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Anomia: o imaginário e o sensório-motor

5.2 AÇÕES NA UNICAMP

5.2.2 Anomia: o imaginário e o sensório-motor

Consideramos que os agentes estavam na fase da anomia por dois motivos: o imaginário e o sensório-motor. Motivos esses demonstrados no primeiro dia de atividades com o TelEduc. Descreveremos sucintamente essa experiência.

Os agentes se reuniram em frente ao computador “Pentium 4”, enquanto os outros dois computadores (486) eram configurados à internet. Sentaram e apenas observavam a tela do com- putador a uma distância de 2m. À primeira vista, a interface lhes parecia estranha. Não consegui-

am interpretar o que viam, não tinham conceitos para explicar. Os elementos semióticos que viam na tela, e suas funções, ainda não tinham uma representação mental, por falta de informação. Para que eles formassem alguma idéia a respeito de um ambiente de EAD, fizemos uso de uma análise metafórica. Comparamos o TelEduc com um ambiente arquitetônico, incentivando-os a relacio- narem o TelEduc com as próprias casas e com o local de trabalho (posto de saúde), salientando as repartições utilizadas de acordo com as funções e necessidades de cada um. Discutimos que o TelEduc não estava tão distante do mundo deles. Havia uma correlação de estrutura organizacio- nal, de repartições que lembravam o contexto dos agentes. Procurávamos estabelecer relações entre as representações mentais dos agentes, sobre o mundo físico que eles conheciam, e as enti- dades existentes na interface do TelEduc. Esperávamos que, posteriormente, elas pudessem co- municar-se entre si, atuando como mediadoras e modeladoras da aprendizagem e autonomia.

A própria terminologia “TelEduc” aparentava-se esquisita. Assim, fizemos um debate sobre esse vocábulo. Eles próprios relacionaram o tel (distância, longe) com os meios de comuni- cação televisão (visão) e telefone (audição) e deduziram que “TelEduc” teria a ver com educação a distância.

Essa rápida experiência, no primeiro dia de atividades com o computador, nos permitiu identificar a questão do imaginário nos agentes. Eles não se atreviam a tocar a máquina, pois, segundo os relatos espontâneos, a falta de conhecimento sobre informática poderia levá-los a “estragar” o computador (objeto de valor). Quando o faziam, era uma ação sempre precedida de uma pergunta: é aqui que eu devo clicar? Embora nas reuniões iniciais tivéssemos detectado, ape- sar da inexperiência de manipulação, certo letramento digital, a atividade revelava que esse le- tramento misturava-se a um certo fetiche do computador.

A expressão corporal também denunciava uma barreira imaginária que dificultava a a- proximação. Os agentes estavam, nesse momento, para o computador (exceto para aquele que o possuía em casa) como os visitantes de museus estão para a obra de arte – o computador no esta- do de sagrado. Dominá-lo, conduziria ao estado de iluminação, a uma transcendência mística, no sentido de que poderia tornar possível a satisfação das suas necessidades. O sentimento de inferi- oridade em relação ao mercado de trabalho, fruto da inabilidade com a informática, surgia como um silêncio paralisante ao mesmo tempo em que a possibilidade de superação dessa dificuldade

conduzia a uma expectativa plasmada nos olhares sem piscar. Não deixava de ser uma visão fan- tasiosa e uma relação de coação. Apesar de Piaget ter considerado a não existência da coação no estágio de anomia, notamos que os agentes estavam muito interessados, porém bastante intimida- dos diante da tecnologia e daquele ambiente de aprendizagem. Consideramos que essa diferenci- ação surgia pelo fato de estarmos trabalhando com adultos e não com crianças. Como vimos ante- riormente, o adulto já possui um marco regulatório, um conjunto de conceitos e de representações mentais, de desejos, de identificações, que possibilitam a ele interpretar e classificar cada nova informação.

