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5.2 AÇÕES NA UNICAMP

5.2.3 Heteronomia: procura-se um rosto

Percebemos que esse processo foi nos conduzindo a uma nova fase, onde a construção de uma identidade digital aparecia como uma nova entidade estimuladora. Essa nova fase de construção de uma identidade no ciberespaço identificou-se com vários elementos do estágio de heteronomia de Piaget, pelo fato de que os agentes buscaram se mostrar no virtual (egocentris- mo), dentro dos procedimentos básicos, mantendo-se limitados às regras, executando atitudes óbvias e preconcebidas, sem tomar decisões autônomas transgressoras. A preocupação era, nesse momento, individualista.

Para demonstrar o que afirmamos, analisamos duas atividades: o cadastro dos agentes no TelEduc e o preenchimento, na ferramenta Perfil, dos seus dados pessoais.

Os três computadores já estavam conectados à internet, e cada agente, acompanhado de mediador, acomodou-se em um computador. Agora, era preciso cadastrar-se no TelEduc. Para isso, necessitavam de um endereço eletrônico, através do qual seriam enviados a senha e o login, a fim de acessar o ambiente. Como os agentes não tinham um endereço, o desafio primeiro foi criá-lo. Optaram por uma empresa particular que disponibiliza serviços “gratuitos” de e-mails ao público. Assim que fizessem o pedido de participação, o coordenador das atividades do TelEduc iria autorizar o solicitante, e o sistema enviaria automaticamente uma senha e o login para os e- mails, então criados. Os agentes tiveram de realizar dois cadastros: o da empresa particular de e- mails e do TelEduc. Para ambos cadastros foi necessário identificar-se, preenchendo os formulá- rios com nome, endereço, telefone, além de escolher as senhas e os logins.

O problema maior ocorreu com as senhas e os logins (entendimento do que era; digita- ção erradas e esquecimento dos caracteres). O sistema do site acusava, em diversos momentos, que eles não conferiam, exigindo executar novamente os cadastros. Os mesmos problemas se repetiram no instante de se cadastrarem no TelEduc. Seria desanimador se não fosse o interesse e

o bom humor do grupo. Nessas situações, mediávamos reflexões sobre as possíveis soluções: manter a tecla Caps Lock desativada, criar senhas e logins de fácil memorização.

Apesar das dificuldades, eles conseguiram criar os e-mails e cadastraram-se no TelEduc. Para quem possuía pouca experiência com informática foi um grande desafio: ligar o computa- dor, acessar sites, preencher formulários, criar e-mails, interpretar linguagens da web, navegar no hipertexto, criar uma identidade digital.

Por tentativas e erros, superaram os problemas dos cadastros. Como mediadores, a nossa participação só ocorria quando eles solicitavam. Algumas vezes fomos chamados individualmen- te para ajudas pontuais, sendo que os agentes não constituíram uma equipe na qual debatessem ou enfrentassem os problemas juntos. Agiram individualmente, contando apenas com nossa ajuda. Nenhum deles chegou a perguntar para o colega qualquer questão sobre o cadastro. Estavam en- capsulados nas suas tarefas pessoais. Notamos que a preocupação era pessoal, individualista. Ca- da um visava completar seu cadastro. Como não possuíam conhecimentos sobre o assunto, esta- vam centrados em si mesmos, tentando resolver os problemas que apareciam, e em completar a missão.

Então, por que os três agentes apresentaram os mesmos erros ao cadastrarem-se, sendo que estavam isolados? Podemos justificar, dizendo que o contexto semelhante impôs, de certa forma, conhecimentos comuns. Mesmo o agente com computador em casa apresentava dificulda- des. Na sua concepção, o computador, dentro de casa, era para usufruto do filho e, na verdade (confessada posteriormente), ele não o usava. Os problemas básicos – sensório-motor, de digita- ção, habilidade manual e conhecimento dos teclados – estavam ainda sendo elaborados pelos agentes.

Uma vez cadastrados, começaram a trabalhar com a ferramenta Perfil, acrescentando ca- racterísticas pessoais: formação escolar, local de trabalho, hobbies etc. Por trás do gênero de lin- guagem “formulário”, estava a construção da própria identidade no ciberespaço. Falar sobre si, proporcionou pensar a própria condição atual, o local onde vive, o trabalho, o lazer, a família, enfim, aferir o seu contexto. Também foi colocada a fotografia de cada um, tirada enquanto os

agentes preenchiam o Perfil. Tratava-se, então, de construir uma representação digital, escrita e fotografada, do universo e da identidade de cada um.

