• Nenhum resultado encontrado

CONCORRÊNCIA NOS REGIMES DA COMUNHÃO PARCIAL E DA SEPARAÇÃO DE BENS

No documento Flávio Tartuce - Vol. 06.pdf (páginas 105-118)

Como exposto nos dois primeiros tópicos deste capítulo, o art. 1.829 do CC/2002 introduziu a concorrência do cônjuge do falecido com os descendentes na ordem de vocação hereditária, dependendo do regime de bens adotado entre o falecido e o cônjuge sobrevivente, denominado supérstite.

A importância do tema e os desafios surgidos são tão grandes que a concorrência ganhou especial cuidado de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka em sua tese de titularidade defendida na Universidade de São Paulo, ao final de 2010 (Morrer..., 2011). Não se pode esquecer, mais uma vez, da inclusão do cônjuge homoafetivo, para todos os fins, inclusive de concorrência sucessória.

Repise-se, portanto, pela sua importância para este tópico, a redação do art. 1.829, I, da atual codificação privada:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares”.

Reafirme-se, mais uma vez para que não pairem dúvidas, que os descendentes e o cônjuge são herdeiros de primeira classe, em um sistema de concorrência, presente ou não de acordo com o regime de bens adotado no casamento com o falecido, conforme tabela a seguir, elaborada de acordo com a dicção legal:

Regimes em que o cônjuge herda em concorrência Regimes em que o cônjuge não herda em concorrência

Regime da comunhão parcial de bens, havendo bens particulares do falecido.

Regime da participação final nos aquestos. Regime da separação convencional de bens, decorrente de pacto antenupcial.

Regime da comunhão parcial de bens, não havendo bens particulares do falecido. Regime da comunhão universal de bens.

Regime da separação legal ou obrigatória de bens.

Várias são as decorrências do quadro elaborado e que devem ser trazidas ao estudo. Constata-se que objetivo do legislador foi separar claramente a meação da herança. Assim, pelo sistema instituído, quando o cônjuge é meeiro, não é herdeiro; quando é herdeiro, não é meeiro. Nesse sentido, mencione-se a didática afirmação de Cláudio Luiz Bueno de Godoy, citada por Gustavo Rene Nicolau: “Onde o cônjuge herda, não meia; onde meia, não herda” (NICOLAU, Gustavo Rene. Direito..., 2011, p. 85).

Nunca se pode esquecer que a meação não se confunde com a herança, sendo este baralhamento muito comum entre os operadores do Direito. Meação é instituto de Direito de Família, que depende do regime de bens adotado e da autonomia privada dos envolvidos, que estão vivos. Herança é instituto de Direito das Sucessões, que decorre da morte do falecido. Nessa linha, conforme a tese número 1, publicada na ferramenta Jurisprudência em Teses do STJ, que trata da união estável (Edição n. 50, de 2016), “os princípios legais que regem a sucessão e a partilha não se confundem: a sucessão é disciplinada pela lei em vigor na data do óbito; a partilha deve observar o regime de bens e o ordenamento jurídico vigente ao tempo da aquisição de cada bem a partilhar”. Cabe esclarecer que a premissa firmada aplica-se integralmente à sucessão do cônjuge.

A ilustrar caso prático que afasta tal confusão, conforme se retira de didático acórdão da 10.ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, com citação das edições anteriores deste livro: “Desse modo, nos termos do artigo 1.829, inciso I, do Código Civil, o agravante não concorrerá com os descendentes. Caber-lhe-á somente a meação dos bens. (...). Nesse contexto, o levantamento da quantia de R$ 344.087,24, valor decorrente do arrendamento do imóvel rural denominado Fazenda Santa’Ana, refere-se à meação, que resulta do regime de bens. Referido valor nem mesmo integra a herança e, consequentemente, não será objeto de partilha entre os herdeiros” (Agravo de Instrumento 0071439-28.2010.8.26.0000, Rel. Des. Ana de Lourdes Coutinho Silva, j. 27.03.2012).

