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A “arte” de nos livrarmos das coisas que já não queremos

II.3. A nova vaga de estudos sobre o lixo

II.3.3. A “arte” de nos livrarmos das coisas que já não queremos

Por fim, destaco o trabalho da geógrafa Nicky Gregson, marcado pelo livro Living with

Things: Ridding, Accommodation, Dwelling (2007) e pelos artigos escritos em co-autoria com

Alan Metcalfe e Louise Crewe (2007) e com Harriet Bulkeley (2009) sobre a prática de “deitar coisas fora/livrar-se de coisas/alienação de objectos” e a sua articulação com as políticas de redução de resíduos, e de forma particular a reflexão em torno da reciclagem. Estas referências vão ao encontro da minha linha de pesquisa e apoiaram-me ao longo do trabalho de campo e da análise.

Gregson considera a “alienação de objectos” uma prática profundamente inserida no consumo, porque é precisamente o “deitar coisas fora” que permite criar um espaço vazio, para receber uma nova aquisição. Só um lugar vago pode receber o novo objecto e, para isso, é necessário que o objecto usado mude de sítio, se mova e/ou entre em circulação.

Na sequência do ciclo “consumir-usar-deitar fora”, a autora faz notar que os estudos do consumo tem vindo a centrar-se nas práticas de consumo do quotidiano e na forma como se usa o que se consome. Mas, em geral, estes estudos não avançam para a etapa que se segue: as práticas do deitar fora, que fazem parte integrante do consumo, e que o podem tornar mais ou menos ético ou sustentável.

Esta observação de Gregson vai ao encontro do trabalho que tenho vindo a desenvolver na equipa Observa/ICS, partindo da reflexão de que muitas das práticas de consumo com impactos no ambiente têm um carácter mundano, invisível e inconspícuo. Um dos aspectos invisíveis destas práticas remete precisamente para a questão do lixo – o outro lado do consumo – cuja invisibilidade quotidiana se reflecte também na negligência com que os estudos sociais sobre consumo o têm tratado. As preocupações com a sustentabilidade das sociedades contemporâneas tornam crucial analisar o consumo, não só no acto de compra e aquisição (mercado), como também enquanto processo indissociável dos fluxos materiais de produção, uso e desperdício (Valente e Schmidt, 2011; Valente, Truninger e Schmidt, 2012). A “alienação” é uma prática, existindo uma relação entre objectos, condutas e significados. E uma prática conduz à criação de normas, que requerem um determinado conhecimento para a

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agir. Ao contrário da aquisição, que causa acumulação, a alienação (alienar bens) leva à desacumulação e esta pode assumir várias formas e diferentes condutas.

O que vai – e como vai - para o contentor diz o que somos e como vivemos (Rathje e Murphy, 1992), mas também o que não deitamos fora, o que não vai para o contentor reflecte valores e motivações dos residentes e da comunidade. Isto é, livrarmos-nos de coisas faz parte das práticas quotidianas mas a forma como o fazemos faz a diferença (Gregson e alie., 2007). O deitar fora ou livrar-se de coisas não significa necessariamente colocá-las no contentor do lixo, rumo ao fluxo de resíduos indiferenciados e selectivos recolhidos, através do sistema de recolha provisionado pelas entidades locais, existindo um leque vasto de destinos possíveis na prática de alienar objectos: podem ver vendidos, oferecidos, renovados, transferidos, ...um conjunto de maneiras de nos livrarmos de coisas, que se podem designar como as “artes da transição” ( Bulkeley e Gregson, 2009).

As pessoas estão continuamente a tentar ver o que fazer com as coisas. Há sempre certos objectos aos quais as pessoas atribuem um valor incompatível com o ser despejado no lixo, por ser “mal empregado”, ainda que para a pessoa já não tenha “emprego” (por exemplo, para certas pessoas deitar livros no lixo é impensável, mesmo que já não lhes interessem, nem lhes façam falta). Por isso, procuram dar a essas coisas, um destino distinto do contentor do lixo, por este significar o fim da vida dessas coisas que ainda podem ser úteis, noutro lugar.

A “alienação” é uma prática em si, habitualmente encenada pelos agregados domésticos, usando as mesmas condutas ou meios para fazer circular certas categorias de coisas, ou seja, é uma prática que é reproduzida. Acresce que agregados familiares diferentes têm condutas diferentes de alienação, desde o reciclador empenhado, com um circuito abrangente que usa para fazer circular os objectos, à passagem de coisas dentro do círculo da família e dos amigos próximos, ao circuito de via única de casa para o contentor (Gregson, 2007).

