• Nenhum resultado encontrado

Equipas e práticas de rotinas

I.2. Orientações da Sociologia do Quotidiano para uma investigação no terreno para práticas

I.2.6. Equipas e práticas de rotinas

Por fim, gostaria de referir um outro conceito de Goffman, que articulo na análise – a “equipa de desempenho” – definida como um conjunto de indivíduos que cooperam na encenação de uma prática de rotina determinada.

38

desempenho’ é a unidade fundamental da análise, ou seja, propõe que a interacção possa ser analisada em termos de esforço cooperativo dos seus participantes na salvaguardada de um consenso funcional. Os indivíduos de uma mesma equipa encontram-se em relações significativas uns com os outros, havendo simultaneamente um vínculo de dependência e familiaridade recíprocas, num imaginário do lema d' Os Três Mosqueteiros - “um por todos e todos por um”.

A credibilidade, a confiança e o apoio mútuo são valores importantes numa equipa, ainda que por vezes a familiaridade forçada, conduza a situações de conflito, que será necessário gerir de modo a salvaguardar o desempenho da equipa. Por vezes, a linha adoptada não é a mais simpática para todos os membros da equipa, mas a lealdade do indivíduo à sua equipa reforça essa linha de actuação. No entanto, quando surge uma nota dissonante, um desacordo manifesto dentro da equipa, um erro cometido por um dos seus membros, é preciso resolver, é preciso corrigir, para salvaguarda da linha de actuação, que é o bem comum. Essa correcção é feita de forma mais ou menos reservada relativamente à audiência, preferencialmente de um modo que não enfraqueça a (imagem de) unidade da equipa. Os modos operandis das rotinas do “como deve ser” implica o reconhecimento de uma autoridade sobre o desempenho.

Dentro da dinâmica de uma equipa, por vezes encontra-se o desempenho do papel de supervisor-treinador - membros que ensinam a desempenhar um determinado papel nos bastidores e depois avaliam o desempenho na fachada - sendo precisamente os que acabam por salvaguardar as situações de deslize, corrigindo erros, gerindo conflitos.

O encenador vai, sempre que necessário, levar a cabo processos de emenda, seja através de uma intervenção tranquilizadora, seja através de uma sanção. Quando é reconhecida a legitimidade da decisão, a sua implementação é facilitada. A questão da informação também assume um lugar decisivo no desempenho: “Negar a um companheiro de equipa a informação a respeito da posição que a equipa vai tomar equivale, de facto, a negar-lhe a qualidade de membro da equipa, uma vez que, sem saber que posição deve tomar, o indivíduo desinformado não estará em condições de se apresentar como personagem perante a respectiva audiência.” (Goffman, 1993:110)

É muito importante, por um lado, manter a coesão da equipa e, por outro lado, simultaneamente, manter o envolvimento da equipa com quem se está em interacção. Há que manter o empenho no desempenho.

Todas estas considerações sobre o desempenho da equipa, que coopera numa prática de rotina e as dificuldades que por vezes aí se encontram, aplicam-se na análise dos agregados familiares e das suas interacções também na prática de rotina que é a produção-deposição de

39 lixo na esfera privada e doméstica.

Também nesta perspectiva de interacção entre equipas, na esfera pública, podemos identificar que existe uma equipa que formalmente controla o quadro, estabelecendo um ritmo e uma orientação sobre a produção-deposição do lixo, como que assumindo o papel de encenador e que determina a informação que o público está em condições de adquirir. No caso, são as autoridades locais e os serviços de recolha de forma mais directa que assumem esse papel de controlo (para além de todo o contexto de políticas nacionais e europeias e todo o sector comercial em torno dos contentores e da reciclagem, entre outros), que se permite introduzir dispositivos estratégicos e regras normativas de condutas quotidianas na prática de deposição do lixo que recolhem.

A equipa da população residente, reage ao ritmo e orientação que a equipa de controlo emite (top-down), ainda que tenha sempre uma margem de manobra na forma como pode personalizar o seu desempenho e como pode assumir um papel mais pró-activo no funcionamento do sistema (bottom-up), como veremos na análise dos dados recolhidos. Como em qualquer interacção, também neste caso há expectativas mútuas sobre o desempenho das equipas: é esperado que cada uma cumpra o seu papel.

Em suma, a abordagem compreensiva e de proximidade à vivência quotidiana da Sociologia

do Quotidiano é centrada no desenvolvimento metodológico do trabalho de campo e da análise do material empírico recolhido. Fundamentalmente, por dar relevância às interacções no quotidiano e às abordagens metodológicas qualitativas, emerge no âmbito desta tese como uma referência relevante, até por ser no patamar do quotidiano que se articula o nível macro das políticas públicas dos resíduos e o nível micro das práticas domésticas do lixo.

Uso a Sociologia do Quotidiano como ‘instrução’ para o trabalho de campo, sem lhe sobrepor o enquadramento do lixo como “problema ambiental”. Este enquadramento está presente na problematização e nos objectivos da tese em termos de produzir conhecimento sociológico que possa vir a constituir um contributo válido para as políticas públicas dos resíduos; no entanto, se fosse demasiado estruturador na abordagem ao terreno empírico, desviaria as pessoas da espontaneidade de falarem do que para si é lixo e a forma como ele faz parte do seu quotidiano.

Por seu turno, a mudança das práticas relativamente ao lixo ocorrem no contexto espaço- tempo quotidiano e na interacção com os outros (agregado familiar, vizinhança envolvente, autoridades locais) e com o próprio lixo (desde a sua produção ao seu despejo). Neste sentido, o modelo dramatúrgico de Goffman como referência analítica é inspirador ao trabalho que aqui se desenvolve, articulando os seus conceitos, tanto nas interacções na esfera privada

40 como na esfera pública.