Feitos tais importantes esclarecimentos, vejamos as principais consequências teóricas e práticas da concorrência do cônjuge com os descendentes, regime por regime.

a) Regime da comunhão parcial de bens

Iniciaremos o estudo da matéria pelo regime da comunhão parcial, aquele que é o regime legal ou supletório no Direito brasileiro, prevalecente entre os cônjuges não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, nos termos do 1.640, caput, do CC/2002. Vale lembrar que a premissa-regra desse regime é a comunicação somente dos bens havidos durante o casamento, excluindo-se os bens anteriores e havidos por doação ou sucessão.

Em casos tais, pelo texto legal, haverá concorrência sucessória do cônjuge, se o falecido deixar bens particulares. Como bens particulares entendem-se justamente os bens que não se comunicam nesse regime, como aqueles anteriores ao casamento, ou que o cônjuge recebeu por doação ou herança, além de outros descritos no art. 1.659 do Código Civil.

Fica em xeque a hipótese em que o regime em relação ao falecido é o da comunhão parcial de bens, não tendo o de cujus deixado bens particulares, porque, como observa Zeno Veloso em suas palestras e exposições, é provável que o morto tenha deixado pelo menos a roupa do corpo, sendo esta um bem particular. Ilustrando didaticamente, um mendigo, por exemplo, tem pelo menos uma roupa e um cachorro.

concorrência, tornando o texto praticamente sem incidência prática. Eis mais um cochilo do legislador, que não pensou a norma de acordo com o seu substrato social. De qualquer modo, podem ser encontrados arestos que afastam a concorrência sucessória pela ausência de tais bens. Por todos:

“Arrolamento de bens. Esboço de partilha. Casamento sob o regime de comunhão parcial de bens. Patrimônio que foi adquirido por esforço conjunto. Ausência de bens particulares do falecido. Cônjuge que não é herdeira, mas meeira em 50% do patrimônio a partilhar. Única filha do de cujus, de relacionamento anterior, que deve figurar como herdeira da metade remanescente do patrimônio. Interpretação do artigo 1.829 do Código Civil. Impugnação ao esboço de partilha acolhida. Agravo desprovido. Cônjuge supérstite não concorre, na sucessão, com os descendentes se, casado pelo regime da comunhão parcial, não existirem bens particulares do de cujus. Inteligência do artigo 1.829 do Código Civil” (TJSP, Agravo de Instrumento 0180127-84.2010.8.26.0000, Acórdão 4859235, 1.ª Câmara de Direito Privado, Lins, Rel. Des. Elliot Akel, j. 07.12.2010, DJESP 20.01.2011).

Na verdade, o julgado transcrito considerou apenas os bens imóveis que entrariam na partilha, cometendo um equívoco ao restringir o texto legal para determinado patrimônio do de cujus.

Ainda a respeito da comunhão parcial, surge dúvida concernente aos bens sobre os quais há concorrência sucessória. Consultando tabela doutrinária do Professor Francisco Cahali, três são as correntes encontradas, em mais um intenso debate que envolve os sucessionistas nacionais.

Para a primeira corrente, no regime da comunhão parcial de bens, a concorrência sucessória somente se refere aos bens particulares, aqueles que não entram na meação. Nesse sentido, o Enunciado n. 270 do CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil: “O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes”. Na citada tabela, esse também é o entendimento de Christiano Cassettari, Eduardo de Oliveira Leite, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Gustavo Nicolau, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Maria Helena Daneluzzi, Mário Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Zeno Veloso; além do presente autor.

Cite-se que assim também entendem os Professores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, conforme consta de sua obra lançada no ano de 2014, com os seguintes dizeres: “de acordo com a lógica linha de raciocínio, a teor do critério escolhido pelo legislador – no sentido de que o cônjuge sobrevivente (que fora casado em regime de comunhão parcial) somente terá direito concorrencial quando o falecido houver deixado bens particulares –, é forçoso concluir que tal direito incidirá apenas sobre essa parcela de bens” (Novo Curso..., 2014, v. 7, p. 212).

