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O quotidiano: um contínuo de rotinas e acontecimentos

I.2. Orientações da Sociologia do Quotidiano para uma investigação no terreno para práticas

I.2.4. O quotidiano: um contínuo de rotinas e acontecimentos

Mas afinal, o que é o quotidiano? A palavra “quotidiano” é um adjectivo que se refere ao que é “de todos os dias; que sucede habitualmente” (in Dicionário da Língua Portuguesa, Porto

Editora). A Sociologia do Quotidiano aborda essa categoria do “nada se passa”, do “nada de

novo”, dos detalhes e pormenores do dia-a-dia, dos encontros, dos gestos inconscientes repetidos de forma tão vulgar que conferem quase invisibilidade a certas práticas - como o caso de fazer e despejar o lixo. E é nessa abordagem que entramos em contacto com a realidade por excelência: “Entre as múltiplas realidades existe uma que se apresenta como realidade por excelência. É a realidade da vida quotidiana. A sua situação privilegiada dá direito a que se lhe chame suprema realidade.” (Berger e Luckman, 2001:39).

A rotina é um elemento básico das actividades do dia-a-dia. A ordem da rotina remete para o hábito de fazer as coisas sempre da mesma maneira, por recurso a práticas constantemente adversas à inovação, num quotidiano marcado pela regularidade, pela normatividade e pela repetitividade, que se manifesta no campo da ritualidade. Goffman (1959) define como “prática de rotina” ou “papel de rotina”, o modelo de acção preestabelecido que se desenvolve ao longo de um desempenho e susceptível de ser apresentado em várias ocasiões.

No fundo, é a prevalência de determinadas formas de conduta, que sustentam e são sustentadas por uma “segurança ontológica” (Giddens, 1997). Isto é, o que se conhece, o que é familiar e habitual promove confiança e segurança, um certo “descanso” de que tudo está a passar-se “como deve ser”.

Como se referiu, as interacções dependem de que cada actor interveniente desempenhe o seu papel para que a situação corra conforme o “normal”, o esperado, e nesse ponto, as práticas de rotina salvaguardam essa normalidade, porque é algo que se conhece e com o qual se pode

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contar. A rotina ritualista oferece esta confiança, esta segurança.

Todo o ritual implica uma linguagem que convém ser aprendida, que consiste basicamente na atribuição de significações particulares a comportamentos habituais. O ritual cumpre uma importante função reguladora da interacção na vida quotidiana – o conjunto de actos através dos quais o sujeito controla e torna visíveis as implicações simbólicas do seu comportamento quando se encontra face a face com outro indivíduo.

A estabilidade e o sentido da vida social quotidiana dependem de pressupostos culturais implícitos e partilhados que facilitam e proporcionam a interacção. A interacção social enquanto foco de estudo da vida quotidiana, mesmo que tenha formas aparentemente insignificantes, clarifica muitos aspectos da vida social e revela o sistema social mais amplo (remetendo para o “caminho do meio”, entre micro e macro). A sua importância reside no facto das rotina do dia a dia, e as constantes interacções sociais, darem forma e estruturem o que fazemos, revelando padrões de comportamento.

Ter um controlo contínuo sobre a nossa aparência e os nossos actos é extremamente complexo. Nas rotinas do quotidiano precisamos continuamente de estar a demonstrar a nossa capacidade e competência nas interacções, nos encontros ao longo do dia, ao longo dos dias. O actor tem a capacidade de aprender e utiliza-a na tarefa de se preparar para o desempenho de um determinado papel. “E quando nos tornamos capazes de gerir convenientemente uma prática de rotina eficaz, isso deve-se em parte a uma “socialização antecipada”, através da qual já fomos instruídos na realidade que começa a ser para nós real.” (Goffman, 1993: 91). A produção e reprodução de rotinas conduz ao estabelecimento de um quotidiano onde se dão processos de socialização. As pessoas aprendem a manipular (no sentido de Goffman, 1963) as impressões e os objectos que são necessários para as interacções no dia-a-dia, assimilando estes processos que vão constituir uma assimilação de relações sociais, inserindo-se num processo de socialização e de ritualização, que criam a sensação de segurança que o familiar confere às vivências.

Mas se o objecto da Sociologia do Quotidiano são as actividades desenvolvidas de uma forma regular e banal dia após dia (a rotina), no quotidiano rotineiro também se atravessam acontecimentos (Javeau, 1980). Isto é, apesar de ter como unidade de análise o universo de actividades de tipo relacional praticadas massivamente de uma forma regular e repetitiva diariamente, também há que analisar os acontecimentos e desvios à rotina que emergem no quotidiano.

Assim, o quotidiano, para além da sua definição de dicionário que remete para o “nada de novo”, é também lugar de inovação, e tanto é importante o que fixa as regularidades como o

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que as perturba. Este é o fio condutor do conhecimento sociológico através da vida quotidiana, em que se exploram “os caminhos de encruzilhada entre a rotina e a ruptura, nos quais se revela a construção social através das rotas do quotidiano” (Pais, 2009:19).