Estas diferenças revelam identidades específicas, valores e formas de capital social e cultural que medeiam a relação com o que está a mais. Por seu turno, também mostram que a vida social de certas coisas está dependente da sua situação espaço-tempo: os mesmos objectos podem ser classificados e colocados em diferentes trajectórias, dependendo de quem os adquire e que lhes pode proporcionar um determinado tipo de uso, ou dependendo das condutas de alienação do indivíduo ou agregado, tendencialmente mais acumulador ou mais desapegado, com mais imaginação, generosidade ou espírito de valorização.

“Binning something, give it to somebody, selling it, putting something on a wall, not only work to move objects along but work back, as practices, on their divestors. Indeed, it is through pratices of divestment that we continually re/constitute social orders, using what we

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do with and to things – including how and where we place them – to constitute narratives of us, of others and our relations to them. (…) Along with acquisition, the means by which most of our things move into our lives, divestment practices are fundamental to being in the world. Continually goin-on, these practices with the object world of consumer goods are never finished, rather they are always on-going and always acting-back.” (Gregson e alie, 2009:198) A alienação dos objectos cria, assim, a sua própria geografia de circulação, através das diferentes “artes de transição” capazes de reutilizar e de revalorizar os objectos, permitindo às coisas renascerem para uma nova vida, em vez de ir para o lixo (condenando-os a uma “morte” por enterro ou cremação ou abandono...), favorecendo o seu uso noutro local (por exemplo, a roupa de criança que, quando esta cresce, passa para outra criança).

A tentativa de travar a acumulação, através da sua circulação, é uma forma de contrariar um consumo intrinsecamente desperdiçador, através da extensão da vida social das coisas. A noção de circulação de Gregson, para além de uma referência directa à Teoria do Lixo de Thompson (1979), remete também para a abordagem de Schnaiberg e Gould (1994) sobre a Re-circulação de bens, que se pode juntar à política dos 3Rs, da Redução, Reutilização e Reciclagem.

Para além da circulação, Gregson enfatiza a importância do lugar – placing - das coisas que não se querem. O lugar que elas ocupam mostra o que se quer fazer com elas. As coisas que já não são usadas ou amadas ou cuidadas, frequentemente estão guardadas longe da vista, no fundo de uma gaveta ou de um armário, na arrecadação ou na garagem a apanhar pó... lugares que lhes conferem invisibilidade (remetendo para os bastidores de Goffman, 1953), porque a sua presença visível (na zona de fachada) causa embaraço ao revelar desordem. Como afirma Douglas (1966), o sujo é uma matéria fora do lugar, fora da ordem. O lixo só é visível quando está no lugar errado (Thompson, 1979). E por isso, o querer-se livrar destas coisas que são lixo por estarem no lugar errado, é a tentativa de manter a ordem arranjando-lhes ou criando um lugar apropriado.

Mas manter essa ordem é uma tarefa cada vez mais complexa, não só porque há mais quantidade de coisas materiais que precisam de um destino, de um lugar, como porque o lixo não é uma categoria homogénea de materiais, “merly discarded and carried away to some destination unknown, unimagined, and uncared about. Rather, we are exhorted to work on and with things and materials in their discarding, to clean them, to evaluate the substances absent and present things, to separate materials out, and to store them for increasingly complex collection services that are themselves choreographed around materials diference.” (Bulkeley e Gregson, 2009:929).

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E há momentos no quotidiano dos agregados que saem da rotina repetitiva em que acontecimentos especiais provocam uma grande “desordem” no sentido de produzirem uma grande de quantidade de lixo num curto espaço de tempo, emergindo uma necessidade de se ver livre dessa imensidade de coisas que não têm lugar nas suas vidas, e que as desordena... Esses momentos de maximização de produção de lixo num curto espaço de tempo, estão associados a festas (por exemplo, aniversários de crianças), mas Bulkeley e Gregson (2009) identificam ainda três momentos muito significativos da vida dos agregados que são grandes geradores de lixo: mudar de casa, esvaziar e limpar uma casa a seguir à morte de alguém e fazer obras de melhoramento em casa. Nestas circunstâncias de compressão tempo-espaço, a necessidade de se livrar o mais rapidamente daquele excesso e da desordem que causa, faz com que muitas coisas sigam um trajecto directo para o contentor do lixo ou para junto de um contentor, entrando no fluxo do lixo, sendo encaminhado para o aterro.

No contexto das metas de redução de resíduos das políticas públicas, Bulkeley e Gregson (2009), chamam a atenção para o impacto dessas políticas nos agregados familiares. Apesar das reflexões das autoras se referirem ao caso inglês, o facto de se tratarem de políticas públicas orientadas por metas europeias, encontra paralelismo nas políticas nacionais, tendo por isso em comum a necessidade de reduzir os resíduos, pelo menos, desviando-os dos aterros. Neste sentido, é relevante efectivamente conhecer as realidades quotidianas das práticas de alienação dos agregados familiares.

