvolvidos verifica-se que as competências e as coisas materiais são coisas relativamente fáceis de questionar, mas os seus significados e as experiências pessoais são a componente mais resistente às mudanças. A experiência e a identidade dos praticantes, pontos estruturantes, oferecem um importante insigth sobre como as práticas são reproduzidas e mudadas, enfatizando as relações sociais de poder envolvidas nas práticas. “Such a conceptual shift reveals the often surprising links between seemingly unrelated practices, the surrounding material infrastructure, legal, social and power relations as central to such interventions, even if they are normally neglected, or even actively bracketed out, in conventional accounts.” (Hargreaves, 2011:95).

Em suma, a Teoria das Práticas actua como uma referência que, por um lado, articula o

quadro da Sociologia do Ambiente e a Sociologia do Quotidiano, apresentando-se como uma abordagem holística à mudança social para a sustentabilidade.

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metodologias capazes de observar o que acontece em termos da performance, o que remete para o reforço da importância de uma abordagem de carácter etnográfico no trabalho de campo realizado, o que se articula muito bem com a ênfase que a Sociologia do Quotidiano coloca nas metodologias qualitativas. Aquilo que se restringe em termos de generalização que as metodologias quantitativas convencionais permitem, abre em termos de riqueza de compreensão ao estudar a acção em contexto (Hargreaves, 2011).

Por seu turno, faço uso da proposta de Shove e Pantzar (2005) analisando as práticas do lixo através da identificação dos seus componentes: significados, competências e materiais na sua performance do quotidiano. Associo ainda na análise o conceito de interacção, seja no âmbito das práticas no quadro do agregado familiar, seja no quadro das políticas locais, identificando relações de poder na manutenção da ordem social.

Efectivamente, no âmbito das social practice-based analyses, enquanto aplicações empíricas da Teoria das Práticas, são identificáveis mais-valias para a investigação sociológica. Destaco o facto de disponibilizarem elevados níveis de (auto) reflexividade no estudo do consumo sustentável, que posso aplicar ao nível da produção-deposição de lixo sustentável, afastando- se de enquadramentos tecnocratas e moralistas de consumo sustentável (Spaargaren, 2011). Outra vantagem é relevante para a tese relativamente à questão da mudança, é a capacidade de mostrar empiricamente o modo como a ordem social é suportada pelas práticas (Reckwitz, 2002), ilustrando a relação entre práticas, poder e as relações sociais que as suportam e que asseguram que elas sejam mantidas, estabilizadas e reproduzidas (micro-política). Por implicação lógica, mudar práticas pode significar mudar a ordem social, sendo um processo que pode resultar em vencedores e vencidos. Por isso, os procedimentos instituídos de uma prática estão fortemente protegidos, deixando relativamente pouco espaço de manobra para aqueles que querem introduzir mudanças em coisas que são “dados adquiridos”, ou melhor, práticas adquiridas, como é o caso de “deitar o lixo fora”.

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II

Capítulo

Sobre as abordagens sociológicas

ao lixo e à reciclagem: alguns pontos de partida

Para além das abordagens teóricas apresentadas na capítulo anterior, que constituem as grandes linhas “mestras” que enquadram a presente tese, há também um conjunto de estudos de carácter sociológico sobre a questão do lixo e que constituem um manancial de conhecimento que se articula com o trabalho que aqui desenvolvo.

Neste capítulo começo por apresentar três estudos que ao longo do tempo têm vindo a ser reconhecidos como marcos para a abordagem sociológica ao lixo (Evans, 2011). Destaco sobretudo a obra de Mary Douglas (1984 [1966]), Purity and Danger. An analysis of the

concepts of pollution and taboo, cujos conceitos de “puro” e “impuro” se encontram na leitura

analítica de muitos dos discursos dos entrevistados. Também faço uma breve referência a Michael Thompson que escreveu Rubbish Theory. The Creation and Destruction of Value no final da década de 70 (1979) e a William Rathje and Cullen Murphy, que mais recentemente, em 1992, publicaram Rubbish! The Arqueology of Garbage.

Também são referidos um conjunto de estudos, desenvolvidos maioritariamente no contexto da Psicologia Ambiental, que abordam a questão dos factores que favorecem a adesão à reciclagem. Neste âmbito, é dado um destaque ao trabalho de Stewart Barr (2001 e 2002), enquadrado na Geografia.

Três estudos são alvo de um maior relevo, nomeadamente as pesquisas de Heather Chappels e Elizabeth Shove (1999), de Nicky Gregson (2007) e de Tom Hargreaves (2011), autores implicados na perspectiva da Teoria das Práticas. Tratam-se de estudos que acompanharam o processo de desenvolvimento deste trabalho, tanto ao longo do trabalho de campo, como na análise do material recolhido através da observação directa e das entrevistas.