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Lugares bastidores onde se guarda “lixo acumulado”

São as arrecadações nos prédios, os sotãos, as caves, as garagens, os anexos no fundo do quintal, o “quarto da tralha”, “aquele armário”, o fundo de uma gaveta, o cimo do armário onde, para se chegar, é preciso um escadote, a casa dos pais, as casas secundárias...

“Tenho ali uma espécie de armazém onde guardo lixo (ri-se) muita coisa, que sai desta casa, vai para ali primeiro e custa-me muito deitar fora livros e papeis. Tem as roupas da feira, que eu vendo e ficam de um ano para o outro e que eu também não me consigo desfazer, porque acho que as posso reutilizar, pintar, bordar, sei lá, quando tiver tempo, ficam em stand by. Tenho quadros que sobraram de duas exposições de fotografia, ficam ali até à próxima que será daqui a 3 anos ou 4 anos ou 10 anos ou nunca mais. Ali ficam. O que tenho mais? Móveis que já não quero ou que alguém me deu, ficam ali à espera...” (53, suprema, rural).

Quando referem que apesar de o fazerem, não tem lógica guardar “lixo” em casa, até porque muitas vezes, acabam mais tarde por ir de facto para o contentor do lixo, os entrevistados estão a referir-se à dificuldade que têm em se desfazer de certas coisas e ao que significa para si “deitar coisas fora”.

Por um lado, está presente a questão do evitar o desperdício: “custa-me porque eu dou valor

aquilo porque aquilo pode ser utilizado para outra coisa”, “é mal empregado para ir para o lixo” e é melhor guardar, “porque pode vir a fazer falta”. Nestas justificações por vezes

encontram-se memórias de escassez. De qualquer modo, muitas vezes trata-se de uma atitude que não é transversal do agregado familiar, encontrando-se em vários casais, a presença de um elemento com tendência a acumular e outros com mais “desapego” material.

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“Eu não tenho pena de dar . O meu marido sim. Em termos da roupa do Tomás, não damos porque podemos ainda ter algum bebé. Mas em relação a outras coisas o meu marido acha que “poderá fazer falta”, mas acaba por nunca fazer falta. Os meus pais tem aquela coisa da afinidade ao objecto. Eu nunca tive, aquela coisa da recordação. Não faz utilidade é para o lixo, pronto, sai fora.” (39, integral, urbano novo).

Por outro lado, também se encontram presentes questões afectivas e de memórias, em relação às quais o mandar para o lixo tem um significado de “desprezo” que é desadequado ao valor atribuído ao objecto. Como já se referiu, por exemplo, para fotografias ou cartas pessoais, alguns entrevistados referiram que optam por queimar, para se desfazerem de certo “lixo acumulado”, evitando o contentor do lixo.

No que diz respeito a coisas que se guardam por razões afectivas e por memórias, a dificuldade em deitar essas coisas fora é porque isso significa, desfazerem-se de uma parte de si mesmas ou das pessoas que associam a essas memórias materiais.

“São as coisas que me foram dadas, mesmo que não goste, tenho muita dificuldade em desfazer porque parece que estou a deitar fora a pessoa que os deu ou que estou a dizer que não gosto tanto dela e por isso tento sempre manter.” (40, suprema, urbano novo).

“Isso tem a ver com apego, há coisas que nos trazem lembranças e muitas vezes achamos que nos prendemos a alguma coisa se mantemos aquilo. Tem valor sentimental. Pode ser um livro que não nos faz sentido nenhum, mas faz parte da nossa história. (...) Acho que é importante preservar a memória também para ela [filha]. ”(39, integral, separa, urbano novo).

“Há coisas que custam, os meus cadernos de faculdade, era o que me estava a custar mais, eram todos tão organizadinhos e tanto exercício e já nem me lembrava que sabia isso, pus-me a folhear os cadernos e custou-me muito a soltar-me de alguns cadernos. Comecei por aqueles que gostava menos da disciplina e esses foi tudo para o lixo, foi fácil, nem olhei. Mas houve alguns que me custou muito a livrar (…) mas nunca vou lá abaixo ver, vou directamente à internet. Tive que me mentalizar que eu não precisava daquilo...”(34, suprema, rural qualificado).

