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Afinal, o que são as Práticas?

I.3. A perspectiva da Teoria das Práticas: uma forma de olhar o lixo

I.3.2. Afinal, o que são as Práticas?

A palavra “Prática” vem do grego prakliké, que significa “a arte de fazer uma coisa”; no Dicionário da Língua Portuguesa (Porto Editora) é definida como “actividade que visa a obtenção de resultados concretos; aplicação de regras e dos princípios de uma arte ou ciência; forma habitual de agir; procedimento”. A Teoria das Práticas acrescenta que se pode ver as práticas como “entidades culturais” que dão forma às percepções, interpretações e acções dos indivíduos (Schatzki, 1996 e 2002); e/ou como “performance”, em que é através da repetição da performance que a prática é sustentada (Shove e Pantzar, 2005; Warde, 2005).

Enquanto a abordagem convencional dos modelos lineares referidos pára no nível cognitivo do indivíduo, a abordagem sociológica às práticas vai até ao “fazer”. E, em vez dos indivíduos (experiência individual) que as realizam ou das estruturas sociais que os rodeiam, a prática em si passa a ser a unidade de análise por excelência.

Aqui o foco de análise deixa de estar nas atitudes e escolhas individuais e passa a estar nas práticas e na sua vida social: como nasce uma prática, como se reproduz, como se mantém, como estabiliza, como desaparece e morre. Há uma espécie de biografia ou carreira das

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Aliás, Shove (2010) e a sua equipa têm vindo a desenvolver um programa de investigação com vários estudos empíricos em torno do consumo, com a aplicação da Teoria das Práticas (Universidade de Lancaster, Reino Unido).

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práticas, que acompanha os trajectos de vida das pessoas.

É portanto uma perspectiva analítica que faz um “reverse”, no sentido em que coloca as práticas a recrutar praticantes/indivíduos (que entram em contacto com diferentes práticas ao longo da sua vida) e observa a forma como fazem esse recrutamento, como se mantêm e fortalecem através da performance continuada desses praticantes. Os indivíduos são assim retirados do centro do palco de análise e passam a ser as “carreiras” das práticas sociais, que desempenham diferentes actividades e tarefas que a prática requer (Reckwitz, 2002).

Esta abordagem à prática em si mesma, aos seus componentes e às interacções que estabelece com outras práticas permite perceber como os praticantes são encorajados a optar por práticas mais sustentáveis, quais as que tem maior capacidade de recrutar, de atrair praticantes e serem mais competitivas no “mercado” das práticas. Sabendo que os recursos (tempo, espaço, dinheiro) dos praticantes é limitado, portanto não sendo possível ser praticante de todas as práticas disponíveis para praticar, as práticas competem entre si para ter praticantes que lhes dão existência, que as mantêm vivas.

No âmbito do estudo da mudança social, a Teoria das Práticas enfrenta o desafio de compreender como novas práticas (como “entidades”) podem acontecer, fazendo a substituição de outras já bem estabelecidas práticas (como “performance”). É inovador, ao fazer o “reverse”, colocando a prática no centro da análise, e ao analisar a criação de padrões de consumo sustentáveis numa visão holística sobre a vida de uma prática - como emerge, estabiliza e desaparece - de acordo com as ligações estabelecidas ou quebradas entre elementos (Pantzar e Shove, 2006).

A forma como o faz é tornar visíveis aspectos mundanos e triviais, que não têm a ver com o ambiente, mas com a prática considerada “normal” no dia-a-dia, aspectos que não chamam a atenção, nem são perceptíveis – os aspectos inconspícuos – que têm a ver com a prática considerada “normal” (rotina) do quotidiano, questionando-os. Isto é, torna a prática visível através dela própria, enquanto performance e do que a compõe, transferindo o foco da atenção dos momentos da tomada de decisão individual para o “fazer” certas práticas, revelando o consumo inconspícuo que encarnam (Shove e Warde, 2002), tal como acontece na produção- deposição de lixo doméstico no quotidiano, acrescentaria eu.

Para além da centralidade que a prática adquire, a Teoria das Práticas oferece também uma perspectiva mais holística e enraizada sobre os processos de mudança de comportamentos tal como ocorrem in situ – sítio, situação, local, espaço, cenário – o que só por si abre o espectro de possibilidades de mudança de comportamentos, para além e aquém das atitudes e valores dos indivíduos, que é um foco demasiado estreito para capturar tudo o que está envolvido

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Revaloriza-se a importância do contexto, aliás, também um elemento central na abordagem da Sociologia do Quotidiano e do Ambiente, assim como transcende a divisão clássica das metodologias entre sistémicas e individualistas, articulando o micro e o macro, ainda que em vez de se encontrar esse ponto no quotidiano, localiza-o na prática em si.

A análise do processo de mudança de comportamentos/práticas tal como ele ocorre num sítio específico, revela muito mais aspectos e complexidades da vida quotidiana, que outras abordagens utilizadas não conseguem captar. É no contexto de insuficiência dos modelos cognitivos, que a Teoria das Práticas oferece uma conceptualização mais ampla a holística ao “assistir em directo” à mudança através da sua aplicação em social practice-based analysis, o que enfatiza a necessidade de desenvolver um maior entendimento do papel das interacções sociais e das relações de poder no enraizamento/incorporação da performance das práticas (Hargreaves, 2011).

Trata-se de uma abordagem que de forma profunda revela as dificuldades que surgem perante a mudança de práticas, as quais têm implicações e impactos no dia a dia normal de uma organização - por exemplo, num agregado familiar - e nas interacções que aí se estabelecem. A importância atribuída às interacções quotidianas e às rotinas nesta abordagem, vai ao encontro dos pressupostos do Interaccionismo Simbólico e do modelo dramatúrgico de Goffman, que são relevantes no âmbito do presente trabalho.