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E se o contentor não existisse, como iríamos despejar o lixo?

II.3. A nova vaga de estudos sobre o lixo

II.3.2. E se o contentor não existisse, como iríamos despejar o lixo?

No conjunto de pesquisas que procuram contribuir para um desenvolvimento sustentável e para a mudança social em relação à forma como enfrentar os desafios ambientais,

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nomeadamente o problema que o excesso de lixo produzido coloca, o trabalho realizado por Tom Hargreaves, foi bastante inspirador para a reflexão e análise em torno do material empírico que recolhi, em particular o seu artigo Practice-ing behaviour change: Applying

social practice theory to pro-environmental behavior change (2011), em que apresenta um

forte contributo para a consolidação da aplicação da Teoria Social das Práticas para a investigação sobre a mudança social pro-ambiental. O estudo de caso que me chamou a atenção envolveu precisamente a questão dos resíduos.

O âmbito é uma iniciativa promovida por uma entidade ambientalista sem fins lucrativos –

Environment Champions – que decorre em contexto de trabalho, nos escritórios de uma

empresa de construção em Inglaterra, cujo objectivo apresentado de forma genérica é a diminuição da pegada ecológica através da mudança de práticas. Forma-se uma equipa interna de Champions que dinamiza a iniciativa e as pessoas são envolvidas e chamadas a participar com ideias e opiniões ao longo do processo. Neste contexto, Hargreaves desenvolveu um trabalho sobre a mudança de comportamentos em prol do ambiente, recorrendo para isso a metodologias que oferecem a possibilidade de observar o que acontece no fazer das práticas quotidianas. Para isso, a metodologia que adoptou foi de carácter etnográfico, com observação participante durante 9 meses, com um diário de campo e 38 entrevistas semi- estruturadas como principais fontes e registos para uma análise de abordagem construtivista de grounded theory para identificar os principais temas e assuntos que surgiram ao longo da pesquisa.

No âmbito da sua pesquisa, solicitou às pessoas que observassem os seus comportamentos e os dos outros ao longo da Iniciativa, um pedido que se deve ao facto de se tratar de um tipo de práticas tão incorporadas no quotidiano, que nem se pensa nelas, o que torna mais difícil a pessoa ver a sua prática com distanciamento. O processo de audição e auto-audição cria um espaço de reflexividade que estimula a criação do novo, de uma reorientação, que espontaneamente não iria surgir por ser uma prática incoporporada e inquestionada. “The audit process was thus vital in helping to re-materializa inconspicuous patterns, and also in localizing and connecting “the environment” to everyday practice.” (Hargreaves, 2011: 86)“From a social practice-based perspective, the audit can be seen as problematizing the links between the images, skills ant stuff of a whole bundle os practices.” (Hargreaves, 2011:87)

Ora, uma das propostas que decorreu da implementação de Environment Champions, e que é emblemática dos desafios que são colocados às pessoas neste tipo de programas que questionam e procuram substituir práticas, foi a iniciativa do No Bin Day. A proposta

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consistia, basicamente, em retirar os caixotes do lixo por baixo das secretárias dos escritórios por um dia, de forma a melhorar as infra-estruturas de reciclagem existentes, aplicando a proposta de Spaargaren e Van Vliet (2000) de des-rotinizar os hábitos existentes (neste caso, de despejar o lixo) e re-rotinizar novos.

Mas esta ideia aparentemente simples de experiência de um dia revelou a dificuldade que é por em causa as práticas de despejar o lixo que estão instaladas. Hargreaves descreve a defesa do status quo que se levantou à ideia de mudança: “As soon as the No Bin Day proposal was mentioned, it ran into problems. First, David (Champion Team) suggested that it may breach Burnetts contract with its cleaners as it would leave them less work. Next, when the proposal was sent to Brian (non-Champion) the Facilities Manager, who was responsable for waste management at the site, he raised a number of objections: the waste in the wrong bin colud breach data protection laws, that the lack of bin for food waste could lead to hygiene problems and that placing new recycling bins in corridors could be a fire harzard.”(Hargreaves, 2011:90-91). As resistências e objecções foram-se manifestando de várias formas e de várias fontes, chegando mesmo a ser argumentado nas discussões a ideia de que “as pessoas têm o direito de esperar que um caixote do lixo faça parte de um

escritório normal”.

