• Nenhum resultado encontrado

CONCORRÊNCIA COM OS DESCENDENTES O PROBLEMA DA CONCORRÊNCIA HÍBRIDA NA SUCESSÃO DO CÔNJUGE COM OS DESCENDENTES

No documento Flávio Tartuce - Vol. 06.pdf (páginas 118-121)

Superado o estudo de todas essas intrincadas questões, outra regra importante a respeito da concorrência do cônjuge com os descendentes consta do art. 1.832 do Código Civil brasileiro de 2002, mais uma novidade introduzida no sistema, cuja redação merece destaque:

“Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer”.

De início, a norma enuncia que o cônjuge supérstite terá direito ao mesmo quinhão que receberem os descendentes que sucederem por cabeça, ou seja, por direito próprio, e não por direito de representação. Nesse ponto não importa se o filho é havido de ambos (filhos comuns) ou só do autor da herança (filhos exclusivos).

Em suplemento, o comando consagra a reserva de 1/4 da herança ao cônjuge, se ele for ascendente dos descendentes com quem concorrer. A tutela dessa quarta parte da herança ou de vinte e cinco por cento sobre o patrimônio sucessível visa a manter um mínimo vital a favor do cônjuge, um patrimônio mínimo do sucessor, em citação à célebre obra de Luiz Edson Fachin (Estatuto..., 2001).

Acredita-se que tal reserva também foi introduzida no Código Civil com o intuito de substituir o antigo usufruto legal vidual, tratado anteriormente no art. 1.611, § 1.º, do Código Civil de 1916. Vale relembrar que, nos termos da codificação revogada, o cônjuge viúvo, se o regime de bens do casamento não fosse o da comunhão universal de bens, teria direito, enquanto durasse a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houvesse filhos, deste ou do casal. Se não houvesse filhos, embora sobrevivessem ascendentes do de cujus, o cônjuge supérstite teria direito ao usufruto sobre a metade dos bens do falecido.

Ainda pela norma em vigor, se o cônjuge concorrer somente com descendentes exclusivos do falecido, do autor da herança, não haverá a referida reserva patrimonial da quarta parte. Alguns julgados já aplicam a inovação, entendendo que a referida reserva é cumulável com o direito real de habitação, tema que ainda será abordado no presente capítulo:

“Inventário. Sucessão legítima. Cônjuge supérstite casada com o de cujus no regime da comunhão parcial de bens. Falecido que deixou apenas um bem imóvel, adquirido antes do casamento. Direito da mulher de concorrer com os descendentes na proporção determinada pelo artigo 1.832 do Código Civil, assegurado ainda o direito real de habitação. Aplicação dos artigos 1.829, I, e 1.831, do Código Civil. Recurso provido” (TJSP, Agravo de Instrumento 990.09.371315- 2, Acórdão 4529290, 2.ª Câmara de Direito Privado, Fernandópolis, Rel. Des. Morato de Andrade, j. 01.06.2010, DJESP 02.07.2010).

“Arrolamento. Casamento presumivelmente celebrado pelo regime da comunhão parcial de bens. Imóvel próprio do falecido, adquirido antes das núpcias. Aplicação do disposto no art. 1.829, I, parte final, do Código Civil. Viúva que

concorre com a filha do falecido, na forma prevista no art. 1.832 do Código Civil. Incidência, em tese, também de direito real de habitação a favor da viúva, se esta habitava o imóvel com o falecido. Correta determinação de inclusão da viúva nas primeiras declarações como herdeira, com subsequente citação como herdeira. Recurso improvido” (TJSP, Agravo de Instrumento 595.996.4/4, Acórdão 3298536, 4.ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, Rel. Des. Francisco Eduardo Loureiro, j. 09.10.2008, DJESP 17.11.2008).

Na verdade, a questão de efetivar ou não a reserva da quarta parte somente ganhará relevo se houver a concorrência com mais de três descendentes do falecido, situação em que a reserva poderia ficar em xeque. Em outras palavras, quando o cônjuge concorre com um, dois ou três descendentes do de cujus, a citada reserva já lhe é garantida pela obviedade da situação concreta, não havendo maiores dificuldades.

Todavia, surge, no presente ponto da matéria, outra polêmica sucessória. O debate que o dispositivo desperta tem relação com a chamada sucessão híbrida, expressão criada por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, presente quando o cônjuge concorre com descendentes comuns (de ambos) e com descendentes exclusivos do autor da herança (Comentários..., 2007, v. 20, p. 235-236). Isso porque tal hipótese, de existência de descendentes em situações de origens diversas, não foi prevista pelo legislador, presente uma lacuna normativa.

Novamente podem ser destacadas duas correntes fundamentais a respeito do dilema, retiradas da tabela Cahali. Aqui, há uma primeira corrente que prevalece de forma considerável sobre a outra, o que torna a questão mais tranquila no âmbito doutrinário.

