• Nenhum resultado encontrado

Da concorrência do companheiro com os descendentes na sucessão híbrida As teorias anteriores existentes e sua superação

No documento Flávio Tartuce - Vol. 06.pdf (páginas 158-163)

Como antes exposto, nos termos da correta leitura do inciso I do art. 1.790 do Código Civil, se o companheiro concorresse com descendentes comuns (de ambos), teria direito a uma quota equivalente à que por lei fosse atribuída ao descendente. Por outra via, conforme o inciso II do mesmo diploma legal, se o companheiro concorresse com descendentes só do autor da herança (descendentes exclusivos), tocar-lhe-ia metade do que couber a cada um destes.

Mais uma vez, situação não descrita na legislação referia-se à sucessão híbrida – conforme a expressão cunhada por Giselda Hironaka –, ou seja, caso em que o companheiro concorresse, ao mesmo tempo, com descendentes comuns e exclusivos do autor da herança. Novamente, a Torre de Babel doutrinária emergia, surgindo, sobre o problema, quatro correntes fundamentais bem definidas, que sempre geraram grande instabilidade jurídica, ora superada.

Para uma primeira corrente doutrinária, em casos de sucessão híbrida, dever-se-ia aplicar o inciso I do art. 1.790, tratando-se todos os descendentes como se fossem comuns, uma vez que os comuns estariam presentes. Em outras palavras, como existiam descendentes comuns, parar-se-ia a leitura no inciso I, sem descer para o inciso II. Esse entendimento era o majoritário na tabela doutrinária de Francisco Cahali, sendo seguido por Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Francisco Cahali, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Daneluzzi, Marcelo Truzzi Otero, Mário Delgado, Roberto Senise Lisboa, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno e Sílvio de Salvo Venosa. Perfilhando-se a essa vertente, o companheiro ficaria em situação privilegiada, recebendo a

mesma quota dos descendentes.

Adotando tal forma de pensar, cabe trazer à colação o seguinte acórdão anterior, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal:

“Civil. Agravo de instrumento. União estável. Sucessão. Concorrência da companheira com filhos comuns e exclusivos do autor da herança. Aplicação do art. 1.790, I, CC. 1. Predomina na doutrina o entendimento de que, diante da lacuna da Lei quanto à hipótese de concorrência entre a companheira, herdeiros comuns e herdeiros apenas do autor da herança, a melhor solução é dividir de forma igualitária os quinhões hereditários entre o companheiro sobrevivente e todos os filhos. 2. Negou-se provimento ao agravo do Ministério Público do Distrito Federal” (TJDF, Recurso 2010.00.2.012714-7, Acórdão 459.890, 2.ª Turma Cível, Rel. Des. Sérgio Rocha, DJDFTE 11.11.2010, p. 82).

Para uma segunda corrente, presente a sucessão híbrida, teria subsunção o inciso II do art. 1.790, tratando-se todos os descendentes como se fossem exclusivos, só do autor da herança. Este autor estava filiado a tal corrente, assim como Gustavo René Nicolau, Maria Helena Diniz, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Zeno Veloso. Ora, como a sucessão é do falecido, havendo dúvida por omissão legislativa, os descendentes deveriam ser tratados como se fossem só dele, do falecido. Essa corrente parecia ser a melhor a ser seguida também pelo fato de que, entre tutelar o companheiro e filhos, a preferência deveria ser pelos últimos, pois o companheiro receberia meia quota daquilo que fosse atribuído aos descendentes. O mandamento constitucional prefere os filhos ao companheiro, o que pode ser facilmente percebido pela leitura de várias regras que estão no art. 227 do Texto Maior.

Anote-se que, na jurisprudência estadual, também eram encontrados arestos de aplicação dessa segunda corrente, pela prevalência do inciso II do art. 1.790 da codificação material, justamente porque é fundamental privilegiar os filhos em detrimento do companheiro ou convivente. Dessa forma julgando, do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“Inventário. Partilha judicial. Participação da companheira na sucessão do de cujus em relação aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável. Concorrência da companheira com descendentes comuns e exclusivos do falecido. Hipótese não prevista em lei. Atribuição de cotas iguais a todos. Descabimento. Critério que prejudica o direito hereditário dos descendentes exclusivos, afrontando a norma constitucional de igualdade entre os filhos (art. 227, § 6.º, da CF/1988). Aplicação, por analogia, do art. 1.790, II, do Código Civil. Possibilidade. Solução mais razoável, que preserva a igualdade de quinhões entre os filhos, atribuindo à companheira, além de sua meação, a metade do que couber a cada um deles. Decisão reformada. Recurso provido” (TJSP, Agravo de Instrumento 994.08.138700-0, Acórdão 4395653, 7.ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, Rel. Des. Álvaro Passos, j. 24.03.2010, DJESP 15.04.2010).