Neste âmbito, são reconhecidas diferentes temporalidades do quotidiano; Balandier (1983 in Pais, 2009:89), distingue entre (1) A repetição contra o acontecimento; (2) A ruptura contra a repetição que reaviva o quotidiano; (3) O quotidiano contra o tempo, através da sua gestão. Encontram-se nesta proposta de diferenciação, desde logo, duas categorias de tempo opostas: num lado, um tempo em que a trivialidade diária obedece a uma divisão de tempo relativamente estável, de condutas preestabelecidas, reguladas, hierarquizadas, um tempo cíclico, repetitivo e organizado que aparece como factor de segurança, de protecção, contra os acasos da existência. No lado oposto, o tempo da alteridade, do novo, do inesperado, do diferente, da mudança que quebra o quotidiano e, simultaneamente, mostram que ele existe. Para além destes tempos - ordinário e extraordinário - há ainda que considerar um tempo que resulta da vida social, objecto de representações sociais, tempo fraccionado em durações diversas, em ritmos diferentes e concorrenciais, em acontecimentos, em actividades, em condutas, em práticas (recompostas e reinterpretadas) num ritmo social de conjunto que lhe dá coerência e significação. São as práticas sociais que compõem o tempo (no seu uso) e o transformam de tempo físico e biológico (quantitativo), em tempo qualitativo e social.

No quotidiano encontra-se o cruzamento entre o tempo linear e progressivo, com o tempo da repetição e da circularidade. A tecnologia vem impondo a fragmentação do tempo; o tempo que se articula em torno da jornada de trabalho e dos gestos mecânicos é um tempo inventariável que se reveste do significado de rentabilização do tempo e que é objecto de análise por parte das abordagens marxistas (Heller, 1977 e Lefebvre, 1974 in Pais, 2009), que reflectem sobre a organização controlada e minuciosa do emprego do tempo e a sua capacidade de estruturação da vida quotidiana do sistema produtivo capitalista.

A distribuição das tarefas é influenciada pelo tempo do relógio – introduzido no mundo em 1884 - que permite uma delimitação temporal precisa das actividades e sua coordenação no espaço. A estrutura temporal do quotidiano não se impõe apenas nas sequências preestabelecidas – calendário e relógio – e abarca fenómenos não presentes “aqui e agora”. Ou seja, apesar da planificação, rendibilização e racionalização do tempo, o tempo escapa-se ao controlo e flui por vários espaços...

A abordagem da Sociologia do Quotidiano conduz à reflexão sobre as implicações do tempo- espaço do quotidiano e na produção da vida quotidiana. O quotidiano acontece num espaço- tempo próprio. É nesse espaço-tempo “delimitado” do quotidiano que as práticas acontecem,

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que os objectos são manipulados, que as imagens se objectivam, em que ocorre o processo de apropriação e do uso do tempo e do espaço. “O tempo é o que dele fazemos e o espaço um lugar praticado. Tempo e lugar são folhas em branco que só ganham sentido com a inserção, com as assinaturas que os indivíduos nelas fazem” (Pais, 2009:138).

É pois fundamental compreender como as actividades são distribuídas no tempo e no espaço na análise de encontros/interacções, para entender a vida social no seu conjunto. A interacção social é situada/“demarcada” no tempo e no espaço. Por exemplo, os dias da semana são demarcados dos dias de fim de semana, assim como há tempo que é gasto em movimento no espaço em deslocações quotidianas, o que é mais um elemento a ter em conta na análise dos contextos de interacção.

Berger e Luckman (2001) sublinham que o indivíduo se interessa sobretudo pelo quotidiano ao seu alcance, do que se ordena espacial e temporalmente à sua volta, que designam de “zona de operação”, mas que pode encontrar paralelo noutros autores, como a “zona manipulativa” (Mead e Blumer in Pais, 2009: 90, e também Goffman, 1988). Esta “zona” abarca os objectos que podem ser tocados e vistos, em contraste com a “zona das coisas distantes”. Esta noção interessa particularmente no caso do lixo doméstico, por este ser manipulável e estar ao alcance efectivo das pessoas no seu quotidiano.

No entanto, o quotidiano não se resume a esta zona alcançável. O indivíduo fixa sectores da vida quotidiana que transcendem o seu alcance efectivo, transcendendo o espaço - em extensão – e o tempo - em duração.

Uma análise crítica do quotidiano implica o reconhecimento da sua historicidade e da noção de que o presente é um produto histórico. Garfinkel (1984) também reivindica uma historicidade do quotidiano, em que as experiências de vida são produtoras e reveladoras de certas representações sociais enraizadas na quotidianidade, que se manifestam em modos de fazer.

Faz mais sentido falar de uma historicidade do quotidiano, onde a temporalidade é mais do que uma temporalidade cíclica, vivida exclusivamente no presente do aqui e agora (Javeau, 1991). A este propósito Goffman refere que “numerosos são os factos decisivos que se encontram para lá do tempo e do lugar da interacção ou que se escondem no interior do seu quadro.” (Goffman, 1993:12).

A importância conferida ao que se faz no ‘aqui e agora’ das interacções, também é por se reconhecer as linhas morais que atravessam o quotidiano, como sementes presentes do que se irá colher no futuro. “Basta-lhes orientar a sua acção no presente de tal maneira que as suas consequências futuras venham a ser do tipo que levaria um indivíduo justo a tratá-los do

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modo como querem ser tratados; depois de agirem assim, resta-lhes apenas confiar na capacidade de percepção e juízo do indivíduo que os observa.” (Goffman, 1993:292). Neste sentido é interessante a articulação de uma lógica de convivência social de “faz aos outros o que gostavas que te fizessem a ti”, tornando-a extensível à lógica do espaço público como bem comum ou ao desenvolvimento sustentável no que se refere à herança que o presente irá deixas para as futuras gerações.