O argumento dessa premissa é que a concorrência sucessória deve ocorrer justamente naqueles bens sobre os quais não há meação, ou seja, o cônjuge herda onde não meia, na linha da conhecida frase de Cláudio Luiz Bueno de Godoy. Tal corrente, prevalecente na doutrina, é adotada por vários julgados estaduais, podendo ser colacionados os seguintes:

“Agravo de instrumento. Sucessão. Partilha dos bens do inventariado. Viúva. Regime de casamento. Comunhão parcial de bens. Direito à meação em relação aos bens adquiridos na constância do casamento. Direito de herança, em concorrência com os descendentes, em relação aos bens particulares do inventariado. Decisão mantida. 1. No regime da comunhão parcial de bens, o cônjuge supérstite tem direito à sua meação, em relação aos bens adquiridos na constância do casamento e direito de herança, em concorrência com os descendentes do de cujus, dos bens particulares do inventariado, consoante a ordem de vocação hereditária estabelecida no artigo 1.829, I, do Código Civil. 2. Recurso conhecido e desprovido. Unânime” (TJDF, Recurso 2013.00.2.014096-8, Acórdão 708.581, 3.ª Turma Cível, Rel. Des. Otávio Augusto, DJDFTE 09.09.2013, p. 211).

“Agravo de instrumento. Inventário. Rito de arrolamento sumário. Composição do monte-mor a ser partilhado e divisão de bens adotada no esboço do plano de partilha apresentado pelo inventariante. Regime de comunhão parcial de bens. Existência de bens particulares. Cônjuge sobrevivente. Direito à meação do bem comum e concorrência com a descendente apenas na partilha dos bens particulares. Direito real de habitação não evidenciado, sob pena de vulneração ao artigo 1.831 do Código Civil de 2002. Recurso desprovido. 1. No regime da comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal na constância do casamento, excluindo-se aqueles que cada cônjuge possuía antes do enlace matrimonial, os oriundos de doação ou sucessão, bem como os sub-rogados em seu lugar e os que tenham por título de aquisição causa anterior ao casamento, conforme expressamente preveem os artigos 1.658, 1.659 e 1.661 do Código Civil de 2002. 2. Se o cônjuge sobrevivente era casado sob o regime de comunhão parcial e tendo o de cujus deixado bens

particulares, será ele herdeiro necessário em concorrência com os descendentes do(a) falecido(a). (...)” (TJMG, Agravo de Instrumento 0402270-75.2012.8.13.0000, 3.ª Câmara Cível, Rel. Des. Elias Camilo, DJEMG 22.06.2012).

“Agravo de instrumento. Sucessão do cônjuge. Art. 1.829, I, do Código civil. Casamento sob o regime da comunhão parcial de bens. Meação sobre os aquestos e direitos hereditários apenas sobre os bens particulares. Quando casados sob o regime da comunhão parcial de bens, a sucessão do cônjuge defere-se ao sobrevivente em concorrência com os descendentes apenas em relação aos bens particulares, uma vez que sobre os bens comuns, já lhe tocará a meação. Negaram provimento. Unânime” (TJRS, Agravo de Instrumento 556243-14.2011.8.21.7000, 8.ª Câmara Cível, Porto Alegre, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 26.01.2012, DJERS 01.02.2012).

“De cujus casado no regime de comunhão parcial e que deixa bens particulares proporciona concorrência do cônjuge com descendentes sobre metade dos bens particulares [art. 1.829, I, do CC]. Provimento, em parte” (TJSP, Agravo de Instrumento 635.958.4/1, Acórdão 3651464, 4.ª Câmara de Direito Privado, Araçatuba, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. 14.05.2009, DJESP 15.06.2009).