A maior parte desse “lixo acumulado” são objectos em stand by, que foram suspensos do serviço que prestavam por uma determinada razão circunstancial e (ainda) não têm um destino definido. Mas os contentores-ecopontos colectivos não são seguramente os adequados para os seus proprietários. São coisas que se revelam difíceis de deitar fora.

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Para além das memórias e objectos cujo valor é sobretudo sentimental, identificam-se vários objectos que, pessoalmente, oferecem mais dificuldade em “deitar fora” no contentor do lixo e por isso têm tendência para ser “lixo acumulado”, em particular os livros e manuais

escolares; móveis e electrodomésticos; roupas que não se usam ou a mais - “Tenho roupa

que chegue até aos meus 150 anos” - e roupas de crianças e brinquedos.

Aos livros em particular é muito frequente as pessoas referirem-se à dificuldade de se desfazerem deles, e muito mais difícil ainda é deita-los para o lixo. São objectos aos quais é atribuído uma dignidade por conterem em si conhecimento.

“Livros custa-me muito deitar fora, dou-os, vendo-os mas não consigo deitar fora (mesmo para o papelão). Então vão para ali, para o armazém...”(53,suprema,rural).

“Tenho um armário cheio de livros em casa dos meus pais que não sei o que fazer deles, porque não cabem cá em casa mas tenho pena de os deitar fora. Alguns são bem antigos, eram do meu pai, quando ele era pequeno.” (37, parcial, rural qualificado).

Parte das coisas que foram remetidas para um lugar nos bastidores têm tendência para ser alvo de um processo de desvalorização económica e cultural ao longo do tempo (Thompson, 1979), processo esse que também se alastra ao seu valor emocional, rendendo-se à sua desvalorização, obsolescência e esquecimento: “para dizer a verdade, nem sei bem o que lá

está”.

“Há coisas que eu não consigo me desfazer mesmo, fico um bocado presa à parte emocional das coisas. A solução que eu tenho é afastá-las de mim, portanto, arrumam-se num sitio onde não as veja e daqui a 2 ou 3 anos vou buscar qualquer coisa e descobres aquilo lá no meio, 'ah, isto é para o lixo, até tinha pensado que já tinha deitado fora', mas no momento, quando tenho de fazer a arrumação e a limpeza, não consigo me desfazer das coisas.”(35, integral, rural).

“Montes de papelada da empresa onde trabalhei anteriormente e que guardei porque 'isto um dia vai- me fazer falta para um trabalho', relatórios e coisas, mas já passou 6 anos e aquilo está completamente desactualizado e eu nunca mais vou usar. Quando as trouxe cá para casa não achei que eram lixo e algumas delas ainda utilizei mas agora que já passou este tempo todo...”(36, suprema, rural qualificado).

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fazer aos tachos. (...) Não posso deitá-los para o lixo normal, mas também não posso deitá-los para nenhum dos ecopontos porque não tem aplicação, acabo por ficar aí com os tachos, a prateleira de cima é quase tudo tachos velhos que não uso.”(34, suprema, rural qualificado).

Com o passar do tempo, o sentido emocional e afectivo de se ter guardado uma determinada coisa num certo momento da vida também se pode perder, tornando mais fácil ver-se livre dessas coisas que ficaram acumuladas.

No momento da re-descoberta o seu valor transformou-se. Alguns passam à categoria de “lixo” que é para ser despejado no contentor. Noutros casos, podem passar a ser “lixo que circula” para fora do espaço privado, adquirindo por vezes até o valor de antiguidades, ou de velharias. O caso dos discos de vinil são paradigmáticos deste tipo de revalorização de objectos que durante algum tempo viveram fechados em caixotes e um certo revivalismo lhes confere um valor especial no mercado ou expostos na sala.

Esta transmutação de estatuto do lixo acumulado quando redescoberto, é argumento de várias séries televisivas, sobretudo produzidas nos EUA, como “Os caça-tesouros” ou “O preço da história” no Canal História, que se baseiam em obter dinheiro a partir da redescoberta de objectos - “lixo acumulado” - que estão ou esquecidos ou abandonados em arrecadações, armazéns, celeiros rurais, etc. e o próprio passar do tempo valorizou esses objectos.