Para a primeira vertente, majoritária, havendo sucessão híbrida, não se deve fazer a reserva da quarta parte ao cônjuge, tratando-se todos os descendentes como exclusivos do autor da herança. Nessa esteira posicionam-se Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Fujita, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Diniz, Maria Helena Braceiro Daneluzzi, Mário Delgado, Mário Roberto Carvalho de Faria, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Zeno Veloso, além do presente autor. Em sua obra lançada no ano de 2014, a essa corrente se alinham Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (Novo Curso..., 2014, v. 7, p. 234).

Esse posicionamento prestigia os filhos em detrimento do cônjuge, sendo essa a opção constitucional, na opinião deste autor. Adotando a premissa, na V Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em 2011, aprovou-se o seguinte enunciado doutrinário, que confirma essa visão da maioria: “Na concorrência entre o cônjuge e os herdeiros do de cujus, não será reservada a quarta parte da herança para o sobrevivente no caso de filiação híbrida” (Enunciado n. 527).

Para uma segunda corrente, havendo sucessão híbrida, deve ser feita a reserva da quarta parte ao cônjuge, tratando-se todos os descendentes como se fossem comuns. Assim pensam Francisco José Cahali, José Fernando Simão e Sílvio de Salvo Venosa. Sustenta-se que a existência de filhos comuns justifica a incidência da reserva, não importando que com eles existam filhos exclusivos do autor da herança. Para fundar tal forma de pensar, em edições anteriores deste livro, apontava José Fernando Simão que, “se a lei não exigiu que concorresse o cônjuge com a totalidade dos descendentes para ter o direito à reserva de 1/4 da herança, basta que um descendente seja comum para que a reserva exista, ainda que o falecido tenha deixado outros descendentes exclusivos. Ademais, essa posição privilegia o cônjuge com relação aos descendentes e atende ao objetivo do sistema de concorrência criado pelo Código Civil de 2002. Toda a mudança legislativa teve por escopo a proteção do cônjuge, ainda que em detrimento da participação dos descendentes na sucessão. A reserva da quarta parte vem de encontro com o objetivo do legislador: o amparo ao cônjuge sobrevivente” (TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito..., 2013, v. 6, p. 184).

No entanto, além dessas duas correntes primordiais, existem outros pensamentos isolados de alguns doutrinadores que também devem ser expostos nesta nova edição deste livro, na linha do que já constava das anteriores. Tais pensamentos estão baseados no que se denomina teoria das sub-heranças, tendo sido desenvolvidos pelos juristas Eduardo de Oliveira Leite, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Flávio Augusto Monteiro de Barros. Vejamos.

a) Teoria de Eduardo de Oliveira Leite

O Professor Titular da Universidade Federal do Paraná propõe a “composição pela solução mista, dividindo-se proporcionalmente a herança, segundo a quantidade de descendentes, com posterior abatimento da reserva na quota dos herdeiros comuns” (LEITE, Eduardo de Oliveira. A nova... In: ALVES, Jones Figueirêdo; DELGADO, Mário Luiz. Questões..., 2003, v. 1, p. 459).

O jurista opina pela divisão da herança de forma igualitária entre todos os filhos. Posteriormente, a herança deve ser fracionada em blocos, um dos filhos comuns e outro dos filhos exclusivos do falecido. Sobre o valor do primeiro bloco haveria

a reserva da quarta parte e o restante deve ser partilhado entre os filhos do segundo bloco. Com isso, preserva-se, para ele, a igualdade entre os filhos, consagrada no art. 227, § 6.º, da Constituição Federal e no art. 1.832 do Código Civil em relação à divisão igualitária entre os descendentes. Na verdade, isso não ocorre, pois os filhos recebem montantes diversos. O exemplo concreto criado por José Fernando Simão, e exposto em edições anteriores deste livro, traz essa constatação:

“Imagine-se que o falecido tenha deixado 5 filhos, sendo 3 comuns e 2 exclusivos, além de seu cônjuge. Consideraremos que a herança é de R$ 100.000,00. Vamos seguir os passos indicados pelo Professor Eduardo de Oliveira Leite:

1.º passo – Divisão da herança entre todos os filhos – R$ 20.000,00 para cada filho.

2.º passo – Divisão da herança em blocos – Bloco A – Filhos comuns – R$ 60.000,00 (porque são 3). Bloco B – filhos exclusivos – R$ 40.000,00 (porque são 2).

3.º passo – Sobre o valor do bloco A (sub-herança dos filhos comuns), haveria a reserva de quinhão de 1/4 para o cônjuge que corresponde a R$ 15.000,00 (correspondente a 1/4 de R$ 60.000,00) e os outros R$ 45.000,00 seriam partilhados entre os 3 filhos comuns” (TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito..., 2013, v. 6, p. 186).

O quadro a seguir, apresentado pelo então coautor na mesma página da edição anterior, não deixa dúvidas quanto ao tratamento diferenciado dos herdeiros, em afronta à igualdade constitucional entre os filhos.

