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As bases sociológicas da abordagem ao tema “lixo”

As raízes teóricas de um olhar sociológico sobre o lixo são marcadas de forma profunda pela obra de Mary Douglas, de 1966 Purity and Danger. An analysis of the concepts of pollution

and taboo. Neste livro a autora centra a sua atenção sobre a categorização social do “sujo” e a

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forma for. Neste sentido, o “sujo”, o “impuro”, o “poluído” remete directamente para o conceito de “lixo”.

A análise de Mary Douglas aborda o mundo social baseado em categorias e classificações, em que a ordem é mantida, através da definição e distinção entre “limpo” e “sujo”. “Dirt then, is never a unique, isolated event. Where there is dirt there is always a system. Dirt is de by- product of a sistematic ordering and a classification of matter, in so far as ordering envolves rejecting inappropiate elements.” (Douglas, 1984:35).

Qualquer coisa que ameace ou ponha em causa a ordem social vigente ou que atravesse as barreiras das coisas e significados “ordenados”, será definido como “sujo”. Isto é, qualquer coisa que esteja contaminada é “suja” e tudo o que contradiga esse padrão cultural é considerado “comportamento poluente”.

A distinção binária entre o “dentro” e o “fora” vê-se assim reforçada numa lógica associada à percepção cultural da ordem (proper space, proper behavior, …). O que está “dentro” das linhas que orientam a ordem social vêem-se com significado, com sentido de preservação e perseverança e representativo da ordem social e cultural. Pelo contrário, como o que é importante é que a “ordem” seja mantida, tudo o que possa ameaçar ou minar a ordem, é alienado ou deslocado para “fora”, seja através do acto de evitar o “sujo” ou de se desfazer dele. “There are several ways of treating anomalies. Negatively, we can ignore, just not perceive them, or perceiving we can condemn. Positively we can deliberately confront the anomaly and try to create a new pattern of reality in which it has a place.” (Douglas, 1984:38).

Este pensamento binário é alvo de alguma reflexão crítica de autores mais recentes, por não absorver a ideia de “retorno”. No caso do lixo mandado “fora”, ele pode voltar para “dentro” - através da poluição das incineradoras e dos aterros, que recebem o “lixo-sujo” que deitamos “fora”, para manter o “limpo” “dentro” da nossa casa, mas que suja o ar, o solo e a água da Terra. Digamos que há como que uma corrente, um fluxo de “lixo” que liga tudo. As coisas vão e voltam, não apenas fisicamente, mas também representativamente, no sentido em que existem fissuras através das quais as coisas de que aparentemente nos livramos podem voltar para nos “assombrar” (Bulkeley e Gregson, 2009).

No entanto, em qualquer sociedade é possível encarar a sujidade como algo fora do sítio, tal como Mary Douglas descreve, sendo que se mantém constante a reiteração sem fim da prática de “deitar coisas fora”, de continuarmos permanentemente a tentar livrarmos nos de certas coisas, através de diversas formas, e de continuarmos invariavelmente a pôr no lixo aquilo que cada um considera nojento ou demasiado usado ou sem utilidade (Gregson,

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2007).“Reflection on dirt involves reflection on the relation of order to disorder, being to non-being, form to formlessness, life to death” (Douglas, 1984:5),

Em complemento a esta abordagem foi escrita em 1979 Rubbish Theory. The Creation and

Destruction of Value, referência clássica sobre o lixo, escrita por Michael Thompson, em que

se considera que a análise ao conceito de lixo é central para compreender como o “valor” (de objectos, ideias, etc.) é socialmente definido e controlado, ou seja, qual o processo de criação e destruição de valor das coisas em geral.

Partindo desta premissa, Thompson coloca em evidência que os mesmos objectos têm valores distintos para diferentes grupos sociais e sugere que para compreender o conceito de lixo há que explorar as mudanças de relação entre status, posse de objectos e capacidade para os desprezar. Na sua teoria do lixo coloca, portanto, ênfase na noção de que o que é lixo para uns, não quer dizer que seja lixo para outros. Isto é, a condição de algo “ser lixo” é relativa, não permanente e depende de quem, do tempo e do lugar em que é classificada em termos de valor.

Para este autor, o lixo só pode realmente ser compreendido em relação às categorias de transição/transitivo e durável, e é a categoria em que colocamos os objectos que determina a forma como agimos em relação a eles. Quando se refere a categoria transitivo refere-se aos objectos cujo valor declina ao longo do tempo e têm uma esperança de vida finita (como por exemplo, um carro). Por seu turno, os objectos duráveis, aumentam de valor com o passar do tempo e têm (idealmente) uma esperança de vida infinita (como por exemplo, um determinado monumento) (Figura II.1).

Figura II.1 Diagrama da Teoria do Lixo de Thompson

Fonte: Parsons, 2008:391

De facto, estas duas categorias representam os elementos visíveis e valorizados da cultura material, em oposição ao desvalorizado e invisível - porque colocado em lugar não visível - lixo. O autor realça que persistência do lixo é causadora de problemas que resultam sobretudo

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de uma decadência económica e a decadência física das coisas, ficando à nossa volta, ocupando um espaço, mesmo que já sem o valor da utilidade, mas ainda com um certo valor material, ou seja, com a sua materialidade. “In an ideal world... an object would reach zero value and zero expect life-span at the same instant, and then...disappear into dust. But, in reality, it ussually does not do this; it just continues to exist in a timeless and valueless limbo, where, at same latter date (if it has not by that time turned, or been made, into dust) it has the chance of being discovered.” (Thompson, 1979:8).