Assim, cada vez mais, os imperativos de redução preconizados pelas políticas públicas, conduzem a uma forte necessidade de ligação e envolvimento com a esfera doméstica, enquanto unidade primária de consumo, e por isso, de produção de lixo. No entanto, trata-se de uma esfera desconhecida para a política, pelo que pesquisas etnográficas como a que Gregson realizou (2007), oferecem um olhar mais próximo sobre as práticas dos agregados, o que pode contribuir para uma política mais capaz de “provisionar” as condições para as mudanças implicadas numa redução de resíduos.

As medidas de redução de resíduos como a prevenção reduzem de facto a quantidade de lixo produzido, mas são mais difíceis de introduzir, porque evitar produzir lixo implica mudanças ao nível das práticas domésticas de forma mais profunda. Por isso, são mais raros os programas que ousam fazê-lo. Bulkeley e Gregson (2009) referem-se a vários casos concretos de redução – redução de sacos de plástico, de fraldas descartáveis e o uso do compostor doméstico. Ainda que interessantes, não existem actualmente condições para serem generalizados, pelas implicações em termos de competências, de espaço e de conveniência da rotina quotidiana.

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Por seu turno, as políticas de redução por desvio do aterro são protagonizadas pela reciclagem, cuja implementação teve efeitos na transformação recente da gestão do lixo dos agregados familiares que aderiram a esse sistema. Estas tiveram de acomodar novas entidades físicas dentro do seu espaço privado – equipamentos domésticos para a separação do lixo. Isto envolve o interior das casas na questão de espaço físico disponível, e também, para certos agregados, separar para reciclar, implica integrar esteticamente estes novos equipamentos domésticos na decoração da casa.

Além disso, gerir estas novas entidades físicas de forma apropriada tem levado à criação e ajuste de um conjunto de tarefas domésticas (Shove, 2003), o que requer mudnças significativas nas práticas dos agregados. Com efeito “putting out the garbage has become complicated. No longer the lugging of the bin to the kerb...now itś a complexe assemblage of actions.”(Hawkins, 2001:12)

Assim, a implementação de uma política de reciclagem de resíduos tem implicações e efeitos ao nível 1) do aumento da complexidade e heterogeneidade dos materiais que são recolhidos, em relação ao sistema mono-contentor; 2) ao nível do trabalho a ser feito a certos materiais - avaliação, limpeza, separação, armazenamento; e 3) ao nível da presença visível do foi deitado fora (e que por definição não se quer ver) durante mais tempo no espaço privado, ou acumulado no espaço público da envolvente da residência (o facto da recolha não ser diária para todos os materiais cria a sensação de que está num lugar errado, que está “desarrumado” e “sujo” (numa remissão ao conceito de Douglas, 1966).

As taxas de participação são as medidas do sucesso dessas políticas o que coloca várias questões. Uma das mais relevantes é que os imperativos de recolha – frequência e local – ignoram o contexto da prática dentro e fora de casa, actuando no “reino da política imediata do lixo”. Trata-se de uma questão muito sensível, não apenas para as dinâmicas dos agregados, para os quais não faz sentido manter o lixo em casa durante muito tempo, mas também para as dinâmicas locais, pois os contentores de recolha estão na rua e fazem parte da envolvente da residência, onde, da mesma forma, o lixo permanece mais tempo do que seria de esperar ou desejável. Como teremos ocasião de referir, esta questão em particular foi identificada com muita clareza no projecto Separa® (Schmidt e Martins (coord.), 2006 e 2008), e está completamente alinhada com a perspectiva da presente tese.

Outra questão incontornável é não deixar que a concentração nas taxas de reciclagem da recolha selectiva já instituída publicamente, obscureça a visão sobre as práticas de produção e despejo de lixo, assim como outras práticas de alienação de objectos, na esfera privada e quotidiana dos agregados familiares.

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O sucesso destas políticas depende, até certo ponto, das mudanças estabelecidas voluntariamente e da livre vontade relativamente aos três níveis de implicações e efeitos acima referidos, por parte dos agregados domésticos. Enfatiza-se, assim, a necessidade da política de resíduos interagir com o agregado familiar e suas práticas, que são os processos- chave através dos quais o lixo é gerado na esfera privada e doméstica, reflectindo as implicações das mudanças requeridas em termos sociais. Em vez de continuar a apostar nas políticas de fim de linha, que impõem métodos de novas práticas nos agregados (top-down), as políticas necessitam de incorporar estas práticas sociais activas (bottom-up). Ou seja, conhecer essas práticas quotidianas da relação da população com o lixo que produzem, para que deste modo as políticas públicas dos resíduos e se complementem através deste saber leigo.