“Direito sucessório. Companheira que concorre com filho comum e filho exclusivo do autor da herança. Ausência de regra legal específica para. A hipótese. Solução que contempla o direito sucessório da companheira apenas no que toca à metade do que couber a cada um dos filhos. Aplicação por analogia do art. 1.790, II, do CC, de modo a preservar a igualdade entre os filhos. Observância do art. 227, § 6.º, CF/88 e do art. 1.834 do CC. Recurso não provido” (TJSP, Agravo de Instrumento 652.505.4/0, Acórdão 4068323, 5.ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, Rel. Des. Roberto Nussinkis Mac Cracken, j. 09.09.2009, DJESP 05.10.2009).

Continuando a controvérsia, para uma terceira corrente, seguida apenas por Mário Roberto Carvalho de Faria na tabela Cahali, havendo concorrência híbrida na união estável, deveria ser aplicado o inciso III do art. 1.790 do Código Civil, pela impossibilidade de enquadramento nos dispositivos antecedentes. Desse modo, seria dada uma interpretação extensiva à expressão outros parentes sucessíveis constantes no preceito a ser subsumido.

Por fim, havia a quarta corrente, baseada em engenhosas fórmulas matemáticas que procuravam resolver mais esse dilema sucessório. Entre as várias fórmulas existentes, cabe destacar duas: a Fórmula Tusa – criada pelo Professor ítalo-brasileiro Gabriele Tusa – e a desenvolvida por Flávio Augusto Monteiro de Barros.

a) A Fórmula Tusa

A primeira fórmula está baseada no critério da ponderação, tendo sido elaborada com o auxílio do economista Fernando Curi Peres. Gabriele Tusa a apresentou pela primeira vez à comunidade jurídica nacional por ocasião do V Congresso Brasileiro de Direito de Família do IBDFAM, realizado em Belo Horizonte, em outubro de 2005.

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka era uma das grandes defensoras dessa solução, caso não fosse reconhecida a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC, o que acabou ocorrendo. Para a jurista, “as conclusões do Professor Gabriele Tusa permitem que se chegue a uma homogeneidade de resultados proporcionais em todos os casos de concorrência sucessória do companheiro com descendentes do falecido (mesmo no caso de descendência híbrida, isto é, a descendência formada por

descendentes exclusivos do falecido e por descendentes comuns a ele e ao companheiro sobrevivente) para definir o quinhão hereditário que deve ser destinado a cada herdeiro-descendente e ao companheiro concorrente. Ele explica que isso se viabiliza pelo uso do conceito de média ponderada que permite se encontre, proporcionalmente, a maneira de se atender aos dois incisos do art. 1.790, simultaneamente, de acordo com a quantidade de filhos que se apresentam em cada modalidade” (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários..., 2007, v. 20, p. 66). A fórmula elaborada era a seguinte:

Legenda

X = o quinhão hereditário que caberá a cada um dos filhos.

C = o quinhão hereditário que caberá ao companheiro sobrevivente.

H = o valor dos bens hereditários sobre os quais recairá a concorrência do companheiro sobrevivente. F = número de descendentes comuns com os quais concorra o companheiro sobrevivente.

S = o número de descendentes exclusivos com os quais concorra o companheiro sobrevivente.

A própria Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka vinha apresentando soluções de casos concretos com base na fórmula Tusa em suas aulas, palestras e exposições. Vejamos duas delas, que constam da sua última obra citada (Comentários..., 2007, v. 20, p. 67-69).

Primeiro exemplo: H = R$ 100.000,00 F = oito filhos comuns. S = dois filhos exclusivos.

Cada filho deverá receber:

Portanto:

X = R$ 9.171,31, valor que deve receber cada filho.

O companheiro deverá receber:

C = R$ 8.256,88

→ Cada filho herdará: R$ 9.171,31 → O companheiro herdará: R$ 8.256,88

→ Total: R$ 100.000,00 (na verdade: R$ 99.999,98)

Segundo exemplo: H = R$ 100.000,00

F = dois filhos comuns. S = oito filhos exclusivos.

Cada filho deverá receber:

Portanto:

X = R$ 9.433,96, valor que deve receber cada filho.

