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I.2. Orientações da Sociologia do Quotidiano para uma investigação no terreno para práticas

I.2.2. Uma sociologia compreensiva

A Sociologia do Quotidiano tem como matéria-prima do conhecimento sociológico a experiência subjectiva de como as pessoas experimentam o mundo nas suas interacções e o interesse em desvendar a realidade social através das suas lógicas sociais e simbólicas, no seu quotidiano. Isto é, compreender os contextos de intersubjectividade do dia a dia nos quais as interpretações do senso comum têm lugar.

A abordagem da Sociologia do Quotidiano é fundamentalmente compreensiva, no sentido de Weber, em que o conhecimento sociológico assenta na compreensão do significado subjectivo da acção social.

É neste âmbito que a Fenomenologia, através de Schutz (1964), propõe um modelo de “interpretação subjectiva”, ou seja, de interpretação do senso comum. Os significados subjectivos da acção social devem constituir pontos de referência básico para a leitura sociológica do quotidiano, ou seja, os fenómenos objectivos devem ser vistos à luz da subjectividade dos actores sociais, das suas atitudes, desejos ou definições da situação. Procura-se compreender a situação social tal como aparece a quem a vive.

A Fenomenologia é uma das principais correntes teóricas que influenciam a análise sociológica da vida quotidiana. A Etnometodologia, desenvolvida por Garfinkel, em 1967 (1984) está dentro desta linha, estudando os “métodos” que o senso comum usa e cria para entender os outros e o mundo; o chamado “bom senso popular” é um mecanismo estruturador da sociedade. A linguagem é considerada a base e instrumento da construção social da

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realidade, por isso há um enfoque na análise da conversação (banal).

Para a Etnomedologia o objectivo é dar conta do sentido que as pessoas dão aos seus afazeres quotidianos e porque é que se comportam segundo modos socialmente aceitáveis. O seu paradigma dominante é “um paradigma interpretativo que convida a apreender a realidade social atrás dos olhos do actor, isto é, a analisar as práticas e os modos como os indivíduos constroem a estabilidade do seu mundo social, ao mesmo tempo que o fazem descritível, observável, objecto de informação. O importante para a etnometodologia não é partir de categorias de valores pré-constituídos em relação à realidade da vida quotidiana, mas o descobrimento do universo categorial dessa própria realidade por meio de métodos tão elementares como a própria linguagem do senso comum.” (Pais, 2009:100).

Também o Formalismo e o Interaccionismo Simbólico são correntes que antecedem e com uma forte influência na Sociologia do Quotidiano. Em todas encontramos a abordagem compreensiva e de proximidade aos actores sociais e à sua realidade social vivida.

Simmel, Balandier e Maffesoli são autores que se enquadram na linha do Formalismo (ou formismo). Perspectivam o quotidiano como uma “forma”, em grande parte composta de teatralidade e superficialidade, e o seu estudo passa precisamente pela observação do jogo das formas sociais – as aparências - que lhe estão associadas, em que o que existe é o que parece existir. Tanto a chamada realidade como a aparência são reais nos seus efeitos. Realça-se a polissemia do gesto (forma), no sentido em que o gesto quotidiano está carregado de simbolismo.

Por fim, referimos o Interaccionismo Simbólico, corrente que assume Goffman com um protagonismo decisivo. A expressão “interaccionismo simbólico” data de 1937 (Blumer, 1969), sendo autores como Simmel [1917] e G. H. Mead [1934] (Boudon et alia, 1989), que servem de referência primordial a esta corrente, por considerarem o fenómeno social mais importante precisamente a acção recíproca entre as pessoas e os sinais que a tornam possível. Não meramente reactivo ao meio envolvente, o comportamento humano é visto como um processo interactivo e criativo desse mesmo meio envolvente. O interaccionismo simbólico realça a importância que a interacção social tem na aprendizagem dos significados e símbolos e no processo de socialização que torna estes partilhados por uma comunidade/cultura. Realça também o facto de as pessoas terem capacidade de modificar ou alterar os significados e símbolos que usam nas interacções, interpretando as situações em que estão envolvidos. Desde Simmel que o tema do quotidiano interessou correntes de pensamento social diversas, em especial a Escola de Chicago, ou a fenomenologia, que remete para os modos de construção da realidade social. Mas será a obra de Goffman sobre a encenação da vida

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quotidiana que consolida o interaccionismo simbólico e, no caso desta tese, se assume como uma referência inspiradora para a análise dos dados empíricos.

É frequente encontrar críticas à abordagem do interaccionismo simbólico por marginalizar excessivamente o papel das estruturas e das organizações sociais. Essa influência sobre a acção social faz-se sentir na medida em que configuram as situações de interacções entre indivíduos e proporcionariam conjuntos de símbolos que aqueles utilizam para interpretar mundos de intersubjectividade. O interaccionismo é muitas vezes apresentado como uma abordagem que, ao privilegiar a subjectividade dos actores, secundariza dimensões de outras abordagens macrossociológicas como a história, os sistemas de produção, as classes sociais. No entanto, alguns autores consideram muitas destas críticas a Goffman injustas, no sentido em que ele fez uma escolha analítica (e justificou a sua escolha), o que necessariamente implica deixar um conjunto de dimensões fora da análise. Ou seja, ao centrar-se nas interacções – no estudo dos encontros sociais - e nos seus ritos, diferencia-se de abordagens mais concentradas na complexidade global do sistema social.

“A dimensão “microssociológica” das unidades analíticas goffmanianas não é, afinal, incompatível com a dimensão mais ampla das estruturas sociais e com a apreensão das normas e estruturas que pautam, ao nível macro, as interacções sociais (…). O sentido global do pensamento goffmaniano e de uma boa parte da sociologia interaccionista parece ser precisamente o de explicitar a natureza social daqueles aspectos que normalmente são considerados como espaços livres de expressão individual, correntemente tomados como os mais espontâneos, os menos convencionais e menos sujeitos a controlo. Contudo, mesmo os aspectos mais banais da vida quotidiana [como deitar o lixo fora] mostram a existência de um controlo social informal, mecanismos de difusão de sociabilidade que expressam a sua natureza profundamente reguladora. Descobrir as normas que modelam as interacções sociais não significa descobrir na vida quotidiana os próprios vínculos sociais? Por detrás da precariedade desses resíduos do quotidiano e da labilidade desses fragmentos da vida social é ou não possível descobrir a estabilidade das convenções que estruturam de forma decisiva a organização social?” (Pais, 2009:119-120).