Na mesma esteira, pode ser encontrado aresto do Superior Tribunal de Justiça, do ano de 2011, merecendo especial destaque pela divergência posterior existente naquela Corte, a seguir exposta:

“Civil. Sucessão. Cônjuge sobrevivente e filha do falecido. Concorrência. Casamento. Comunhão parcial de bens. Bens particulares. Código Civil, art. 1.829, inc. I. Dissídio não configurado. 1. No regime da comunhão parcial de bens, o cônjuge sobrevivente não concorre com os descendentes em relação aos bens integrantes da meação do falecido. Interpretação do art. 1.829, inc. I, do Código Civil. 2. Tendo em vista as circunstâncias da causa, restaura-se a decisão que determinou a partilha, entre o cônjuge sobrevivente e a descendente, apenas dos bens particulares do falecido. 3. Recurso especial conhecido em parte e, nesta parte, provido” (STJ, REsp 974.241/DF, 4.ª Turma, Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJAP), Rel. p/ Acórdão Min. Maria Isabel Gallotti, j. 07.06.2011, DJe 05.10.2011).

Todavia, o entendimento está longe de ser unânime, pois há quem entenda na citada tabela que a concorrência na comunhão parcial deve se dar tanto em relação aos bens particulares quanto aos comuns. Assim pensam Francisco Cahali, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Inácio de Carvalho Neto, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Helena Diniz e Mário Roberto Carvalho de Faria, sob o argumento de que o legislador não limitou os bens sobre os quais há a concorrência.

Portanto, a concorrência sucessória deve abranger tanto os bens que eram somente do falecido quanto aqueles alcançados pela meação. De acordo com a argumentação desenvolvida por Francisco José Cahali “porém, como apresentado no texto, sem referência a esta incidência da herança apenas sobre o acervo individual, fácil sustentar que a regra estabelece um critério de convocação, se preenchidos os seus requisitos, para concorrer na universalidade do acervo. Aliás, entendimento diverso leva a uma significativa vantagem ao viúvo na sucessão decorrente da união estável, pois nesta se defere ao sobrevivente o quinhão sobre bens já integrantes de eventual meação. E na maioria das vezes, a realidade tem demonstrado que parcela significativa do acervo hereditário forma-se exatamente na constância do casamento ou da união” (Direito..., 2012, p. 196).

Por fim, isoladamente na tabela Cahali, Maria Berenice Dias entende que a concorrência somente se refere aos bens comuns. Seus argumentos têm origem em três artigos que escreveu logo após a emergência do Código Civil de 2002, sob os títulos Ponto e vírgula, ponto final e O inc. I do art. 1.829 do CC: algumas interrogações, publicados no seu sítio na internet. Leciona a doutrinadora: “(...) buscando contornar ao menos em parte a incongruência da norma legal, sustento que o direito de concorrência deve ser calculado exclusivamente sobre os bens comuns, ou seja, os adquiridos durante o casamento. Esta posição, ainda que minoritária, utiliza o mesmo critério que a lei prevê para o cálculo do direito concorrente na união estável. E nada, absolutamente nada, justifica adotar soluções díspares para situações iguais” (DIAS, Maria Berenice. Manual..., 2011, p. 143). Em um dos seus artigos científicos citados, a questão está mais bem explicada, baseada no ponto e vírgula que consta do inciso I do art. 1.829 da codificação:

“Um sinal de pontuação tem tumultuado o direito sucessório, no que diz concorrência sucessória, de quem casou pelo regime da comunhão parcial de bens. Talvez a novidade do instituto, talvez a difícil redação do inc. I do art. 1.829 do Código Civil não têm permitido a ninguém atentar para um fato notório: existe um ponto e vírgula no artigo dividindo as hipóteses que afastam o direito à concorrência do cônjuge com os filhos a depender do regime de bens do casamento.

(...).

apontando o inc. I as hipóteses em que, tendo o autor da herança filhos, não surge o direito à concorrência. Em um primeiro momento, o legislador ressalva duas exceções. Fazendo uso da expressão ‘salvo se’ exclui a concorrência quando o regime do casamento é o da comunhão universal e quando o regime é o da separação obrigatória. Ao depois, é usado o sinal de pontuação ponto e vírgula, que tem por finalidade estabelecer um seccionamento entre duas ideias. Assim, imperioso reconhecer que a parte final da norma regula o direito concorrente quando o regime é o da comunhão parcial. Aqui abre a lei duas hipóteses, a depender da existência ou não de bens particulares. De forma clara diz o texto: no regime da comunhão parcial há a concorrência ‘se’ o autor da herança não houver deixado bens particulares.

