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A sucessão do companheiro antes do Código Civil de

No documento Flávio Tartuce - Vol. 06.pdf (páginas 148-150)

A união estável ou a união livre sempre foi reconhecida como um fato jurídico, seja no Direito Comparado, seja entre nós. Por certo é que, hoje, a união estável assume um papel relevante como entidade familiar na sociedade brasileira, eis que muitas pessoas, principalmente das últimas gerações, têm preferido essa forma de união em detrimento do casamento.

Na verdade, em um passado não tão remoto, o que se via era a união estável como alternativa para casais que estavam separados de fato e que não poderiam se casar, pois não se admitia, no Brasil, o divórcio como forma de dissolução definitiva do vínculo matrimonial. Hoje, tal situação vem sendo substituída paulatinamente pela escolha dessa entidade familiar por muitos casais na contemporaneidade. Em suma, no passado, a união estável era constituída, em regra, por falta de opção. Hoje, muitas vezes, por clara opção.

No caso do Brasil, a primeira norma a tratar do assunto foi o Decreto-lei 7.036/1944, que reconheceu a companheira como beneficiária da indenização no caso de acidente de trabalho de que foi vítima o companheiro, lei que ainda é aplicada na prática. Posteriormente, a jurisprudência passou a reconhecer direitos aos conviventes, tratados, antes da Constituição Federal de 1988, como concubinos. Como explica Euclides de Oliveira: “Mesmo antes das mudanças ocorridas na esfera legislativa, a questão da vida concubinária já evoluía em outras direções, desde seu reconhecimento como fato gerador de direitos entre as partes, como pioneiramente sustentado por Edgard de Moura Bittencourt, em sua monumental obra ‘Concubinato’, abrindo caminho ao reconhecimento judicial da sociedade de fato estabelecida entre pessoas unidas por laços distintos dos vínculos conjugais” (União..., 2003, p. 76).

Euclides de Oliveira cita, nesse ínterim, a antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, com grandes contribuições à inclusão dos direitos do convivente. Destaca, inicialmente, a sua Súmula n. 35, que reconhecia o direito à indenização acidentária em favor da companheira, antes mesmo da norma citada. Releva, ainda, a notável Súmula n. 380, do ano de 1964, com a seguinte redação: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua dissolução judicial

com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. De forma continuada no tempo, acrescentando a esse tratamento anterior um novo direito, a Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) passou a admitir a possibilidade de a companheira usar o sobrenome do seu companheiro (art. 57, § 2.º).

A Constituição Federal de 1988 reconheceu, no seu art. 226, § 3.º, a união estável como entidade familiar, nos seguintes termos: “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”. Diante do que consta do texto constitucional, sempre nos filiamos ao entendimento segundo o qual a união estável não seria igual ao casamento, uma vez que institutos iguais não se convertem um no outro. Justamente por isso é que havia um tratamento diferenciado no tocante ao Direito das Sucessões. Todavia, com a decisão do STF que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil e que equiparou a união estável ao casamento para os fins sucessórios, essa afirmação parece ter caído por terra (STF, Recurso Extraordinário 878.694/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, com repercussão geral, já com sete votos prolatados em 31.08.2016).

Em reforço, com o tratamento familiar encartado no Texto Maior, a união estável deixou de ser denominada como concubinato, o que deve ser observado pelo aplicador do Direito, pois a confusão ainda existe no foro familiarista e sucessionista.

De qualquer forma, sempre lembramos que a união estável, assim como o casamento, constitui uma entidade familiar, base da sociedade, nos termos do art. 226, caput, do Texto Maior, não havendo hierarquia entre os institutos (Cf. LÔBO, Paulo. Famílias..., 2008, p. 151; SIMÃO, José Fernando. Efeitos..., In: _______; CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu; FUJITA, Jorge; ZUCCHI, Maria Cristina (Coord.). Direito..., 2010, p. 351). Esse, aliás, é o posicionamento capitaneado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, o IBDFAM, e seguido por este autor.

No tocante à legislação aplicável, após a Constituição Federal de 1988, exatamente para dar efetividade ao dispositivo constitucional, entrou em vigor a Lei 8.971/1994, com amplos direitos reconhecidos aos conviventes. Em relação ao direito sucessório, reafirme-se que estabelecia o seu art. 2.º que o companheiro era reconhecido como herdeiro, nas seguintes condições: a) o(a) companheiro(a) sobrevivente teria direito, enquanto não constituísse nova união, ao usufruto da quarta parte dos bens do de cujus, se houvesse filhos ou comuns; b) o(a) companheiro(a) sobrevivente teria direito, enquanto não constituísse nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se não houvesse filhos, embora sobrevivessem ascendentes; c) na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente teria direito à totalidade da herança.

Como se constata, o sistema jurídico estabelecia um regime sucessório que combinava o usufruto sobre bens com a atribuição da propriedade plena. Além disso, o companheiro teria ainda reconhecido o direito à meação dos bens adquiridos por sua colaboração, o que não correspondia à comunhão parcial, mas a um regime que dependia da prova do esforço comum, na linha do que era estabelecido pela antiga Súmula 380 do STF (art. 3.º da Lei 8.971/1994).