Divisão final da herança Cônjuge – 1/4 reservado da parte dos filhos

comuns R$ 15.000,00 R$ 15.000,00

Quota de cada filho comum R$ 15.000,00 (x 3) R$ 45.000,00

Quota de cada filho exclusivo R$ 20.000,00 (x 2) R$ 40.000,00

Total R$ 100.000,00

Diante da afronta ao Texto Maior da legislação brasileira, não há como seguir tal forma de julgar a questão da reserva da quarta parte na sucessão híbrida, sendo importante frisar a impossibilidade de tratamento diferenciado entre os filhos.

b) Teoria exposta por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

A Professora Titular da USP apresenta outra solução para a suposta solução do problema da reserva ou não da quarta parte na sucessão híbrida, apesar de não segui-la como opinião pessoal (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Concorrência..., Disponível em: <www.flaviotartuce.adv.br>. Acesso em 20 de dezembro de 2013). Nesse mesmo texto, a jurista critica duramente as todas as posições existentes sobre a matéria, especialmente aquelas que apontam pura e simplesmente que a reserva deve ocorrer ou não.

Para a doutrinadora, deve-se proceder à divisão da herança entre todos os filhos. Sucessivamente, são criadas duas sub- heranças, uma dos filhos comuns e outra dos filhos não comuns. Como terceiro passo, divide-se o quinhão dos filhos exclusivos de acordo com o número de herdeiros, somados tais descendentes e o cônjuge. Faz-se o mesmo no quinhão dos filhos comuns, incluindo-se também o cônjuge. São somadas as duas quotas do cônjuge em cada um dos grupos, e o valor final será superior à quarta parte que a lei assegura.

Aqui existem dois inconvenientes. Mais uma vez, os filhos recebem quotas diversas ao ingressarem em grupos distintos para o cálculo, em afronta ao Texto Maior. Além disso, a quota do cônjuge será superior à quarta parte, a 25% da herança, não tendo sido esta a intenção da lei. Reafirme-se que a Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka apenas apresenta a solução, mas não a segue, o que é compartilhado por este autor.

c) Teoria de Flávio Augusto Monteiro de Barros

O ex-magistrado e professor paulista igualmente apresenta uma suposta solução baseada na teoria das sub-heranças para resolver o problema da sucessão híbrida e da reserva da quarta parte do cônjuge (MONTEIRO DE BARROS, Flávio Augusto. Manual..., 2004, v. 4, p. 208).

Para ele, é necessário dividir a herança pela soma de herdeiros, ou seja, pelo número total de filhos e o cônjuge. Na sequência, subtrai-se da herança a parte dos filhos exclusivos, que ele denomina filhos incomuns. Sucessivamente, apura-se qual

2.6

seria o montante de 1/4 da herança para a devida reserva ao cônjuge, sem a parte dos filhos incomuns. Subtrai-se da herança a parte do cônjuge, dividindo o resultado pelo número de filhos. Dentre as soluções apresentadas, esta é a única em que os filhos recebem quotas iguais, mantendo-se o regramento de igualdade constitucional.

O próprio Flávio Augusto Monteiro de Barros apresenta um caso concreto. O falecido deixa cônjuge supérstite, quatro filhos comuns e um filho exclusivo e a herança de R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais). Deve-se dividir a herança de R$ 1.200,00 por 6 (5 filhos + 1 cônjuge), totalizando a importância de R$ 200,00. Ato contínuo, extrai-se da herança a parte do filho exclusivo, restando a quantia de R$ 1.000,00. Verifica-se a parte do cônjuge que corresponde à quarta parte, sem a parte desse filho exclusivo ou incomum. Assim, 1/4 sobre R$ 1.000,00 representa o montante de R$ 250,00, que é aquilo que o cônjuge recebe como herança. Subtrai-se da herança a parte do cônjuge, dividindo o resultado entre os filhos. Em suma, retira-se R$ 250,00 dos R$ 1.200,00, restando R$ 950,00. Essa última importância será dividida entre os cinco filhos, o que totaliza R$ 190,00 para cada (Manual..., 2004, v. 4, p. 209).

A vantagem da teoria apresentada é que ela preserva a igualdade constitucional, pois os filhos recebem quotas iguais. Todavia, a solução é pouco operável, de difícil aplicação pelo julgador, até porque os aplicadores do Direito não são afeitos a cálculos matemáticos. Em resumo, apesar de correta, preferimos seguir o entendimento mais simples, que afasta a reserva da quarta parte havendo sucessão híbrida em concorrência do cônjuge.

Na prática jurisprudencial, realizada a devida pesquisa, não foi encontrado qualquer acórdão que enfrenta toda essa problemática relativa à reserva da quarta parte na sucessão híbrida, muitos menos arestos que fazem incidir as teorias das sub- heranças. Em mais de dez anos de prática do Código Civil de 2002, ainda não surgiu um caso que clamasse pela posição da jurisprudência a respeito de mais esse intrincado problema criado pela concorrência sucessória.

No documento Flávio Tartuce - Vol. 06.pdf (páginas 118-121)

Outline

Documentos relacionados