A contrario sensu, se deixou bens exclusivos, o cônjuge não concorrerá com os descendentes. Outra não pode ser a leitura deste artigo. Não há como ‘transportar’ para o momento em que é tratado o regime da comunhão parcial a expressão ‘salvo se’ utilizada exclusivamente para excluir a concorrência nas duas primeiras modalidades: no regime da comunhão e no da separação legal. Não existe dupla negativa no dispositivo legal, pois na parte final – após o ponto-e-vírgula – passa a lei a tratar de hipótese diversa, ou seja, o regime da comunhão parcial, oportunidade em que é feita a distinção quanto a existência ou não de bens particulares. Essa diferenciação nem cabe nos regimes antecedentes, daí a divisão levada a efeito por meio do ponto e vírgula. Imperiosa a correta compreensão da norma legal, até porque, ao colocar ‘o ponto na vírgula’ o legislador visou, exatamente, afastar a perplexidade que tem assaltado todos os intérpretes do novo Código. A apressada leitura desse dispositivo tem levado todos os que buscam na lei uma resposta justa, a um estado de verdadeira perplexidade e de certa indignação, ao flagrarem uma aparente injustiça quando há filhos do autor da herança e existem bens anteriores ao casamento” (DIAS, Maria Berenice. Ponto e vírgula..., 2013).

Mais recentemente, em obra lançada no ano de 2015, firmam a mesma posição Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, pontuando que “sustentamos que a melhor interpretação para o cálculo da herança do cônjuge sobrevivente, em concorrência com os descendentes, sinaliza na direção de reconhecer que, havendo bens particulares do falecido, haveria direito sucessório somente sobre os bens comuns” (Curso..., 2015, v. 7, p. 261).

De polêmico e tão debatido acórdão do Superior Tribunal de Justiça retira-se a exposição dessa divergência, levada para caso concreto envolvendo a união estável. Como se verá, o aresto acabou por adotar a corrente seguida por Maria Berenice Dias, apesar de citar que essa seria uma quarta corrente. Na verdade, a terceira corrente citada no decisum não existe, pois, na comunhão parcial, somente haverá direito sucessório do cônjuge se ele tiver deixado bens particulares, não residindo qualquer polêmica a respeito de tal ponto. Vejamos o resumo da ementa desse controverso acórdão do Tribunal da Cidadania:

“(...). A regra do art. 1.829, I, do CC/2002, que seria aplicável caso a companheira tivesse se casado com o de cujus pelo regime da comunhão parcial de bens, tem interpretação muito controvertida na doutrina, identificando-se três correntes de pensamento sobre a matéria: (i) a primeira, baseada no Enunciado n. 270 das Jornadas de Direito Civil, estabelece que a sucessão do cônjuge, pela comunhão parcial, somente se dá na hipótese em que o falecido tenha deixado bens particulares, incidindo apenas sobre esses bens; (ii) a segunda, capitaneada por parte da doutrina, defende que a sucessão na comunhão parcial também ocorre apenas se o de cujus tiver deixado bens particulares, mas incide sobre todo o patrimônio, sem distinção; (iii) a terceira defende que a sucessão do cônjuge, na comunhão parcial, só ocorre se o falecido não tiver deixado bens particulares. (...). É possível encontrar, paralelamente às três linhas de interpretação do art. 1.829, I, do CC/2002, defendidas pela doutrina, uma quarta linha de interpretação, que toma em consideração a vontade manifestada no momento da celebração do casamento, como norte para a interpretação das regras sucessórias. Impositiva a análise do art. 1.829, I, do CC/2002, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente, a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia privada e da consequente autorresponsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa-fé; a eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica. Até o advento da Lei n.º 6.515/1977 (Lei do Divórcio), vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivente não concorre à herança, por já lhe ser conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal; a partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial, o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/2002. Preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados apenas entre os descendentes. Recurso especial improvido” (STJ, REsp 1.117.563/SP, 3.ª Turma, Rel. Min.

No documento Flávio Tartuce - Vol. 06.pdf (páginas 105-118)

Outline

Documentos relacionados