Cabe pontuar que antes da entrada em vigor dessa lei especial, por falta de regulamentação, a jurisprudência superior entendia que o convivente não teria qualquer direito sucessório. Concretizando, como exemplo, se o falecido deixasse uma companheira e colaterais, os últimos deveriam receber a totalidade da herança:

“União estável. Sucessão. Lei vigente. Antes da edição da Lei 8.971/94, o colateral do de cujus recebia a herança, a falta de descendente e de ascendente (art. 1.603 do CC). Recurso provido em parte” (STJ, REsp 79.511/GO, 4.ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 28.02.1996, DJ 22.04.1996, p. 12.578).

Depois, seguindo no tempo, surge a Lei 9.278/1996, que para o seu mentor intelectual e idealizador, o Professor Álvaro Villaça Azevedo, não revogou totalmente a primeira, havendo, no passado, uma aplicação concomitante das normas, uma colcha de retalhos legislativa. Quanto à participação patrimonial ou regime de bens, previa o seu art. 5.º que “os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito”.

Note-se que a lei mencionava a existência de um condomínio e não de uma comunhão, havendo grande divergência doutrinária e jurisprudencial se a comunhão parcial já era o regime da união estável antes do Código Civil de 2002, assunto abordado no Volume 5 desta coleção.

No âmbito sucessório, reconhecia o seu art. 7.º, parágrafo único, o direito real de habitação a favor do companheiro, enquanto vivesse ou não constituísse nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família. A persistência desse direito foi muito debatida nos últimos anos, como ainda será abordado.

2.13.2

verdade que poderia ser utilizada a expressão companheiros, constante da primeira lei, bem como o termo conviventes, prevista na última. Pontue-se, a propósito, que um dos temas mais polêmicos a respeito da convivência das duas leis dizia respeito justamente à possibilidade de o companheiro cumular, em matéria sucessória, o usufruto e a propriedade plena – tratados pela Lei 8.971/1994 –, e o direito real de habitação – consagrado pela Lei 9.278/1996. A doutrina majoritária entendia e ainda conclui por essa cumulação, o que é plenamente apoiado por este autor (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários..., 2003, v. 20, p. 55; ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código..., 2003, v. XVIII, p. 68; VELOSO, Zeno. Código..., 2012, p. 2008-2009; CAHALI, Francisco José. Direito..., 2012, p. 210; LÔBO, Paulo. Direito..., 2013, p. 143; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito..., 2010, v. 6, p. 206).

Cabe consignar, em complemento, que a jurisprudência superior, na mesma linha, vinha admitindo tal conjugação de direitos, com a cumulação de tratamento sucessório nas duas leis, e dando ao companheiro um tratamento similar ao cônjuge, para fins sucessórios. Assim julgando, por todos:

“Recurso especial. União estável. Direito de herança. Lei 8.971/1994. Lei 9.278/1996. Com a entrada em vigor da Lei 9.278/1996 não foi revogado o art. 2.º da Lei 8.971/1994 que garante à companheira sobrevivente direito à totalidade da herança, quando inexistirem ascendentes e descendentes. Quanto aos direitos do companheiro sobrevivente, não há incompatibilidade entre a Lei 9.278/1996 e a Lei 8.971/1994, sendo possível a convivência dos dois diplomas. Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp 747.619/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.06.2005, DJ 01.07.2005, p. 534).

“União estável. Direito da companheira à herança. Lei 8.971/1994. Lei 9.278/1996. 1. O advento da Lei 9.278/1996 não revogou o art. 2.º da Lei 8.971/1994, que regulou o direito da companheira à herança de seu falecido companheiro, reconhecida a união estável. 2. Recurso especial conhecido e provido” (STJ, REsp 418.365/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 21.11.2002, DJ 28.04.2003, p. 198).

Nesse sistema anterior, diante da não inclusão do companheiro na vocação hereditária do antigo art. 1.603 do Código Civil de 1916, já existiam críticas a respeito de um sistema supostamente discriminatório, o que é sustentado pelo IBDFAM desde a sua fundação, que ocorreu no ano de 1997.

De qualquer modo, sempre houve na doutrina quem visse nesse sistema anterior o reconhecimento de mais direitos sucessórios aos companheiros do que no sistema então vigente, até o julgamento do STF de agosto de 2016, sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002, ainda não encerrado, mas já com sete votos.

Conforme ponderava Zeno Veloso, a respeito das leis anteriores, houve uma “nítida intenção de equiparar a situação destes com a dos cônjuges”, sendo a legislação em vigor um retrocesso (Código..., 2012, p. 2.009). Igualmente, Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim ensinavam que “com o novo Código Civil deu-se um visível retrocesso no tratamento igualitário antes dispensado ao companheiro. Foi limitada sua participação na herança, em descompasso com o tratamento mais benéfico dispensado ao cônjuge viúvo” (AMORIM, Sebastião; OLIVEIRA, Euclides. Inventários..., 2009, p. 163).

Em suma, alguns doutrinadores sustentavam que o companheiro deveria ser equiparado ao cônjuge e incluído na ordem de vocação hereditária do então art. 1.603 do Código Civil de 1916, o que era acompanhado por alguns julgados, aqui antes colacionados.

De fato, a matéria relativa à união estável encontra-se tratada expressamente pelo Código Civil de 2002, que traz um capítulo próprio a respeito dessa entidade familiar, entre os seus arts. 1.723 a 1.727; além de um dispositivo sucessório, o polêmico e tão alvejado e ora tido como inconstitucional art. 1.790, tema do próximo tópico deste capítulo, a seguir desenvolvido.

Do polêmico art. 1.790 do Código Civil. Visão geral até a declaração de inconstitucionalidade pelo

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