Perante a identificação de um conjunto de limitações da reciclagem, vale a pena olhar para as possibilidades do desenvolvimento da reutilização, o que remete para as “artes de transição”. Constata-se que já existem várias práticas de redução do lixo na maioria dos agregados que podem ser potenciadas, como, por exemplo, a reparação e manutenção de objectos, a circulação rotineira de certas coisas entre agregados próximos, o encaminhamento para instituições de caridade/solidariedade social ou para mercados de objectos em segunda mão. E alguns estudos, como o caso descrito por Hargreaves (2011), têm vindo a clarificar que é mais fácil reforçar uma prática já activa e com circuitos já estandardizados através dos quais as pessoas escoam os seus bens em excesso, do que mudá-la. Nestas diversas formas de arte de transição nas práticas de alienação de objectos dos agregados familiares, está presente um compromisso de salvar certos objectos do estatuto de desperdício, desviando-os do fluxo do lixo. A capacidade de ver potencial para reutilização em algo, é um acto visto como positivo ao gerir a perda como restauração e não como destruição (Hawkins, 2001).

Assim, o reforço em políticas públicas que intensifiquem práticas existentes de reutilização, percepcionadas em geral com um valor positivo, não coloca o consumo em causa (sugerindo que comprar novo não é a única possibilidade de consumo gratificante) e activa redes e relações sociais de troca e de doação.

Nestes contextos, Bulkeley e Gregson (2009) propõem que as entidades locais podem ser facilitadoras das artes de transição, dando a conhecer práticas de doação ou criando centros comunitários, envolvendo várias entidades locais e os agregados familiares. Esta proposta para que as entidades locais surjam como mediadoras, entre as políticas públicas e os residentes, remete mais uma vez para o projecto Separa® e a iniciativa que desenvolveu com as Juntas de Freguesia, que mais à frente terei oportunidade de referir com mais detalhe

75 (Schmidt e Martins (coord.), 2006 e 2007).

A salvaguarda da relação da população com as autoridades locais é fundamental em certos locais, onde a implantação do novo sistema de recolha selectiva para reciclagem, provocou uma ruptura com dinâmicas de ordem social no espaço público (locais que não estão preparados socialmente nem equipados para a mudança nas práticas de separação dos resíduos), o investimento nas práticas de reutilização através das artes de transição podem constituir uma boa alternativa para desviar lixo dos aterros, prolongando a vida social dos objectos e, ao mesmo tempo, criando mais-valias sociais.

Em suma, esta nova vaga de estudos sobre resíduos foi cruciais e inspiradores durante o

trabalho de campo e a análise elaborada sobre o material recolhido. Chappells e Shove sublinham a atenção aos contentores, enquanto mediadores e definidores das práticas e às implicações das metas de reciclagem no espaço público e na esfera doméstica, através da presença de determinados tipos de contentores específicos, que pretenderem dar resposta a essas metas preconizadas pelas políticas públicas. O contentor é visto como um elemento activo na relação entre as entidades locais que recolhem o lixo e os agregados domésticos, o que é um aspecto crucial neste estudo.

Por seu turno, a reflexão de Tom Hargreaves sobre a perspectiva holística que a Teoria das Práticas proporciona nos estudos de mudança de comportamento, sensibilizou-me para proceder a uma análise que leve em conta de forma mais concreta a importância das relações de poder na defesa do status quo de práticas instaladas e a criação de novas interacções sociais que sustentam as novas práticas.

Por fim, a perspectiva de Nicky Gregson reflecte sobre o lixo doméstico que, como se irá ver na análise, não vai para o contentor do lixo, mas que se integra numa diversidade de práticas de alienação dos objectos dos quais as pessoas se querem ver livres, isto é, diferentes formas das pessoas se “desfazerem” de coisas que já não precisam.

Esta abordagem mostra também os limites da reciclagem, sobretudo em certos contextos sociais e, simultaneamente, revela o potencial da reutilização através do que designa por artes de transição. Desvenda a quantidade de destinos alternativos ao fluxo institucional do lixo que o sistema de recolha tal como existe actualmente propõe. O investimento neste tipo de práticas já existentes nos agregados familiares pode ter mais-valias em termos do cumprimento das metas de redução de resíduos encaminhados para aterros, e também oferece vantagens em termos das relações sociais e da relação com as autoridades locais, o que constituem questões pertinentes e que reforçam a análise realizada na presente tese.

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