Conclusão, o No Bin Day não chegou a acontecer. E, em vez de retirar os caixotes do lixo, acabaram por ser distribuídos tabuleiros para reciclar papel para colocar em cima da secretária, com o acordo do Gestor de Equipamentos, um dos principais opositores à ideia da experiência.

No final da iniciativa, as rotinas no escritório eram as mesmas que anteriormente. As práticas, de facto, não mudaram muito em si mesmas, apenas de forma subtil. No entanto, os resultados foram concretos e efectivos, observando-se uma redução na pegada ecológica. Esta redução da pegada significa que houve práticas (novas) que foram absorvidas nas práticas (habituais), pela forma como estas práticas passaram a ser abordadas. Ou seja, aquelas práticas mais invisíveis e de rotina, começaram a ter uma performance que incorpora as competências ambientais adquiridas durante a iniciativa, o que se generalizou a todos que trabalhavam no escritório.

Também se constaram resultados ao nível das interacções: novas interacções e identidades foram criadas, e são elas que sustentam a mudança de forma incorporada nas práticas: as pessoas não deixaram de produzir lixo e de o deitar fora, mas “descobriram” e “aceitaram” que podem fazê-lo de outra forma... O facto dos procedimentos e das regras terem sido negociados em conjunto, ofereceu ao grupo algo comum, passando a ser aceite que se

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(re)lembrassem uns aos outros dessas mesmas regras, que o próprio grupo tinha aceite. Toda a dinâmica e a condução da iniciativa, envolvendo desde o início as pessoas, favorecendo a participação colectiva, criou uma nova forma de interacção e uma nova forma de falar acerca de si próprios e dos colegas, abrindo-se a uma reflexão sobre identidade ambiental e da empresa, o que até ali era inexistente. Este é um resultado muito relevante em termos de mudança social.

Por seu turno, este trabalho mostra que a mudança de comportamentos não tem de ser precedida por atitudes, valores e intenções ambientais. “If practices are indeed (re)produced through their regular performance, it is precisely these subtle shifts in the elements of practice and in how they are experienced by practitioners that will prove central to their broader transformation.” (Hargreaves, 2011:95).

O exemplo permite ver bem como o caixote do lixo por baixo das secretárias nos escritórios implica, e pode mesmo colidir, noutras práticas, em padrões normativos e profissionais, regulações legais e nas interacções sociais. Mostra assim que as práticas são mais definidas por sistemas de provisão e não tanto dos valores e motivações das pessoas que trabalham nessas secretárias e que usam esses caixotes do lixo.

Ficou claro que há comunidades de práticas investidas do interesse em preservar o status quo. Este tipo de ligações passaria despercebido noutro tipo de análise mais funcionalista sobre a mudança de comportamentos e que se focasse nas atitudes e valores ambientais explícitos pelos indivíduos ou pelas instituições.

A visão holística que a Teoria das Práticas oferece, permite explorar o que se passa ao nível das práticas e dos seus praticantes, e abre o olhar sociológico a um conjunto mais vasto de elementos envolvidos num processo de mudança de práticas no quotidiano, revelando as dificuldades profundas que a mudança, qualquer mudança - mesmo a que se move num domínio mais ou menos consensual da necessidade ambiental de gestão de resíduos num planeta em crise – enfrenta perante a organização normal do dia-a-dia. É precisamente neste ponto das dificuldades que a Teoria das Práticas permite ver a necessidade de compreender mais o papel das interacções sociais e das relações de poder que estão presentes no desempenho das práticas de rotina, o que evoca a pertinência do modelo dramatúrgico de Goffman (1959).

Neste caso, a iniciativa teve como cenário um escritório, mas a casa ou a rua onde se vive, ou outros espaços da vida quotidiana, podem ser perspectivados como arenas de negociações que envolvem todas as componentes de uma prática.

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action research, a reflexão de Hargreaves sobre o processo de mudança de práticas (de

despejar o lixo), torna mais ampla e profunda a visão sobre a questão, integrando na análise as relações de poder as interacções sociais, onde se revelam as conexões, alianças e conflitos entre práticas, que enuncia Warde (2005), contribuindo para o desenvolvimento e consolidação desta linha teórica.