Interpretamos essa postura coagida dos agentes como uma conseqüência, em termos de representações mentais, do desequilíbrio econômico, social e cultural existente entre a comunida- de e a cidade. A rede de computadores, a internet, a Unicamp, os alunos de pós, apareciam para eles, enquanto representações mentais, como algo completamente estranho à comunidade, e por muitas vezes hostil. Dadas as condições sociais e as experiências de vida, a Unicamp era quase um fetiche, assim como a informática em geral. Essa realidade, representada na consciência de cada um, transformava-se numa entidade do ambiente de aprendizagem que, apesar de nossos esforços contrários, atuavam no sentido da paralisia e da admiração exagerada da Unicamp. No entanto, se adequadamente identificadas e trabalhadas, poderiam servir como alavancadoras da aprendizagem e da autonomia.

O segundo motivo que nos levou a denominar os agentes na fase de anomia foi o fato de ainda ser necessário desenvolver uma relação “sensório-motora” destes com o computador, para isso, seria também importante a aquisição de saberes essenciais para o manuseio da máquina (pe- gar no mouse, ligar/desligar o computador etc.).

Uma vez estabelecido que o objetivo dos primeiros encontros seria conseguir usar o mi- cro para acessar a internet e criar o primeiro e-mail, os agentes solicitaram que fizéssemos um roteiro (um passo a passo) das etapas. Quando apresentamos uma seqüência de ações (ligar o estabilizador, a CPU, o monitor, abrir o navegador de internet, visitar alguns sites, fechar o nave- gador, desligar o Windows, desligar o micro, inclusive da tomada), evidenciou-se a questão sen- sório-motora e de conhecimento básico sobre informática, principalmente para as mulheres. O desconhecimento ocasionou dificuldades de interpretação, tanto do hardware quanto do software.

As agentes apresentaram poucas habilidades com o mouse. Mostravam dificuldades em acertar o cursor no local desejado. Houve uma confusão em relação ao monitor e à CPU. Pensaram que ao ligar o monitor, estariam ligando a CPU. Outro equívoco ocorreu por motivo da ambigüidade existente na interface do Windows. Quando foram desligar o computador, não encontravam o botão Desligar. Custaram a descobrir que para desativar o computador, elas deveriam “clicar” no botão Iniciar do Windows. Mais tarde, a ferramenta Agenda também seria mal-interpretada. Eles relacionaram a utilidade dessa ferramenta com a mesma função das agendas que se vendem em papelaria, ou seja, para anotações pessoais. Na Agenda do TelEduc todos podem visualizá-la, porém somente os formadores podem acrescentar informações, como os prazos das atividades.

Ao executarem a seqüência, pudemos observar que os agentes modificaram a postura, principalmente as mulheres, que estavam mais acuadas. A relação entre os três agentes não se configurou em cooperação. Apesar de certo esforço para ajudar, do que já tinha mais experiência, estabeleceu-se uma relação de desequilíbrio, unilateral. A falta de conhecimento das mulheres sobre informática, dificultou a cooperação para se apropriarem do TelEduc, restando somente os incentivos. Não puderam trocar o que não possuíam.

O desconhecimento técnico, as representações mentais preconcebidas sobre o mundo tecnológico (medo e admiração exagerada pelo computador), as entidades do ambiente de apren- dizagem (desconfiança da Unicamp, desejo em aprender) e a dificuldade de manuseio inibiram, naquele momento, o uso do computador como um meio de produção cooperativa. Por esse moti- vo, identificamos a fase de anomia com a pseudo-equipe (Perrenoud, 2000), em que se entende a partilha, apenas, de materiais, faltando diálogos, práticas e responsabilidades conjuntas, mediadas pelo TelEduc ou mesmo pelo ambiente de aprendizagem. Nessa fase, as entidades de origem so- cial ou tecnológica atuaram no sentido de bloquear a aprendizagem, através do mecanismo deles de se autocolocarem em posição de inferioridade. Essa situação era desequilibrada pelo desejo e pela representação mental que tinham a respeito da necessidade daquela aprendizagem. Essa luta entre as entidades desestabilizava sistematicamente o processo de aprendizagem, conduzindo-o a novas situações e conflitos. Nosso papel, enquanto mediadores, configurou-se, por um lado, em identificar o surgimento e papel dessas entidades e, por outro, em participar desse conflito de

entidades, buscando conduzi-lo na direção do aprofundamento do processo de aprendizagem e autonomia.