Também a OLXClassificados (www.olx.pt), sob o lema “Se vale x, na olx!” tem feito uma publicidade bastante forte com outdoors ao longo da IC 19, mas também em spots na televisão, sugerindo que “Tem em casa mais dinheiro do que pensa”, remetendo precisamente para cenários como a garagem ou sotãos, onde estão coisas guardadas e fora de uso e sobre as quais se duvida que alguma vez venham a ocupar um lugar na “fachada” da casa. É o lixo como negócio crescente em contexto de crise.

O “lixo acumulado” e o fluxo contínuo de coisas a entrar dentro do espaço privado, que potencialmente vão ser transformadas em algum tipo de lixo, implicam directamente no espaço que ocupam numa casa que (tal como o da Terra) é finito. As pessoas ficam como que “empanturradas” com o conteúdo das suas arrecadações e não sabem o que fazer a coisas que já não lhes servem, “mas que ainda podem servir”. E ficam sem destino, tendendo-se a adiar a tomada de decisão.

Esse adiamento de pôr ordem na desordem dos bastidores acontece, porque isso vai implicar um período de tempo considerável: “Tenho de me encher de coragem e ir para lá e

organizar e arrumar essas coisas”. É encarado como uma grande tarefa e que, por norma, só

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“Se eu vou tendo espaço tudo bem, mas depois há um dia em que precisamos daquele espaço e então vamos ter de ver, ou seja, a necessidade de espaço faz-me ir ver o que já não serve.” (36, suprema,rural qualificado).

“Aquele quarto é a nossa despensa onde está tudo, desde as pranchas de surf à roupa que não se veste, as tendas de campismo, vai estando tudo ali e vamos sempre adiando, mas se um dia tivermos um filho aquelas coisas têm de encontrar outro lugar.” (38,suprema, urbano consolidado).

Quando a necessidade de espaço se impõe é que preciso tomar decisões relativamente ao “lixo acumulado” e, para ganhar espaço, algumas coisas têm necessariamente de sair para fora do espaço privado. O contentor do lixo pode ser uma opção mais rápida e imediata, mas também outras alternativas, outros lugares são procurados, em particular para objectos que definitivamente acham que são mal empregadas para ir para o lixo, o que corresponde a um fim de vida prematuro, atendendo ao seu estado utilizável.

O “lixo que se acumula” tem frequentemente um grande potencial para ser “lixo que circula”, saindo para fora de casa, para entrar num circuito alternativo, em busca de um lugar onde passe a ser um objecto activo e querido de novo.

VI.3. Fazer lixo no quotidiano

Dia após dia produzimos lixo nas nossas rotinas domésticas, em particular o lixo que resulta da alimentação, da limpeza do espaço doméstico, da roupa e da higiene pessoal. Destas práticas resultam restos e invólucros esvaziados.

Mas o quotidiano não é só composto de rotinas regulares e repetitivas. É também um quotidiano de acontecimentos e situações extraordinárias (Pais, 2009).

Assim, pode considerar-se a existência de dois tipos de lixo no quotidiano, o lixo que é produzido na rotina doméstica e o lixo que é produzido em ocasiões especiais.

VI.3.1. O lixo da rotina doméstica

A produção de lixo no âmbito das rotinas domésticas articula-se fortemente com um conjunto de hábitos de consumo e quando se questiona o que faz mais lixo na casa no seu dia a dia, as respostas recaem, de uma forma geral, na alimentação. Ainda que haja agregados que fazem poucas refeições em casa, sobretudo durante a semana, ou não cozinhem todos os dias, é à volta da alimentação ( e na cozinha) que a maior parte do lixo se produz.

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Quando se alude à alimentação, referem-se não só à sua confecção e aos lixos orgânicos que daí resultam, mas sobretudo às embalagens dos alimentos, às quais muitas das entrevistadas considera uma “fatalidade” à qual não se pode “fugir” porque “não tem propriamente a ver

connosco, mas mais com o que está à venda”. Enquanto “dantes comprava-se ao quilo em pacotinhos de papel manteiga”, agora “por muito que tentemos, é impossível não produzir lixo, compra-se tudo embalado.”

“É uma profusão de lixo de embalagens que eu faço cá em casa que não te passa pela cabeça, a sério. Deve ser 80% do meu lixo, eu não dou vazão ao meu ecoponto amarelo, todos os dias levo um saco de lixo para cima. Qualquer coisa que tu queiras comprar, o sumo vem sempre dentro do pacote, no detergentes da roupa consigo comprar recargas, mas também vêm num pacote, não há maneira de fugir... o ecoponto amarelo é um karma.”(34, suprema, rural qualificado).