Thompson argumenta que o lixo representa uma importante categoria “in-between”, situado numa “região de flexibilidade”, a qual não é sujeita aos mesmos mecanismos de controlo do valor do transitivo ou do durável. A sua reflexão sobre o processo de desvalorização (económica e cultural) dos objectos que ocorre ao longo do tempo “a transient object gradually declining in value and in expected life-span may slide across into rubbish [or] is able to provide the path for the seemingly impossible transfer of an object from transience to durability” (Thompson, 1979:9). Isto é, com o passar do tempo, os objectos vão-se rendendo a ser desvalorizados ou redundantes ou obsoletos, no entanto, têm a chance de ser re- descobertos, voltando a ganhar valor, como por exemplo, quando assumem o estatuto de antiguidades.

A abordagem sociológica do lixo tem ainda uma outra referência considerada fundamental para o estudo do tema, importante no contexto do presente trabalho. Trata-se de uma obra mais recente, publicada em 1992, intitulada Rubbish! The Arqueology of Garbage, de William Rathje e Cullen Murphy, mostrando como explorações arqueológicas do lixo oferecem importantes insigths sobre as culturas e as sociedades que o produzem no presente, da mesma forma que são uma fonte de informação útil sobre o passado (por exemplo, a informação sobre modos de vida contida em restos (lixo) de cerâmicas que vemos expostas nas vitrinas dos museus).

O livro relata a aplicação do método de uma escavação arqueológica ao estudo do lixo, no

Tucson Garbage Project, um estudo simultaneamente arqueológico e sociológico, sobre os

conteúdos dos contentores dos residentes da cidade de Tucson (Arizona, EUA), com objectivo de analisar padrões de consumo. Os dados quantitativos dos contentores foram comparados com a informação fornecida pelos residentes, donos desses contentores, constatando-se que nem sempre se verifica uma correspondência, umas vezes por ocultação deliberada de algum consumo (por exemplo, de álcool), outras vezes por erro de percepção. Mas, o lixo não “mente”, colocando em evidência as contradições de um consumo conspícuo.

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owned - and thrown away - can speak more eloquently, informatively, and truthfully about the lives they lead than they themselves ever may.” (Rathje e Murphy, 1992:7)6.

Neste livro, os autores juntaram a informação produzida no Garbage Project com o conhecimento sobre sociedades pré-industriais, no sentido de posicionar a preocupação sobre descartar ou eliminar o lixo num contexto histórico, mostrando como civilização e lixo andam de mãos dadas desde sempre. Desde sempre a sociedade tem vindo a procurar melhorar de forma significativa as formas de eliminar/descartar-se do lixo, o que aliás, não parou desde a altura em que foi escrito/publicado este livro (1992), nomeadamente em desenvolvimento tecnológico para tratamentos de resíduos, assim como a implementação de vários programas de reciclagem em contexto de políticas públicas que procuram fazer face ao problema do lixo. A propósito da reciclagem, os autores referem que “recycling has been embraced by some with an almost religious intensity”, o que resulta numa quantidade de materiais recolhidos que nunca podem ser reciclados, ou porque não há procura no mercado para elas ou porque os custos de tratamento desses materiais são onerosos e de grande complexidade tecnológica, o que remete para a já referida reflexão de Schnaiberg (1992), em que chama a atenção para a ideia “idílica” de que a reciclagem é colocada como a solução para o problema. No entanto, as políticas locais e nacionais têm tentado estimular nos EUA o mercado da reciclagem forçando o uso, por exemplo de papel reciclado em certas instituições. Rathje e Murphy consideram estas abordagens acima de tudo “simbólicas”, sugerindo que, para reduzir a quantidade de lixo gerado seria mais efectivo taxar as famílias pelo volume pelo volume de lixo recolhido (numa remissão para os actuais sistemas que funcionam na lógica de PAYT, Pay As You Throw).

Uma das principais mais-valias deste livro é mostrar, através de um olhar directo para o lixo que a escavação arqueológica proporciona, que aquilo que sabemos sobre o lixo é frequentemente baseado em meias verdades, percepções erradas e conhecimento incompleto.

Em suma, estas 3 referências “clássicas” servem-me sobretudo para enquadrar a questão

específica do lixo em termos culturais, não só porque o lixo é um sinal de “civilização” e da presença de um “sistema”, como estes autores mostram que as mesmas coisas podem ser lixo ou não ser lixo, dependendo de um conjunto de variáveis sociais, culturais e históricas.

Mas independentemente da relatividade lixo, o que é percepcionado como lixo é sempre algo a deitar fora, a eliminar do meio que nos rodeia, porque se trata de algo sem valor, sujo e

6The Garbage Project expandiu-se a outras cidades nos EUA, em que foram levadas a cabo escavações segundo o método arqueológico nos aterros. Durou cerca de 20 anos, entre 1973 e 1991, com William Rathje na coordenação.

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desordenado. Por seu turno, a preocupação com o que fazer ao lixo – ao que se deita fora - tem acompanhado a sociedade historicamente, o que está, por isso, também presente na implementação de programas de reciclagem e de medidas de políticas públicas, que procuram, através desta e de outras formas, eliminar o lixo de forma a manter a ordem e as coisas limpas.

As reflexões preciosas destes autores são utilizadas na análise do material recolhido ao longo do trabalho de campo, articulando-se tanto com o lixo como problema ambiental - objecto de políticas públicas - como com as práticas de interacção com o lixo - e a propósito do lixo - no quotidiano dos agregados familiares.