Agente23 01

Email: XXX@XXX.com.br Função: aluno

Olá ! Sou casado, já estou na meia-idade, resido em Campinas a mais de três décadas, desde que cheguei sempre morei no Jd. São Marcos. Vim do interior de São Paulo. Tive uma infância muito sofrida não tive oportunidade de estudar quando criança, minhas oportunidades só vie- ram depois de casado, quando completei o 1° e 2° grau , fiz um curso técnico de transação imo- biliária (corretor de imóveis) cheguei a cursar o 3° ano completo de direito (tive que abandonar por motivo alheio a minha vontade ).

Tenho 05 filhos com idade de 18-17-10-09 e 07 anos, dos quais 04 ainda são estudantes. Sou agente de saúde no C.S São Marcos onde trabalho com mais 15 companheiros juntos à comuni- dade local desenvolvendo um trabalho na área de saúde, educação e cidadania. Gosto de ler tu- do que me traga boas informações, aprendizagem e cultura .

Lugar interessante para mim ainda continua sendo Campinas onde tenho muitos amigos com os quais troco informações e jogo muita conversa fora, por hoje é só no decorrer do curso vamos nos conhecer melhor até...

Um fato foi acrescentar dados no sistema, o que envolveu raciocínio e esforço, outro foi ver o resultado – olhar para o TelEduc e ver as informações pessoais e o próprio retrato. Nesse segundo fato, desencadeou-se satisfação e fruição emotiva. Quando os agentes viram suas fotos no computador, as reações foram eufóricas e entusiásticas. Empolgados, os agentes chamaram outras pessoas, presentes ali, para vê-los na tela do computador. Queriam mostrar que agora tam- bém estão no mundo cibernético. Com a presença do outro, o efeito da fotografia sobre os agen- tes foi maior do que esperávamos. Naquele momento, o riso foi a linguagem universal. O efeito

23 Exemplo de uso da ferramenta Perfil por um agente de saúde. Alguns dados pessoais, tal como o retrato, foram

foi cativante. Podemos dizer que foi o ponto de mutação, em que eles perceberam que poderiam dominar as máquinas, humanizá-las.

Os agentes, ao inserirem informações pessoais no “ambiente estranho”, avançam na desmistificação. Aproximam-se cada vez mais do computador e constroem novas entidades tec- nológicas, que passam a interagir no ambiente de aprendizagem. Dentre essas novas entidades está o eu digital, aquele que já não tem mais tanto medo do computador e que começa a se sentir capaz de dominá-lo. Assim, o amedrontador ambiente de aprendizagem se vê transformado em um espaço lúdico e de experimentações.

O TelEduc foi usado como mediador e mecanismo de registro desse processo dos agen- tes. Projetaram-se e tornaram visíveis por intermédio dele. Não mais navegar pelo TelEduc para o vazio, mas para se achar e achar o outro. É a fase do ego. A euforia apresentada, ao verem as fo- tos, evidenciou o quanto necessitavam de reconhecimento. A presença e o olhar do outro foi sig- nificante. Se os agentes tivessem visto tais imagens isoladamente, sem os comentários e a euforia dos colegas, as imagens não causariam tanta significação. O ego foi exaltado com os comentários empolgantes do outro. As representações mentais a respeito do olhar do outro, enquanto entidade de caráter psicológico, atuaram de forma bastante positiva, tanto para os agentes quanto para nós, pesquisadores. Foi um momento de execução afinada de uma bela melodia na nossa orquestra comunicacional.

Pelas características levantadas, enquadramos esse período no estágio de heteronomia: conseguiram inserir suas “identidades” no computador, passaram a ter e-mails, perfis disponíveis e já dominavam o jargão básico da internet. A ferramenta Perfil permitiu inserir dados pessoais, favorecendo aos agentes sair da fase de “apatia” em relação ao outro, para enxergá-lo, mostrar-se no virtual e ser reconhecido. Mas, o amadurecimento do processo ainda não permitia um diálogo cooperativo em torno dos temas de promoção da saúde. O que existia eram informações na tela, que os outros sujeitos poderiam acessar, sem poder comentar, até mesmo porque o Perfil não permite o diálogo. A absorção das informações e ferramentas digitais consumia a maior parte das atenções e emoções.

A atuação da entidade “o olhar do outro” foi fundamental no sentido de estabelecer um primeiro patamar para a construção de uma identidade digital, a partir da qual seria possível esta- belecer relações de troca e cooperação no hiperespaço.