O companheiro deverá receber:

C = R$ 5.660,37

Portanto:

→ Cada filho herdará R$ 9.433,96 → O companheiro herdará: R$ 5.660,37

→ Total: R$ 100.000,00 (na verdade: R$ 99.999,97)

Além dos trabalhos de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, a fórmula Tusa era encontrada em outras obras sobre o tema, caso dos estudos de Francisco José Cahali (Direito..., 2012, p. 236-237), de Zeno Veloso (Direito..., 2010, p. 177), de Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf (Curso..., 2013, p. 218-219), de Maria Berenice Dias (Manual..., 2011, p. 185), de Euclides de Oliveira (Direito..., 2005, p. 170), de Maria Helena Diniz (Curso..., 2013, v. 6, p. 177-178) e de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (Novo Curso..., 2014, v. 7, p. 241). Em resumo, pode-se dizer que a formulação ganhou prestígio no meio acadêmico nacional.

De fato, o trabalho desenvolvido por Gabriele Tusa – com o auxílio de Fernando Peres – é genial, resolvendo o problema da concorrência híbrida do ponto de vista da técnica jurídica e matemática. No entanto, a premissa teórica sempre nos pareceu pouco operável, em especial diante das notórias dificuldades de os operadores do Direito fazerem de médias ponderadas.

O presente autor sempre teve dúvidas de sua efetivação prática pelas dificuldades que acarretaria ao aplicador do Direito, geralmente não afeito à matemática, uma das razões que gerou a escolha da profissão no passado. Talvez por isso não se tinha notícia de sua utilização em julgados a partir da segunda instância.

b) A fórmula criada por Flávio Augusto Monteiro de Barros

Flávio Augusto Monteiro de Barros igualmente formulou premissa matemática para tentar solucionar a sucessão híbrida. A fórmula estava baseada em duas fases de cálculo, assim delineadas, sendo certo que, para ele, os filhos exclusivos do falecido

são denominados incomuns (Manual..., 2004, v. 4, p. 214). Vejamos:

“1.ª Fase.

2.ª Fase

Observações:

– PC corresponde à parte da companheira.

– N.º FC correspondente ao total de filhos comuns. – N.º FI corresponde ao total de filhos incomuns. – PF corresponde à parte de cada filho.

– H corresponde ao total da herança”.

Na sequência, o doutrinador criou situação fática a ser resolvida pela sua fórmula bifásica. O caso era de um falecido que deixou companheira sobrevivente, três filhos comuns e um filho exclusivo, com patrimônio de R$ 5.800,00 (BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual..., 2004, v. 4, p. 215). A solução era a seguinte:

1.ª Fase

PC = 0,8. A parte da companheira corresponde a 0,8 do que receber cada filho.

2.ª Fase

PF = R$ 1.000,00. Se cada filho recebe tal valor, a parte da companheira é R$ 800,00.

A solução de Flávio Augusto Monteiro de Barros também era encontrada na doutrina, mas apenas na obra de Francisco José Cahali (Direito..., 2012, p. 233-237), além deste livro. Igual à Fórmula Tusa, ela resolveria o problema da concorrência híbrida na união estável. Contudo, valem as mesmas críticas feitas anteriormente, de afastamento da fórmula de sua operacionalidade. O presente autor nunca teve ciência de sua utilização por qualquer julgado.

Como palavras finais, toda a discussão exposta neste tópico encontra-se superada com a declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil pelo Supremo Tribunal Federal, em julgamento ainda não encerrado, mas já

2.13.5

com votos majoritários (STF, Recurso Extraordinário 878.694/MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 31.08.2015, com repercussão geral). Reitere-se, nesse contexto, que o convivente, com a decisão superior, deve ser incluído no rol do art. 1.829 do Código Civil, equiparado ao cônjuge, entrando em cena outros debates jurídicos, aqui antes expostos.

Em verdade, o tema da concorrência do companheiro na sucessão híbrida nunca encontrou a devida estabilidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, seja nos âmbitos da doutrina e da jurisprudência. Tanto isso é verdade que, quando daquele julgamento superior, um pouco antes de pedir vistas, o Ministro Dias Toffoli argumentou que a norma não se sustentava matematicamente, citando a doutrina de Giselda Hironaka. Assim, pensamos que foi mais uma vez louvável a decisão do STF por afastar todas essas divergências e fórmulas matemáticas, que têm pouca afeição pelos aplicadores do Direito.

No documento Flávio Tartuce - Vol. 06.pdf (páginas 158-163)

Outline

Documentos relacionados