“O que noto que enche mais são as embalagens que vem a embalar a comida, muitas vezes com excesso de embalagem, muitas embalagens a envolver. Noto que quando vou às compras do mês, os plásticos enchem, não tanto o papel. Eu desmancho os packs. Trago sacos das compras para usar para o lixo, para não ter de comprar para o lixo, mas muitos nem dão, porque estão rotos e acabam por ficar inutilizados e então são esses sacos rotos, as embalagens das coisas e as embalagens que envolvem as embalagens, faz muito volume, não é pesado, mas enche um saco.” (32, suprema, urbano novo).

“A mim faz-me confusão as empresas, eu sei que pagam à Ponto Verde, mas acho que devia haver uma espécie de multa, um limite para a utilização dos materiais, quem mexe com o dinheiro e o mercado faz o que entende e usa de forma abusiva as embalagens e depois nós vamos fazer esta parte que é a migalhinha da separação em comparação com o resto. Não é uma desculpa para eu não fazer. Mas irrita-me que haja tanta culpa nas pessoas 'oh, o mundo seria muito melhor se todos fizéssemos reciclagem'... mas nós só estamos a limpar aquilo que que nos impingem diariamente, porque nós não conseguimos comprar as coisas de outra forma, porque o marketing é muito mais importante do que as questões ambientais e é tudo uma grande fachada.” (34, não separa,rural qualificado).

Nestas circunstâncias de um mercado que não oferece alternativas e não favorece uma redução de lixo à partida, são poucos os agregados que, nas suas compras de alimentação (ou limpeza), tenham em consideração a embalagem pela possibilidade da sua redução, reutilização ou reciclagem. Por vezes escolhem determinadas embalagens, por exemplo, de vidro, mas mais por preferência pelo material.

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preço, pelo produto em si, pela marca ou ainda por certas características intrínsecas, nomeadamente algumas entrevistadas referem que tentam evitar os químicos, tanto nos alimentos como nos detergentes “para evitar a poluição no corpo, na casa e no ambiente”. Mesmo alguns dos separadores convictos são apanhados de surpresa com a questão relativa à articulação do momento de fazer as compras e estarem a trazer (e a comprar) lixo para casa, reflectindo o condicionamento à partida que os locais de consumo oferecem no momento das compras.

“Não, por acaso nunca pensei nisso, mas agora que fala nisso, é quase impossível, os 4 iogurtes vem sempre naquela embalagem com papel à volta, é impossível...” (33, integral, rural).

Mas não se trata sempre de considerar “inevitável”. Mesmo quando está presente uma maior sensibilidade à questão, o consumo de embalagens em excesso, resulta da facilidade e comodidade - “Confesso que faço muito lixo no dia-a-dia”. Isto é, mesmo quando alertados para o assunto, são práticas que perdem na competição, porque o mercado massificado não está orientado para essa redução.

“Nas embalagens, se calhar até me devia preocupar mais... Se eu não tenho tempo de estar com as minhas coisas com calma, claro que acabo por ir ali ao modelo e já está, e aí estou a consumir mais, estou a fazer mais lixo e estou menos preocupada com o impacto no ambiente, embora me preocupe mas acaba por ser um comodismo, um egoísmo. (…) Quando não se tem muita disponibilidade de tempo ou não se consegue criar esse tempo para as coisas, acaba-se por entrar na facilitação, embora se ache importante. Mas entre o importante e o existir ali uma coisa mais fácil à mão, acaba-se por ceder.” (39, integral, urbano novo).

Algumas (poucas) pessoas, com um percurso de envolvimento ambientalista mais forte, apresentam preocupações em relação à produção de lixo que marcam de forma determinante os consumos e compras diárias, combinando o tipo de produção biológica com a importância dada ao facto de ser produção local, além do evitar comprar embalagens, preferindo os mercados tradicionais e levando o seu cesto ou saco reutilizável.

“Faço compras nos supermercados biológicos e no comercio local (…) Nunca compro fruta embalada com esferovite por baixo e um plástico por cima, por principio, não o faço.”(53,suprema, rural).

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